No seu último discurso sobre o estado da União, Jean-Claude Juncker apelou à unidade e rejeitou nacionalismos, defendeu o sistema de asilo da UE e pediu a remoção de fronteiras, e avisou que a incapacidade de cooperar não é argumento para que a Europa se torne cúmplice involuntário do terrorismo. A poucos meses das eleições europeias que ditam o fim do mandato da Comissão Juncker, o presidente da CE volta a defender o projecto europeu – que deixa com problemas fracturantes, como o Brexit, a onda de nacionalismo ou a crise migratória -, lançando novas propostas naquela que diz ser “a hora da soberania europeia”
POR GABRIELA COSTA

“É preciso abandonar os ímpetos nacionalistas que projectam o ódio” – Jean-Claud Juncker, discurso do estado da União 2018

Muito se discorreu já sobre o quarto e último discurso de Jean-Claude Juncker sobre o estado da União. Na sua última intervenção ao Parlamento Europeu onde faz o balanço dos resultados do ano anterior e apresenta as prioridades e desafios mais prementes da União Europeia para o ano seguinte (anualmente, em Setembro), o presidente da Comissão Europeia (CE) arrancou o debate do estado da União pedindo aos Estados-membros que abandonem os nacionalismos. Lamentando o crescimento deste fenómeno, Juncker fez sucessivos apelos à unidade, afirmando: “rejeitemos o nacionalismo que ataca os outros, que procura culpados em vez de procurar soluções para uma melhor coexistência”. É preciso“abandonar os ímpetos nacionalistas que projectam o ódio e destroem tudo pelo caminho”, disse, na sede do Parlamento Europeu, em Estrasburgo, no passado dia 12.

A meses do fim do mandato da Comissão Juncker, na sequência das eleições europeias de Maio de 2019, o presidente da CE defendeu o projecto europeu – ciente, certamente, dos muitos problemas fracturantes com que o deixa –, recordando que é importante“mostrar respeito e parar de arrastar o nome da União Europeia pela lama”, e insurgindo-se contra as divisões entre o Este e o Oeste – porque “a Europa merece melhor”.

No discurso que abre o debate em sessão plenária com o Parlamento Europeu e o Conselho para elaborar o programa de trabalho da Comissão para o ano seguinte, Juncker também abordou a crise migratória, defendendo que “os Estados-membros não têm ainda a proporção certa entre a responsabilidade pela própria soberania e a necessária solidariedade entre eles”. E manifestou-se contra as fronteiras internas: “onde existem, devem ser removidas. Se permanecerem, isso é um passo atrás inaceitável na Europa”. Insistindo que “a Europa tem de mostrar que é capaz de superar as diferenças Norte, Sul, direita, esquerda”, o líder apelou a que, em conjunto, “se semeie uma Europa mais soberana”.

Sobre Segurança e Imigração, Juncker alertou que “as velhas alianças podem não ser as mesmas amanhã”, pedindo uma Europa mais forte  através do multilateralismoe a nível internacional. “Não queremos militarizar a Europa”, garantiu. “Não seremos uma fortaleza, nem somos uma ilha. Mas só com uma Europa forte conseguimos proteger os cidadãos das ameaças externas, do terrorismo às alterações climáticas”.

Uma das principais crises a marcar esta presidência é a saída do Reino Unido, que acontece quase em simultâneo com a saída do seu presidenteda Comissão, o qual respeita mas lamenta a decisão do Brexit. Reconhecendo no Reino Unido um parceiro sempre privilegiado, Juncker clarifica, contudo, que “não pode ter a mesma posição de privilégio que um Estado-membro. Se deixa a União Europeia, deixa de fazer parte do Mercado Único, mesmo parcialmente”.

Quando terminar o seu mandato à presidência da Comissão Europeia, em 2019, Juncker deixa uma Europa que lida com a saída de um Estado-membro, a candidatura de vários países dos Balcãs Ocidentais, uma onda de nacionalismo crescente e uma política migratória insuficiente, a somar a problemas incontornáveis, como o terrorismo e a corrupção. E deixa muitas propostas para se continuar a trilhar o caminho que a sua Comissão iniciou, como afirmou no seu último discurso – elogiado por muitos, criticado por outros – sobre o estado da União. Antes do adeus, o presidente da Comissão Europeia reafirmou o seu amor pela Europa: “há alguns anos, neste preciso local, disse que a Europa era o amor da minha vida. Amo a Europa e será assim para sempre”. No final da intervenção, cerca de dois terços dos eurodeputados aplaudiram de pé.

“Temos de proteger a realização de eleições livres”

A meses do fim do mandato da Comissão Juncker, este ano o discurso sobre o Estado da União enquadra-se num contexto marcado pelas eleições europeias de 2019 e pelo debate em curso sobre o (incerto) futuro da UE a 27. E nesse debate cabem as muitas propostas que a Comissão Europeia se apressou a apresentar no seguimento da intervenção de Juncker, no dia 12 de Setembro.

Entre elas, são de destacar as medidas destinadas a garantir eleições europeias livres e justas. Dado que “temos de proteger melhor os nossos processos democráticos contra a manipulação por parte de países terceiros ou de interesses privados”, e considerando as ameaças potenciais que recaem sobre as eleições (atendendo aos casos recentes de campanhas eleitorais de desinformação e utilização abusiva de dados pessoais), Jean-Claude Juncker anuncia novas normas, incluindo uma maior transparência no que se refere à publicidade de teor político e a possibilidade de impor sanções em caso de utilização ilegal de dados pessoais para influenciar de forma deliberada o resultado das eleições para o Parlamento Europeu.

Com vista a reforçar a resiliência democrática da Europa e garantir a aplicação das regras criadas em matéria de transparência que visam proteger o processo eleitoral, a CE considera ainda indispensável pôr em prática um conjunto de medidas concretas, como uma recomendação sobre as redes de cooperação eleitoral, a transparência online, a protecção contra os incidentes de cibersegurança e as campanhas de desinformação. A Comissão aconselha as autoridades nacionais, os partidos políticos e os meios de comunicação social a tomarem medidas para proteger as suas redes e sistemas de informação das ciberameaças. E recorda que o Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados, aplicável desde Maio de 2018, abrange todos os partidos políticos nacionais e europeus, bem como outros intervenientes no contexto eleitoral, como corretores de dados e plataformas das redes sociais, sublinhando a necessidade de orientações conjuntas das autoridades nacionais, Agência da União Europeia para a Cibersegurança e CE, sobre a aplicação da legislação da UE nesta matéria, que ajudem as autoridades nacionais e os partidos políticos nacionais e europeus a cumprirem as obrigações que lhes incumbem no contexto eleitoral.

Juncker no discurso sobre o Estado da União, a 12 de Setembro – © European Union , 2018 (EC – Audiovisual Service | Etienne Ansotte)

Sobre o processo eleitoral que terá lugar a 23 e 26 de Maio, a Comissão propõe também a criação de um regulamento que reúna recursos e conhecimentos especializados no domínio das tecnologias de cibersegurança, e – essencial – uma alteração legislativa destinada a tornar mais estritas as regras sobre o financiamento dos partidos políticos europeus.

“Não nos podemos tornar cúmplices do terrorismo”

O reforço da Procuradoria Europeia para combater o terrorismo transfronteiras é outra das mais importantes propostas da Comissão, no seguimento do repto lançado por Juncker já no seu discurso sobre o estado da União do ano passado, e no qual pediu que lhe fossem conferidas maiores competências. Este deverá ser o caminho para combater melhor as ameaças terroristas transfronteiras, acredita a CE, já que permitirá melhorar a luta contra o terrorismo, colmatando as lacunas existentes através de investigações coordenadas, intercâmbio de informações em tempo útil e maior coerência das investigações realizadas nos diferentes Estados-Membros.

Como expressou no seu último discurso sobre o Estado da União o presidente da CE, “os cidadãos europeus esperam, justificadamente, que a União lhes proporcione segurança. Temos de assegurar uma maior coordenação na repressão dos crimes terroristas em toda a União. O terrorismo não conhece fronteiras. Não nos podemos tornar cúmplices involuntários devido à nossa incapacidade de cooperar.»

A Comissão espera que o alargamento das atribuições da Procuradoria Europeia às infracções terroristas que afectem vários Estados-Membros seja decidido, por unanimidade, na Cimeira de Sibiu, agendada para o dia 9 de Maio, para que possa então fazer avançar este processo, propondo uma alteração ao regulamento que institui a Procuradoria Europeia.

No que toca o terrorismo, a Comissão propõe ainda novas regras para que os conteúdos deste teor publicados na Internet sejam retirados no prazo de uma hora — “o período crítico em que se causam os maiores danos” -, como sublinha Juncker, ao mesmo tempo que se introduzem salvaguardas para proteger a liberdade de expressão na Internet e garantir que apenas são removidos os conteúdos terroristas.

“Não podemos continuar as querelas cada vez que chega um navio”

Chegar a um compromisso sobre a reforma no domínio da migração e das fronteiras é um dos maiores desafios da União, e ciente disso, a Comissão propôs agora os últimos elementos necessários para o alcançar. Não sem antes avisar: “não podemos continuar as querelas para encontrar soluções ad hoc a cada vez que chega um novo navio”. Para Juncker, “uma solidariedade temporária não chega. Necessitamos de uma solidariedade duradoura – hoje e cada vez mais”.

Duas das propostas apresentadas destinam-se a promover um compromisso geral sobre a reforma actualmente em curso do sistema de asilo da UE. O objectivo é garantir um novo nível de ambição para a Guarda Europeia de Fronteiras e Costeira e para a Agência da UE para o Asilo, reforçando-as “para assegurar que os Estados-Membros podem contar, em todas as circunstâncias, com o pleno apoio operacional da UE”.

Uma Guarda Costeira e de Fronteiras europeia totalmente equipada, com um corpo permanente de 10 mil agentes operacionais até 2020, mais poderes executivos, maior apoio no domínio dos regressos, maior cooperação com os países não-membros da EU e mais meios financeiros é o que a CE quer implementar, a par de dotar a Agência para o Asilo com as competências, instrumentos e meios financeiros que necessita para prestar um serviço rápido e completo aos Estados-Membros. A este nível, prevê-se apoio operacional em matéria de procedimentos de asilo, equipas conjuntas da UE para a gestão da migração, mais meios financeiros (com a Comissão a propor um orçamento de 321 milhões de EUR para o período 2019-2020, e de 1,25 mil milhões de EUR para o período 2021-2027). Mas também actualizar as regras vigentes na UE em matéria de regresso e definir os próximos passos a dar em matéria de migração legal. Até ao momento, os progressos da União para reformar o Sistema Europeu Comum de Asilo traduzem-se em cinco das sete propostas apresentadas pela Comissão, em 2016, em fase de finalização.

#SOTEU no Parlamento Europeu – © European Union , 2018 (EC – Audiovisual Service | Mauro Bottaro)

Uma terceira proposta visa uma política europeia em matéria de regresso mais forte e eficaz, criando, entre outras medidas, um novo procedimento de fronteira (pedidos de asilo rejeitados serão dirigidos directamente para um procedimento simplificado de regresso); propondo que as decisões de regresso terão de ser emitidas imediatamente após, ou em conjunto com qualquer decisão de cessação da permanência legal; promovendo programas de regressos voluntários; impondo regras claras em matéria de detenção; avançando com o novo Cartão Azul da UE, para atrair trabalhadores altamente qualificados e melhorar a competitividade da sua economia; ou instando os Estados-Membros a acelerar as acções concretas para reinstalar 50 mil pessoas com necessidade de protecção internacional até Outubro de 2019.

“Temos de combater o branqueamento através das fronteiras”

“Hoje, propomos medidas que nos permitam combater o branqueamento de capitais de forma mais eficaz através das fronteiras”. Com estas palavras, Juncker reafirma que a Comissão quer um novo reforço da supervisão das instituições financeiras da UE, para dar resposta às ameaças de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo, promovendo a estabilidade dos sectores bancário e financeiro.

Na sequência dos esforços desenvolvidos para concluir a União Bancária e a União dos Mercados de Capitais, a Comissão Europeia propõe agora a alteração do regulamento que cria a Autoridade Bancária Europeia, reforçando o seu papel na supervisão no domínio do combate ao branqueamento de capitais no sector financeiro.

O regulamento alterado irá assegurar que as infracções às regras contra o branqueamento de capitais são sistematicamente investigadas e que os supervisores nacionais no domínio do combate ao branqueamento de capitais cumprem as regras da UE e cooperam devidamente com as autoridades de supervisão prudencial; melhorar a qualidade da supervisão através de normas comuns, avaliações periódicas das autoridades nacionais de supervisão e avaliações de risco; promover o intercâmbio de informações sobre riscos e tendências no domínio do combate ao branqueamento de capitais entre autoridades nacionais de supervisão; promover a cooperação com países não pertencentes à UE sobre casos transfronteiras; e criar um novo comité permanente de combate ao branqueamento de capitais. Esta proposta para reforçar o papel da Autoridade Bancária Europeia irá agora ser debatida pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho.

“Chegou o momento de recorrer à cláusula-ponte”

Propondo um processo de tomada de decisões mais eficaz na Política Externa e de Segurança Comum (PESC), a Comissão quer tornar a UE mais forte na cena mundial. Segundo Jean-Claude Juncker “devemos dotar-nos de maior capacidade para falar a uma só voz quando se trata da nossa política externa”. Razão pela qual a Comissão quer que se passe para uma votação por maioria qualificada em domínios específicos das relações externas.

“Não em todos”, ressalva Juncker, mas em questões de direitos humanos e missões civis, por exemplo. “Tal é possível com os Tratados em vigor e creio que chegou o momento de recorrer à cláusula-ponte que nos permite passar para uma votação por maioria qualificada — a cláusula do ‘tesouro esquecido’ do Tratado de Lisboa”, explica.

Utilizar as regras da UE em vigor para passar da votação por unanimidade para a votação por maioria qualificada em determinados domínios da PESC permitiria à União Europeia ter maior capacidade para influenciar os acontecimentos a nível mundial e assumir responsabilidades a nível internacional, defende a CE. Concretamente no que respeita a responder colectivamente a atentados contra os direitos humanos; a aplicar sanções eficazes; e a lançar e gerir missões civis de segurança e de defesa.

A Comissão Europeia espera que se chegue a acordo, poucos dias antes das eleições europeias, na Cimeira de Sibiu, sobre o alargamento do âmbito da votação por maioria qualificada na Política Externa e de Segurança Comum, recorrendo ao artigo 31.º, n.º 3, do TUE – a denominada cláusula-ponte, aplicada a determinados casos nestas matérias.

Defendendo que “noutros domínios em que a maioria qualificada é a regra — nomeadamente em matéria de política comercial da UE — a experiência mostra que tal não só reforça o papel da UE como interveniente mundial, como também gera decisões mais eficazes”, a Comissão Juncker quer ainda ir a tempo de alargar este tipo de votação a domínios específicos da política externa e segurança.