Fará alguma diferença a utilização de expressões como denunciar, reportar, reclamar, comunicar, falar ou dar voz? A mudança das palavras pode efetivamente marcar o início da promoção de uma cultura mais aberta, e há já exemplos de empresas que estão a verificar maior envolvimento dos seus colaboradores simplesmente mudando o nome, para algo mais positivo, da política de reporte e da linha ou canal para denunciar
POR HELENA GONÇALVES

As expressões “WhistleBlowing” e “SpeakUp”, ainda que por vezes usadas indistintamente, têm sido objecto de discussão e debate internacional no âmbito da Business Ethics. Em Portugal a simples tentativa de tradução é já, só por si, não consensual.

As respetivas definições existentes no dicionário ajudam a compreender as diferenças uma vez que “whistle-blowing is the act of telling the authorities or the public that the organization you are working for is doing something immoral or ilegal” e que “if you speak up, you say something, especially to defend a person or protest about something, rather than just saying nothing to state one’s beliefs, objections, etc, bravely and firmly.”

Assim, podendo abranger a divulgação de uma ampla gama de questões legais e éticas, parece ser claro que whistleblowing tem um pendor mais de “denúncia” (ainda que “autoridades” possam ser consideradas pessoas/instituições internas ou externas) e que speakup tem uma interpretação mais próxima de “falar”, “reclamar”, “protestar”, “dar voz”.

O Institute of Business Ethics (IBE), considerando que as chefias são um factor chave para encorajar uma cultura de Speak Up também diferencia as duas expressões e explica mesmo como a simples mudança das palavras pode ser o primeiro passo para promover uma cultura organizacional mais aberta, mais ética: WhistleBlowing (em tradução literal, soar o apito) pode ser interpretado como um último recurso externo, quando as preocupações não foram ouvidas ou corrigidas internamente; Speak Up, pode ser interpretado como uma reclamação, com conotações mais positivas e construtivas para incentivar os colaboradores a expressar preocupações sobre eventuais violações ao código de ética ou más práticas éticas.

Segundo o último estudo europeu “Ethics at work”, só cerca de metade dos trabalhadores europeus expressam as suas preocupaçãoes quando testemunham más práticas, sendo Portugal o país com a taxa de reporte mais baixa dos oito paises estudados. E cerca de um em cada quatro não o fazem porque: a) acreditam que não serão tomadas quaisquer medidas, b) por medo de perder o emprego ou c) por sentir que não era nada consigo.

E não se querer (ou poder) falar abertamente sobre o que não está bem na organização onde se trabalha é não só um enorme risco operacional, financeiro e, claro, reputacional, mas também, e sobretudo, uma oportunidade perdida de melhorar e de aprender com os erros.

A mudança das palavras pode efetivamente marcar o início da promoção de uma cultura mais aberta, e há já exemplos de empresas que estão a verificar maior envolvimento dos seus colaboradores simplesmente mudando o nome, para algo mais positivo, da política de reporte e da linha ou canal para denunciar.

Esta mudança para uma linguagem mais construtiva é primordial porque expressar preocupações ou fazer denúncias/reportes pode ser efetivamente uma experiência hostil e emocionalmente complexa. Aliás os próprios gestores e chefias intermédias podem sentir-se sem apoio ou inseguros sobre como lidar não só com as preocupações dos seus colaboradores como com as suas próprias preocupações.

E com razão! O sentimento de medo, e em particular o medo de retaliação, não deve ser descurado porque é, efetivamente, uma das maiores preocupações globais nesse domínio, com pelo menos um terço dos que reportam a afirmar terem sido vítimas de retaliação, ainda que com variações entre países, segundo o 2019 Global Business Ethics Survey. E as vítimas relatam diferentes tipos de retaliação: colegas a ignorá-los (62%), avaliação desfavorável (54%), promoções ou prémios não recebidos (85%), acusações infundadas (52%); medo de perder o emprego (51%); exclusão de reuniões e decisões (47%). Mais, verifica-se que dois em cada três gestores de topo admitem ter sofrido de retaliação.

Conhecer, estar atento e ser especialmente cauteloso aos diversos tipos de retaliações deverá ser uma das prioridades de todos (chefias e colaboradores) e de qualquer programa de ética. Ninguém se tem que sentir “herói” para reportar. Reportar terá que ser encarado como um comportamento natural, desejável e até como uma forma de demonstrar respeito por todos os que fazem parte da organização. Baixar os níveis de coragem moral para reportar e aumentar a segurança psicológica é, portanto, um dos assuntos a ter em conta na criação de uma cultura de “SpeakUp”.

Esta caminhada da construção de culturas mais abertas tem que ser feita falando de ética regularmente, criando segurança psicológica nas equipas, para que se possa expressar quaisquer preocupações sem receios, quer às chefias quer nos canais de reporte. Sem essa confiança, com ou sem canais de reporte formais, para reportar internamente uma preocupação que poderia ser remediada, as organizações estarão sujeitas a um risco acrescido, de WhistleBlowing, de denúncia externa, seja formalmente a autoridades competentes seja, informalmente à comunicação social.

Em Portugal, a obrigatoriedade da existência de canais de reporte / denúncias de irregularidades já é antigo, designadamente para temas como Matérias Financeiras para empresas cotadas em bolsa. Contudo, só desde 2017 (Lei n.º 73/2017) é obrigatório a existência de um canal para o reporte de Assédio para empresas com mais de sete trabalhadores.

A nível global, o tema das denúncias externas tem tido e terá em breve relevantíssimas alterações legislativas. O aumento da legislação sobre a proteção dos denunciantes, que vem acontecendo por exemplo na Alemanha, Espanha e Itália desde 2018, terá efeitos nesta nova década, com a produção de regulamentação, normas e orientações num ritmo recorde.

Na União Europeia, a recente Whistleblower Directive (Directive (EU) 2019/1937 of the European Parliament and of the Council of 23 October 2019 on the Protection of Persons Who Report Breaches of Union Law) prevista para entrar em vigor em 2021, pretende normalizar os canais de denúncia em organizações públicas e privadas, com mais de 50 trabalhadores (ou um volume de negócios anual ou ativos totais de mais de 10 milhões de euros). As organizações abrangidas deverão criar ou atualizar os seus canais de denúncia, não só acautelando, mas banindo, todas as formas de retaliação, uma vez que o ónus da prova será agora transferido para os empregadores quando existir alegada retaliação. Pela primeira vez, os Estados-membros da UE vão operar de acordo com uma estrutura semelhante, ainda que caiba a cada estado definir que tipos de denúncias anónimas serão aceitáveis.

A Whistleblower Directive organiza os canais de denúncia hierarquicamente, em três tipos: interno, externo e divulgação pública. O Canal Interno, deverá ser seguro e confidencial, com reporte sobre a receção da denúncia no prazo de sete dias e resposta em três meses, seja através de mecanismo interno ou externo. O Canal Externo deverá ser utilizado sempre que o denunciante não tiver recebido uma resposta adequada do canal interno da sua organização ou se tiver motivos para acreditar que não está a funcionar corretamente. Neste caso os Estados-membros deverão designar autoridades competentes e estabelecer canais de comunicação externos independentes e autónomos, que forneçam acompanhamento aos denunciantes no prazo de três meses. A Divulgação Pública poderá ser utilizada se o denunciante não receber nenhuma resposta dos canais de denúncia internos e / ou externos no prazo estabelecido e se possuir motivos razoáveis para acreditar que a violação constitui um perigo iminente para o público.

As organizações sedeadas na União Europia com mais 50 trabalhadores têm um ano para (re)pensar os seus canais de reporte interno, podendo basear esse canal numa cultura de WhistleBlowing ou numa de SpeakUp.

Assim, e para que não haja denúncias externas ou públicas, as organizações têm uma excelente oportunidade de desenhar, ou redenhar no caso de já existirem, os seus canais de reporte de irregularidades ou de más práticas, frequentemente designados de canais de compliance e/ou de ética, assentes numa cultura de SpeakUp, usando para isso expressões mais positivas, como reclamar, comunicar, falar ou dar voz a (todas as) preocupações de cada um dos seus colaboradores. Para que cada um possa sentir que qualquer observação de uma violação ao código de ética, regulamento interno ou legislação, afinal lhe diz respeito; para que possa acreditar que serão tomadas medidas; para que não tenha medo de perder o emprego ou de qualquer tipo de retaliação.

Ainda que não seja de um dia para o outro, não é assim tão difícil aumentar a segurança psicológica e reforçar uma cultura de SpeakUp, se existir, institucionalmente, essa vontade. Basta que em cada equipa de trabalho se encontre tempo e espaço para regularmente: se falar de ética abertamente; se falar de erros cometidos e respetivas aprendizagens; se dizer (ou escrever) o que verdadeiramente se sente sobre o seu trabalho. Basta que em cada reunião de trabalho se possa ter a confiança suficiente para responder honestamente ao responsável dessa reunião que sempre, sempre, sempre, perguntará: “Alguém tem alguma coisa a dizer, uma opinião ou uma preocupação?”.

Docente e coordenadora do Fórum de Ética da Católica Porto Business School