Entre benefícios e prejuízos, uma boa parte da nossa existência é inevitavelmente passada no mundo virtual. E, comprovadamente, o tempo que por lá despendemos tem impactos no nosso bem-estar físico e psicológico. Uma extensa pesquisa realizada pelo Pew Research Center em parceria com a Elon University revela o que pensam mais de 1000 especialistas sobre o bem e o mal expectáveis na vida digital nos próximos 10 anos. O VER partilha algumas das ideias avançadas
POR
HELENA OLIVEIRA

Ao longo da próxima década, que impacto terão as mudanças na vida digital no que respeita ao bem-estar físico e psicológico das pessoas?

Esta é a questão de partida para uma extensa pesquisa realizada pelo Pew Research Center, em conjunto com a Elon University, e que contou com a participação de 1150 peritos em tecnologia, académicos e especialistas de saúde. Apesar de a maioria dos inquiridos acreditar que a vida digital irá continuar a expandir as fronteiras e as oportunidades das pessoas ao longo dos próximos 10 anos e que este mundo oferecerá mais bem do que mal, quase um terço dos entrevistados considera que a vida digital trará prejuízos para a saúde, para o fitness mental e para a felicidade. A boa notícia é que a esmagadora maioria acredita existirem também soluções para colmatar estas falhas. E mesmo os mais pessimistas que argumentam que o bem-estar humano será prejudicado, reconhecem igualmente que as ferramentas digitais continuarão a melhorar vários aspectos das nossas vidas. Em simultâneo, centenas de inquiridos sugeriram intervenções de natureza variada com vista a reduzir alguns dos problemas que se vislumbram e a enfatizar os benefícios. Adicionalmente, também um conjunto significativo dos optimistas confessa esperar alguns danos, especialmente para os que são mais vulneráveis.

O Pew Research Center e a Elon University identificaram também três grandes temas, subdivididos por vários assuntos, que serviram de orientação aos respondentes no que respeita ao futuro do bem-estar da vida digital. A saber:

Os que vão ajudar mais do que prejudicar

  • Conexão – A vida digital liga pessoas a pessoas, confere conhecimento, educação e entretenimento, em qualquer lugar, a qualquer hora e de forma acessível;
  • Comércio, governo e sociedade – A vida digital revoluciona a logística pessoal, dos consumidores, dos negócios e da sociedade, abrindo um mundo novo de oportunidades e opções;
  • Inteligência crucial – A vida digital é essencial para se aceder a um conjunto continuamente alargado de recursos, ferramentas e serviços em tempo real nas áreas da saúde, segurança e ciência;
  • Satisfação – A vida digital possibilita às pessoas melhorar, progredir ou reinventar as suas vidas, permitindo-lhes actualizarem-se continuamente, encontrar as suas ‘caras-metades” e fazer a diferença no mundo;
  • Qualidade em continuum – As ferramentas emergentes continuarão a expandir a qualidade e o enfoque da vida digital, e os resultados continuarão a ser mais do que positivos para a humanidade.

Os que vão prejudicar mais do que ajudar

  • Défices digitais– As competências cognitivas serão desafiadas mediante variadas formas, incluindo a capacidade para o pensamento analítico, a memória, a concentração, a criatividade, a reflexão e a resiliência mental;
  • Dependência digital – Os negócios de Internet continuarão a ser organizados em torno de ferramentas “doseadoras” de dopamina concebidas para viciar o público
  • Desconfiança/discriminação digital – A nossa identidade será reduzida e emoções como o choque, o medo, a indignação e a revolta serão armas utilizadas crescentemente para dividir e lançar a dúvida;
  • Pressão digital – excesso de informação + declínio na confiança e nas competências face a face = aumento dos níveis de stress, ansiedade, depressão, inactividade e insónia;
  • Perigos digitais – A estrutura da internet e o ritmo das alterações digitais convidam a ameaças crescentes às interacções humanas, à segurança, à democracia, aos empregos, à privacidade, entre outros temas.

Os remédios potenciais

  • Reimaginar os sistemas – As sociedades podem reavaliar tanto os contratos tecnológicos como a estrutura das instituições humanas – incluindo a sua composição, configuração, objectivos e processos;
  • Reinventar a tecnologia – As ‘coisas’ podem ser alteradas através da reconfiguração do hardware e do software para melhorar a performance centrada nos humanos e através da exploração de ferramentas como a inteligência artificial (IA), a realidade aumentada (AR) e a realidade mista (RM) – esta última também denominada como híbrida e que reúne as características da realidade virtual e da realidade aumentada;
  • Regulação – Governos e indústrias deverão criar reformas através de acordos no que respeita a normas, orientações, códigos de conduta e aprovação de regulamentação ou de leis;
  • Redesenhar a literacia dos media – Educar formalmente pessoas de todas as idades sobre os impactos da vida digital em termos de bem-estar e sobre o funcionamento dos sistemas tecnológicos, bem como encorajar utilizações apropriadas e saudáveis;
  • Recalibrar expectativas – A co-evolução dos humanos e da tecnologia tem o seu preço e a vida digital no século XXI não é diferente. As pessoas têm de evoluir gradualmente e ajustarem-se às mudanças;
  • Predestinado para falhar – Um conjunto dos inquiridos afirma que estas medidas poderão ajudar de alguma forma, mas – e tendo em conta a natureza humana – é muito improvável que estas respostas sejam eficazes o suficiente.

Vejamos o que alguns dos especialistas inquiridos pensam sobre algumas destas questões.

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Os optimistas e os benefícios da vida digital

Comércio, governo e sociedade: Pete Cranston, consultor em tecnologias digitais e aplicações de software

“Existe uma resposta do 1%, do primeiro mundo, que é lamentar o impacto da hiperconectividade em realidades como a interacção social, a capacidade de concentração, o trolling [provocara raiva e ira dos outros cibernautas] e das fake news. Apesar de tudo isto ser verdade, existe um exagero nos queixumes. Existe uma’ resposta-do-resto-do-mundo’ que se foca mais nos benefícios massivos oferecidos pela internet tais como o acesso às finanças, às compras online, às oportunidades ilimitadas de pesquisa gratuita, à possibilidade de nos mantermos em contacto com os que amamos e que vivem longe de nós (sendo que neste caso em particular, é preferível pensar nos trabalhadores migrantes do que nos jovens que tiram um gap-year). Ou em suma, os seres humanos desejam e precisam de se conectar e a Internet é aquilo que melhor responde a esse desejo”.

Inteligência crucial: Micah Altman, director de pesquisa e responsável pelo programa de ciência informática no MIT

“A maioria dos ganhos no bem-estar humano (económicos, de saúde, de longevidade, de satisfação com a vida, entre múltiplos outros) ao longo do último século e meio foram provenientes de avanços tecnológicos, os quais e por seu turno, tiveram origem em resultados de longo prazo de avanços científicos. Todavia, estes ganhos não foram distribuídos de forma equitativa, mesmo nas democracias. Muitos avanços nas áreas da ciência computacional, na ciência da informação, nas ciências sociais computacionais e estatística, entre outras, estão só a ser compreendidos na ‘tecnologia da actualidade’, o que pode ser traduzido num gigantesco potencial para melhorias de longo prazo. Por exemplo, as tendências recentes no sentido de uma maior abertura e acesso a publicações e dados científicos, bem como a recursos adicionais poderão ajudar pessoas em todo o mundo: no curto prazo, ao expandir o acesso a um conjunto alargado de informação útil; a médio prazo, ao diminuírem as barreiras à educação e, a longo prazo, através da melhoria do progresso científico”.

Satisfação: Stephen Dowes, investigador sénior no National Research Council Canada

“A internet irá ajudar mais as pessoas do que as prejudicar na medida em que quebra barreiras e as apoia nas suas ambições e objectivos. O racismo, a intolerância, a ganância e a criminalidade sempre existiram e não é surpreendente vê-las emergir. Mas a vasta maioria das ambições e objectivos humanos é muito mais nobre: as pessoas desejam educarem-se a si mesmas, desejam comunicar com os outros, desejam partilhar as suas experiências, criar redes de contactos, comércio e cultura. E tudo isto é suportado pelas tecnologias digitais e mesmo que estes objectivos possam parecer menos visíveis e disruptivos comparativamente aos que são menos desejáveis, são tão reais e muito mais massivos face a estes últimos”.

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As preocupações face aos malefícios

Défices digitais: Nicholas Carr, reconhecido autor de numerosos livros e artigos sobre tecnologia e cultura

“Neste momento temos um conjunto substancial de evidências empíricas e experienciais sobre os efeitos pessoais da internet, dos media sociais e dos smartphones. E as novidades não são boas. Apesar de existir um conjunto de pessoas que beneficia da conectividade – aqueles que sofreram isolação social ou física no passado, por exemplo – os dados comprovam que, no geral, o tipo de conectividade constante e intrusivo que caracteriza as vidas das pessoas tem consequências danosas, tanto a nível cognitivo como emocional. Entre outras coisas, as pesquisas revelas uma associação forte, e possivelmente casual, entre os que utilizam em ‘exagero’ os smartphones e a internet, com perdas de competências analíticas e de resolução de problemas, formação de memórias, pensamento contextual, profundidade conversacional e empatia, em conjunto com níveis elevados de ansiedade”.

Dependência digital: David S.H. Rosenthal, antigo cientista-chefe do Programa LOCKSS da Universidade de Stanford

“A economia digital tem como base a competição pelo consumo da atenção humana. Esta disputa já existe há muito tempo, mas a actual geração de ferramentas concebidas para consumir a nossa atenção é muito mais eficaz do que as das gerações que a precederam. As economias de escala e os efeitos de rede colocaram o controlo destas ferramentas num número muito pequeno de empresas excepcionalmente poderosas. E estas empresas são estimuladas pela necessidade de consumirem quantidades cada vez maiores da atenção disponível para maximizar os seus lucros. Como sabemos, a sociedade está já a sofrer os efeitos malignos derivados desta realidade (basta pensar nas eleições presidenciais de 2016). E mesmo que estas mesmas empresas quisessem implementar efeitos menos perniciosos, a verdade é que não fazem ideia como, nem o que isso iria representar para a sua rentabilidade. Assim, o que acontece é que estes gigantes digitais irão consumir, de forma crescente, toda a atenção disponível que encontrarem oferecendo tudo e mais alguma coisa para a captar e manter. E a forma mais eficaz de o fazer é criando medo no utilizador, diminuindo de forma crescente a confiança na sociedade”.

Desconfiança/discriminação digital: Judith Donath, autora de “The Social Machine, Designs for Living Online”

“Se o seu objectivo é conseguir que as pessoas comprem mais coisas, não vai querer uma comunidade de pessoas que olhe para o que tem, para os amigos e para a família que a rodeia e que pense para si mesma “a vida é boa, eu aprecio o que tenho e o que possuo é suficiente”; se o seu objectivo é manipular as pessoas, ou manter uma população ansiosa e com medo para que esta procure um líder poderoso e autoritário – não vai querer tecnologias e produtos que ofereçam às pessoas um sentimento de força e de calma ou bem-estar. Manter as pessoas num estado constante de ansiedade, raiva, medo ou apenas perseguidas pela sensação persistente e inevitável de que todos são melhor sucedidos do que elas mesmas pode ser extremamente lucrativo. Em suma, os investigadores e responsáveis pelo desenvolvimento tecnológico podem ser motivados por um desejo sincero de ir mais longe no que respeita à compreensão dos estados de espírito ou da cognição, etc., ou para criarem tecnologias que controlem as nossas respostas para o nosso próprio bem, mas a implementação efectiva destas técnicas e dispositivos será muito diferente, ou seja, mesmo com boas intenções, essas mesmas tecnologias serão utilizadas para reduzir o bem-estar, pois uma população num estado de medo e ansiedade é muito mais maleável e lucrativa”.

Pressão digital: Jason Hong, professor no Human Computer Interaction Institute na Universidade de Carnegie Mellon

“Há muitos anos, o famoso laureado com o Nobel [das Ciências Económicas] Herb Simon declarou que “a informação consome a atenção dos seus recipientes. Consequentemente, uma riqueza de informação cria uma pobreza de atenção. Herb Simon fez esta afirmação em 1971. Todavia, na altura, o desafio era só o excesso de informação. Hoje, temos perante nós organizações que disputam activamente a nossa atenção, que nos distraem com notificações, com notícias extremamente personalizadas, jogos viciantes, manchetes sensacionalistas e fake news. Estas organizações têm também um forte incentivo para optimizar os nossos loops de interacção, a partir de técnicas emprestadas da psicologia ou por testes A/B massificados para nos “apanhar”. A maioria das vezes é para aumentar as taxas de cliques, o número de utilizadores activos diários ou outras métricas, e também para aumentar as receitas. Existem dois grandes problemas com este tipo de interacções. O primeiro é o facto de nos sentirmos continuamente stressados, graças a um fluxo constante de interrupções combinado com o medo de se estar a perder alguma coisa [caso não estejamos ‘ligados’]. O segundo, e muito mais importante, é que o envolvimento com este tipo de conteúdos significa que estamos a despender menos tempo a construir e a manter relacionamentos com pessoas reais. Ter uma boa rede de amigos tem efeitos equivalentes, em termos de saúde, a deixar de fumar, sendo que as plataformas de hoje, apesar de não intencionalmente, são desenhadas para nos isolar em vez de nos ajudarem a construir relacionamentos duradouros com os outros”.

Perigos digitais: Tiziana Dearing, professora na Boston College School of Social Work

“O bem-estar das pessoas será negativamente afectado pela tecnologia digital devido a três razões por excelência. 1) Porque evoluímos como criaturas sociais e interpessoais e, por isso mesmo, somos incapazes de nos adaptar aos comportamentos, necessidades e até mesmo à ligação necessária para prosperar de forma sócio emocional e fisicamente num mundo digital ao ritmo que a mudança tecnológica exige. 2) Porque a tecnologia digital – desde a sua concepção aos algoritmos – evoluiu sem consideração suficiente pela empatia social e os seus preconceitos inerentes. 3) E porque nunca soubemos como mitigar a capacidade que certas formas de tecnologia criaram para sermos o pior de nós mesmos com os outros. Não me interpretem mal. Os desenvolvimentos tecnológicos oferecem um tremendo potencial para curar doenças, para resolver problemas humanos massivos, para nivelar o campo da informação, etc.. Mas a nossa capacidade de nos adaptar enquanto espécie acontece a um ritmo muito mais lento e os nossos comportamentos humanos tornam-se impeditivos dessa adaptação ideal”.

Fonte: The Future of Well-Being in a Tech-Saturated World

Editora Executiva