Ainda não estão no mercado, mas já foram compradas ou reservadas, em doses astronómicas, pelos países mais ricos do mundo. Depois dos resultados promissores de pelo menos duas vacinas candidatas contra a Covid-19, rapidamente foram esquecidos os contratos, as promessas, as responsabilidades, a ética e a simples premissa de que a vitória contra a pandemia só será vitória se abranger todos os países e não apenas alguns. Os modelos actuais prevêem que não haverá vacinas suficientes para cobrir as necessidades do planeta até 2024, mas os países ricos, representando 14% da população mundial, já têm garantidas pelo menos 9 mil milhões de doses para o seu uso exclusivo. Quanto aos outros, e como sempre, logo se verá
POR HELENA OLIVEIRA

Depois de a Pfizer-BioNtech ter reportado a eficácia da vacina que está a desenvolver para a prevenção da Covid-19, a empresa de biotecnologia Moderna, sedeada em Cambridge, no Massachusetts, anunciou igualmente um elevado grau de eficácia atingido no desenvolvimento da sua vacina, o qual ronda os 95%.

Ou seja e em pouco menos de duas semanas, as análises provisórias dos dados dos ensaios em fase 3 destas farmacêuticas são notavelmente promissores (mesmo com significativas reservas) e dão ao mundo um bom motivo de esperança relativamente a um futuro menos sombrio. Mas esta esperança muito dificilmente será para todos.

Com estas duas boas novidades, a corrida para a compra do maior número possível de vacinas aumentou de velocidade. De acordo com a organização não-governamental Global Justice Now, mais de 80% de doses (cerca de mil milhões) da vacina da Pfizer já foram vendidas a um pequeno grupo dos países mais ricos do mundo – os quais representam apenas 14% da população global – o mesmo acontecendo com a futura vacina da Moderna, com 780 milhões de doses a serem “prometidas” aos governos ricos, ou 78% dos mil milhões de doses que a empresa de biotecnologia diz ter capacidade para produzir até ao final do próximo ano.

A “pré-reserva” de vacinas pelos países mais ricos (v. abaixo) não é um dado novo nesta pandemia global e têm sido muitos os alertas, por parte de variadíssimas organizações, para a necessidade de se ter em conta que esta vacina, quando nascer, “terá de ser para todos”. Apesar dos esforços de vários organismos como a ONU, a UNICEF, a OMS, A GAVI ( Aliança Global para Vacinas e Imunização), entre outros, para garantir a equidade na distribuição das vacinas para países ricos e pobres, na prática não é o que está a acontecer.

“Os governos deverão maximizar o acesso à vacina Covid-19 por parte de todas as pessoas em todo o mundo, tanto quanto os que financiam vacinas com dinheiros públicos deverão ser transparentes no que respeita aos termos e condições associadas às mesmas”, afirma a Human Rights Watch (HRW) num relatório divulgado em finais de Outubro.

O relatório, intitulado “Whoever Finds the Vaccine Must Share It – Strengthening Human Rights and Transparency Around Covid-19 Vaccines” analisa três barreiras significativas ao acesso universal e equitativo a qualquer vacina que venha a ser segura e eficaz – transparência, fornecimento e preços, alertando ainda para a obrigação dos governos – em matéria de direitos humanos – de assegurarem que os benefícios científicos da investigação que financiam com dinheiros públicos sejam partilhados o mais amplamente possível para proteger a vida, a saúde e os meios de subsistência das pessoas. Adicionalmente, a HRW argumenta também que a utilização de dinheiros públicos sem informação sobre os seus termos e condições de utilização mina os princípios dos direitos humanos em termos de transparência e responsabilidade.

“Os governos devem unir-se urgentemente, ser transparentes e cooperar para partilhar os benefícios da investigação científica que financiam para ajudar a humanidade”, defendeu Aruna Kashyap, conselheira sénior de negócios e direitos humanos da Human Rights Watch e co-autora do relatório. “Já morreu mais de um milhão de pessoas e prevê-se que mais um milhão morra até ao final do ano” e “os governos deverão usar os seus poderes de financiamento e de regulamentação para assegurar que o lucro das empresas não determine quem pode ou não obter as vacinas”.

Para a realização deste relatório, a Human Rights Watch entrevistou diversos especialistas de áreas distintas como a do acesso a medicamentos, da propriedade intelectual e dos direitos humanos, analisando igualmente a legislação internacional sobre direitos humanos, leis e políticas nacionais e uma vasta gama de documentos e fontes secundárias disponíveis ao público. O relatório baseia-se em mais de seis meses de relatórios globais sobre os impactos da pandemia em diferentes populações, incluindo nos trabalhadores da saúde.

E conclui que existe uma quase total falta de transparência em torno do financiamento governamental que tem dificultado bastante a compreensão das implicações no que respeita ao acesso global às vacinas. De acordo com o relatório, alguns governos estão a negociar directamente acordos bilaterais opacos com empresas farmacêuticas ou outras entidades para reservar futuras doses de vacinas, na sua maioria para seu uso exclusivo. Em Setembro de 2020, a Oxfam International já tinha alertado para o facto de os países de elevado rendimento terem reservado, até então, 51% das doses de vários dos principais candidatos à vacina, embora esses países representem apenas 14% da população mundial.

Adicionalmente, muitas empresas farmacêuticas comprometeram-se a colocar a saúde global acima dos lucros durante a pandemia, mas documentos divulgados ao Corporate Europe Observatory – após longos atrasos – revelam que a Federação Europeia das Indústrias e Associações Farmacêuticas (EFPIA) fez lobby contra um instrumento concebido para facilitar o acesso equitativo e a fixação de preços para tratamentos pandémicos na Europa.

Em Julho de 2020, o Parlamento Europeu adoptou uma resolução apelando para que “a aquisição conjunta da UE seja utilizada para a compra de vacinas e tratamentos COVID-19, e para que a mesma seja utilizada mais sistematicamente para evitar que os Estados-membros concorram entre si e para assegurar o acesso igual e a preços acessíveis a medicamentos e dispositivos médicos importantes” Mas o Corporate Europe Obervatory denuncia também que “primeiro vários Estados-membros da UE, depois a Comissão Europeia, iniciaram negociações de acordos de compra antecipada com empresas farmacêuticas para milhões de doses de vacinas que podem ou não ser bem-sucedidas”. De acordo com este mesmo observatório, estes acordos lucrativos estão a ser negociados “no escuro”, utilizam dinheiro público para eliminar o risco financeiro e – mais preocupantemente ainda – a responsabilidade das empresas farmacêuticas que tentam desenvolver vacinas Covid-19, “sem condições de interesse público correspondentes, por exemplo, relacionadas com preços e disponibilidade”.

“A falta de transparência sobre estas negociações de vacinas, e os contratos acordados – particularmente em relação ao preço, propriedade intelectual, responsabilidade, e outras condições – precisam de ser urgentemente rectificados”, alerta ainda o Corporate Europe Obervatory”, na medida em que “o interesse público deve sobrepor-se à ‘confidencialidade comercial’ durante uma pandemia global, em nome da segurança dos pacientes, da confiança do público, e da confiança geral nas vacinas”. Mais grave ainda parece ser o comportamento da Europa – cedendo a argumentos que alimentam o nacionalismo vacinal e a concorrência entre Estados – “que apenas fará com que a pandemia dure mais tempo, o que levará a uma maior perda de vidas”.

Países pobres podem apenas contar com a COVAX, mas sem garantias de poderem aceder à vacinação

Os modelos actuais prevêem que não haverá vacinas suficientes para cobrir a população mundial até 2024, mesmo que a capacidade de fabrico possa ser expandida com investimentos específicos. Dados compilados por investigadores do Global Health Innovation Centre da Duke University, a 11 de Novembro último, mostram que 9,5 mil milhões de doses de vacinas Covid-19 foram já reservadas, mesmo antes da aprovação pelo mercado de qualquer uma das candidatas.

Neste contexto, a COVAX (mecanismo global concebido para garantir o acesso rápido, justo e equitativo às vacinas COVID-19 em todo o mundo e sobre o qual o VER já escreveu) e outras alianças são fundamentais para assegurar uma distribuição equitativa de vacinas para os países de médio e baixo rendimento.

A COVAX pretende fornecer cerca de dois mil milhões de doses até ao final de 2021 para proteger as populações de alto risco em todo o mundo. A longo prazo, o objectivo é fornecer aos países financiados doses suficientes para cobrir 20% da sua população, enquanto os países “auto-financiados” podem adquirir um número de doses distinto para diferentes níveis de cobertura populacional.

A maioria dos países de alto e médio rendimento comprometeram-se a financiar a COVAX, juntando-se a países de rendimento baixo que serão cobertos enquanto países financiados. Há ainda alguns que confirmaram o seu interesse em aderir, mas que ainda não assumiram um compromisso financeiro vinculativo, sendo relevante o facto de a grande maioria da população mundial viver em países que participam na COVAX.

Apesar de este compromisso público de equidade, os países individuais são incentivados a comprar o maior número possível de doses de vacinas (e do maior número possível de candidatos) a fim de aumentar as hipóteses de cobrir a sua própria população. Antes mesmo de qualquer vacina ser aprovada para o mercado, e como já referido acima, as compras confirmadas cobrem 6,4 mil milhões de doses, com outras 3,2 mil milhões de doses actualmente em negociação ou reservadas como expansões opcionais dos acordos já existentes.

De acordo com Suerie Moon, co-directora do Global Health Centre do Graduate Institute of Geneva e especialista em saúde global, governação e doenças infecciosas, “os países de alto rendimento adoptaram uma abordagem semelhante à da ‘lei da selva’ quando se trata de garantir o fornecimento de possíveis vacinas contra o coronavírus”.

Estes acordos directos feitos por países de elevado rendimento (e alguns de rendimento médio) resultam numa fatia mais pequena do bolo disponível para uma distribuição global equitativa. Ou seja, a grande parte do bolo resultará numa maioria de vacinas destinadas a países de alto rendimento e em menos doses disponíveis para países de baixo e médio rendimento e para parcerias centradas na equidade como a COVAX. Ainda de acordo com a pesquisa feita pelo Global Health Innovation Centre, muitos países de rendimento elevado cobriram as suas apostas comprando antecipadamente doses suficientes para vacinar a sua população várias vezes, os quais podem dar-se ao luxo de adquirir um portefólio de vacinas candidatas, na esperança de que uma ou mais consigam passar pelo processo regulamentar. A maioria dos países de alto rendimento tem conseguido negociar compras através do investimento de grandes quantidades de fundos públicos em investigação e desenvolvimento de vacinas COVID-19, alavacando o seu poder de compra para fazer negócios em larga escala.

Como afirma ainda Sueeri Moon, “infelizmente, o que temos vindo a testemunhar nos últimos meses são os países que têm os maiores recursos, principalmente na Europa, na América do Norte, no Japão, entre outros, a conseguirem obter um volume muito, muito maior de vacinas seguras do que o resto do mundo”.

Adicionalmente, será necessário também financiamento para a distribuição local e capacidade de implementação para assegurar que as vacinas atribuídas sejam devidamente administradas.

O Banco Mundial anunciou, recentemente, uma tranche no valor 12 mil milhões de dólares para ajudar os países em desenvolvimento a financiarem a compra e a distribuição de vacinas Covid-19, testes, e tratamentos para os seus cidadãos. O financiamento, que visa apoiar a vacinação de cerca de mil milhões de pessoas, faz parte de um pacote global de 160 mil milhões de dólares do Grupo do Banco Mundial (WBG)  para ajudar os países em desenvolvimento a combater a pandemia da Covid-19, constituindo este novo valor um acréscimo aos programas de resposta de emergência COVID-19 da mesma organização que estão já a chegar a 111 países. O programa visa também oferecer apoio técnico para que os países mais pobres possam preparar-se para a administração de vacinas em grande escala, em coordenação com parceiros internacionais. Ao implementar o programa, o Banco Mundial apoiará os esforços multilaterais actualmente liderados pela OMS e pela COVAX.

Por seu turno, a UNICEF e a COVAX estão também a trabalhar para assegurar a preparação adequada dos países mais pobres, incluindo o envio de seringas e caixas descartáveis, que viajam por mar devido ao seu volume, pelo que devem ser enviadas muito antes de alguma vacina estar pronta, a qual, e caso tudo corra como o previsto, terá de ser enviada por via aérea.

No entanto, será necessário mais financiamento para assegurar que o transporte e o complexo armazenamento a frio, os sistemas de informação e os fornecedores com formação adequada estejam prontos para dar início à vacinação em escala. Relevante é também o facto de existir uma preocupação crescente a nível mundial de que a desconfiança e a desinformação sobre a COVID-19 e sobre as potenciais vacinas poderão impedir a sua utilização.

Ou seja, o que se afigura como uma grande esperança poderá não passar de uma miragem para uma boa parte da população, sendo que, e como afirma o responsável da GAVI, Seth Berkly, “com doenças infecciosas, ninguém está seguro até que todos estejam seguros”. Com tudo o que já sabe sobre a pandemia e com o mundo a testemunhar, na primeira fila, esta real e aterradora história, só esta premissa deveria ser suficiente para garantir que a vitória só será vitória se abranger todos os países e não apenas alguns.

Editora Executiva