Desde que haja duas pessoas, há, forçosamente, diferentes olhares e maneiras de ser, estar, sentir e viver o amor. Descartes disse o “penso, logo existo”, eu prefiro o “sinto, logo existo” ou o “amo, logo existo”
POR JOSÉ MANUEL ARROBAS

Era para ter escrito, simplesmente, sobre Saúde Mental, o tal parente pobre da medicina, mas que é um tema cada vez mais importante nestes nossos dias conturbados que há muito temos vindo a viver.

E quando digo pobre é mesmo pobre, já que basta consultar o Orçamento de Estado  para a Saúde, e ver que apenas uns miseráveis 3% são encaminhados para a Saúde Mental, abandonada assim à sua sorte, sem norte nem oriente, pois o primeiro e único relatório epidemiológico sobre Saúde Mental feito até hoje por cá, já remonta, no seu começo, a 2007, com publicação em 2009/2010. 

Depois saíram mais dois Programas em 2014 e 2017, com alguns dados e algumas boas e com certeza inteligentes intenções, aquelas de que o mundo está cheio,  mas . . . na prática, a teoria é outra, citando Victor da Cunha Rego.  A verdade é que nestes últimos seis anos, e com a pandemia pelo meio, onde tantas coisas aconteceram a nível económico, social e, num aspecto muito importante, porque dele podem derivar muitos outros, a nível relacional, nas relações interpessoais e afectivas.

Agora, neste momento, não se sabe quantas pessoas estão em sofrimento e muito menos o que as faz sofrer.

 As pessoas tornaram-se, de uma maneira geral, diferentes, mais distantes, menos tolerantes, em suma, menos felizes, com os outros, com o mundo e consigo próprias. Os casais, e é disso que vou falar mais adiante, além de já estarem a viver umas relações mornas, arrefeceram ainda mais, muitas vezes completamente, porque não se aguentaram mais tempo juntas do que aquele a que a rotina os tinha habituado. 

E começo por me debruçar sobre as relações humanas,  tanto as interpessoais, como com o mundo de uma maneira geral e, por fim, consigo mesmas.

O amor, essa palavra tão banalizada, tem sofrido grandes golpes ao ponto de se dizer que, hoje em dia, já não há grandes paixões, as relações entre as pessoas deixaram de ser amorosas para serem apenas de acasalamento, de companheirismo, num prazer sem continuidade, animal, fugaz.

Aquelas paixões que ficaram na História, porque os grandes tragediógrafos por elas se interessaram, como o Romeu e Julieta, (hoje, quando muito, há uma sobremesa com esse nome), Heloísa e Abelardo ou ainda o Tristão e Isolda, só para citar uns exemplos sobejamente conhecidos, parecem não ter lugar na sociedade hodierna.  

Hoje em dia, ao banalizarem-se as relações de afecto e substituindo-as por simples e efémeras relações sexuais, deixa-se instalar, paulatinamente, a banalização do mal de que falou Hannah Arendt, não que o sexo seja mau em si mesmo, mas precisa de conteúdo, se não é reduzido a um simples acto animal.

Até as amizades perderam aquela luz de que falam tantos escritores, poetas e filósofos, como por exemplo a de Schiller com Goethe, indo apenas ao romantismo alemão, mas entre muitas outras,  para se reduzirem apenas a relações de interesse ou de conveniência. Olha-se para o céu estrelado e não há novos Gémeos no firmamento, por exemplo.

As pessoas já raramente resolvem e se empenham em conhecer de facto a pessoa com quem escolhem viver. E, o resultado por demais evidente, é que raramente vivem bem, raramente acreditam que “omnia vincit amor”, ou, que o amor tudo vence. Não, porque as vidas modernas são vulgarmente muito saltitantes, numa busca utópica de alguma coisa diferente, e embora Karl Jaspers tenha dito que “Ser, é ser diferente” ou Gianni Vattimo tenha escrito sobre a “Aventura da Diferença”, não é nesta diferença subjectiva que assentam as suas buscas, mas numa diferença objectiva, calculada, especulativa, que só preenche o aqui e o agora, e depois deixam-se ficar numa jeremiada, num queixume, porque se sentem confrontados com a célebre frase de Marguerite Duras, “muito cedo, foi tarde demais na minha vida”. E ela também diz que ” o amor não tem férias, nem nada que se pareça; o amor deve-se viver plenamente, com o seu aborrecimento e tudo”. 

Mas quem é que está para isso hoje em dia? O imediatismo, o consumismo, o prazer pelo prazer e sem grandes preocupações nem consequências, andam por ai à solta, em muitas e “desvairadas” formas, parafraseando um pouco Fernão Lopes. E indo a Albert Camus, “porque é preciso amar raramente, para amar muito?”, não cabe hoje nas ditas relações amorosas à nossa volta.

Também sei que tudo isto tem épocas, fases, crises, mais ou menos bem ou mal vividas. São morais,  são tempos como dizia Cícero em bom latim nas suas Catilinárias “ó tempora! ó mores!”.

Os valores, a ética e a responsabilidade, são temas cada vez mais difusos, cada vez mais assentes na anomia, na falta de ética e na infantilização dos adultos. Perde-se a noção de transcendência, e fica-se cada vez mais longe de Deus.

Alexander Soljenitsin, no seu discurso à Academia Sueca, quando recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1970, depois de falar das suas experiências nos Gulag russos e nas torturas que sofreu, acabou a dizer mais ou menos isto, ” e tudo isso porque os homens se esqueceram de Deus”.

E antes de entrar no tema fulcral deste texto, e para aliviar um pouco antes de falar de coisas mais sérias e que tanto ferem a saúde mental das pessoas, lembrei-me de citar Henny Youngman, o célebre violinista e comediante norte americano que dizia a certa altura : “algumas pessoas perguntam-me sobre o nosso longo casamento; e eu respondo: damo-nos tempo para ir a um restaurante duas vezes por semana; sentamo-nos à luz da vela, comemos um bom jantar com música de fundo e até dançamos. Ela vai às quartas e eu costumo ir às sextas”. 

O amor entre duas pessoas, bem como as diferenças que existem entre um homem e uma mulher, são temáticas constantes e inesgotáveis. Têm até direito a investigações e estudos, mais ou menos científicos,  (Karl Popper chamar-lhe-ia pseudocientíficos), nas mais variadas universidades e institutos espalhados pelo mundo, ou estão patentes em acesas discussões nos Parlamentos, nomeadamente pelo debate de temas como o divórcio, o casamento ou a união de facto entre pessoas do mesmo sexo ou não.

Desde que haja duas pessoas, há, forçosamente, diferentes olhares e maneiras de ser, estar, sentir e viver o amor. Descartes disse o “penso, logo existo”, eu prefiro o “sinto, logo existo” ou o “amo, logo existo”. 

Eles e elas muitas vezes não se entendem porque não foram capazes  (ninguém os ensinou) de perceber as diferenças que existem entre ser homem ou ser mulher. E já o meu Mestre Prof. Barahona Fernandes dizia que “o homem adoece quando deixa de se perceber”. E os factores não são só endógenos, mas também e muito, exógenos, como as crises financeiras, os filhos, as guerras e ultimamente a pandemia que entrou nas casas de toda a gente. Não se estava preparado para ela e todos os problemas se agudizaram, sendo um deles, as relações entre o casal, e a família, levando-o a rupturas e suas inevitáveis sequelas, deixando surgir angústias, ansiedades e depressões (as pessoas pensam só que a grande depressão foi há 100 anos), e aí está a saúde mental a aparecer em força e a desencadear nas pessoas a necessidade de ajuda. Mas o orçamento é escasso.

Nas escolas, e em particular na disciplina de educação sexual, os temas andam à roda das diferenças anatómicas e fisiológicas, ou de como usar o preservativo ou o penso higiénico, deixando para trás o psíquico, o anímico, o intelectual ou o espiritual que em cada um existe, nas suas doses e formas distintas, tanto herdadas como adquiridas. Não se fala de amor, de amar. Muito menos de como há formas tão diferentes, tão únicas e especiais, de se viver amorosamente uma relação entre duas pessoas.

O homem não é mulher nem a mulher é homem, por muito que haja sempre uma parte de um no outro. O animus e a anima de que fala Carl Gustav Jung.

E, por força de uma natureza que não consente a geração espontânea, todos nós somos filhos de um homem e de uma mulher.

Infelizmente nem toda a gente é fruto de uma relação amorosa, pois muitos são apenas filhos de uma relação sexual. E se numa relação amorosa pode haver sexo, nas relações sexuais, normalmente, não pode haver amor. É aquilo que é e mais nada.

O amor é como a vida. Nasce, desenvolve-se e mal ou bem vai fluindo. Até um dia . . .  e só quando o amor é grande e verdadeiro, continua pela vida fora num “perpetuum mobile”.

Desconhece-se se o amor é uma arte, uma técnica ou uma sagesse qualquer. Sabe-se, contudo, que contém em si um princípio de incerteza, físico, químico ou anímico. Com a  “Arte de Amar”, Ovídio mereceu o ostracismo em Tomes, nos confins do Império Romano do Oriente, hoje Constança, na Roménia, só  porque Augusto não gostou. Curioso, foi ter sido em Tomes que ele ouviu falar no nascimento de Jesus. Vintila Horia escreveu depois o “Deus Nasceu no Exílio”, onde conta tudo isto. Ovídio vingou-se pondo ao seu cão o nome de Augusto. Ao menos podia dar-lhe uns pontapés, pobre cão, mas parece que nunca se converteu a Zamólxis, deus dos Getas. 

O ser humano continuará sempre vário, na sua singularidade e na sua pluralidade, em busca da harmonia dos contrários, em busca de uma complementaridade, sempre em constante e contínua mutação e evolução, raramente conseguindo viver sozinho no mais perfeito egotismo.

O que é fundamental, senão o mais importante, é a pessoa Ser, ser sempre, aquilo que é e não aquilo que o outro pensa que ela é ou gostava que ela fosse. É neste ponto que, muitas vezes, começam os desentendimentos e as dificuldades de as pessoas se ajustarem e viverem juntas sem se sentirem frustradas. No entanto, não esquecer o princípio da incerteza, que até deu um Prémio Nobel a Heisenberg.

Acredito que o amor existe, mas também acredito, que há sempre imensas dificuldades que devem ser ultrapassadas para que o amor não entre em perda e acabe por fracassar e sucumbir. É uma procura de excelência, mas não tem a ver com a gestão de empresas. Amar também é um risco, mas, como dizia o apaixonado Soren Kierkegaard, arriscar é perder momentaneamente o equilíbrio. Não se arriscar é perder-se.

O que proponho é que se dê lugar ao acaso, aquele pseudónimo que Deus usa quando não quer assinar. E como a ACEGE é cristã, há que, por fim, pôr sempre  tudo nas mãos de Deus.

E acabo com Alberto Caeiro:
Quem ama nunca sabe o que ama,
Nem sabe porque ama,
Nem o que é amar.
Amar é a eterna inocência
E a única inocência é não pensar

Experimente amar, leitor, e é tudo. Já tem imenso com que se entreter. Quer-se do outro tudo e nada. Quer-se o outro. E ao querer-se o outro, queremo-nos a nós no outro e ele em nós.

E depois das variações sobre o amor, sente-se num sofá e oiça as Variações Goldberg, de Johann Sebastian Bach.

José Manuel Arrobas

Tem 77 anos, tem 3 filhos e 16 netos. É psicoterapeuta, fez uma pós-graduação em ecologia bio-social e humana com, entre outros, o grande mestre Edgar Morin. É mestre em pedagogia da saúde, Doutor em Psicologia, co-fundador da Sociedade Portuguesa de Psicoterapia centrada no cliente e de abordagem centrada na pessoa e fundador da nova licenciatura em psicopedagogia curativa. Foi docente em 4 faculdades e Institutos de ensino superior e autor de duas séries televisivas na RTP1: “A grande mentira” e “Droga, Máscara ou Realidade”. Autor de 10 livros, alguns deles com uma vertente forte na emoções, como é o caso de “Uma estranha amizade” ou centrados nas relações das pessoas em “Elas e o Amor “ e a “A Empresa como pessoa”,irá lançar agora "A Estranha História de um Sonâmbulo Mitómano".