Quem o afirma é Miguel Pina e Cunha, a propósito de uma conferência promovida pela Nova SBE sobre criação de valor partilhado. Para o director académico do The Lisbon MBA, este ainda emergente conceito desafia a velha noção defendida por Milton Friedman de que “o negócio do negócio é apenas o negócio”. Em entrevista, o Professor afirma ainda que as empresas adoptam, crescentemente, lógicas institucionais híbridas, cruzando a lógica empresarial com a social
POR HELENA OLIVEIRA

O conceito de criação de valor partilhado surgiu, pela primeira vez, em 2006, num artigo publicado a duas mãos por Michael Porter e Mark Kramer, intitulado “Strategy & Society: The Link Between Competitive Advantage and Corporate Social Responsibility, e que valeu aos autores o prémio “melhor artigo publicado na Harvard Business Review” conferido pela McKinsey. Todavia, foi só cinco anos mais tarde, em Janeiro de 2011, que este novo conceito começou a gerar verdadeiro impacto, quando voltou a aparecer nas páginas da prestigiada revista, de uma forma mais abrangente e organizada, e assinado pelos mesmos autores, desta feita com o título “Creating Shared Value: Redefining Capitalism and the Role of the Corporation in Society”. No ano seguinte, Kramer e Porter, com a ajuda da firma de consultoria sem fins lucrativos, FSG, fundaram a Shared Value Initiative, com o objectivo de partilhar o conhecimento e as práticas de várias empresas que abraçaram o conceito de valor partilhado e o têm vindo a implementar, globalmente e, em muitos casos, com sucesso comprovado.De uma forma muito geral, a premissa central subjacente à criação de valor partilhado reza que a competitividade de uma empresa e a saúde das comunidades que a envolvem são mutuamente dependentes. Reconhecer e capitalizar as relações existentes entre o progresso económico e social terão, para os defensores do conceito, um enorme poder para “fazer soltar” a próxima onda de crescimento global, bem como a capacidade de redefinir o capitalismo tal como o conhecemos.

Aplaudida por várias empresas e especialistas da gestão como uma espécie de evolução ou revolução dos princípios que integravam, há já alguns anos, a responsabilidade social corporativa (RSC), este novo conceito foi igualmente alvo de muitas críticas, em especial por, aparentemente, não trazer nada de inovador aos programas “normais” de responsabilidade social. Em Março deste ano, quatro reputados académicos – Andrew Crane e Dirk Matten (York University), Guido Palazzo (University of Lausanne) e Laura J. Spence (University of London), publicaram, na California Management Review, um artigo que funciona como uma espécie de resposta ao de Porter e Kramer, apropriadamente intitulado “Contesting the Value of ‘Creating Shared Value’” e no qual identificaram quatro falhas principais na estratégia da criação de valor partilhado:

1) A sua não originalidade, na medida em que há décadas que a literatura de gestão inclui abordagens similares e que a CVP está apenas a conferir um novo rótulo a práticas já desenvolvidas por várias empresas, mas sob a égide da “RSC estratégica”, inovação social” ou “gestão de stakeholders”;

2) O facto de ignorar as tensões entre os objectivos sociais e económicos, na medida em que se existem grandes oportunidades nas quais o sucesso do negócio pode estar alinhado com o progresso social, existe um conjunto muito maior de problemas sociais, especialmente causados pelas próprias empresas e onde os objectivos sociais e económicos entram em conflito inevitável;

3) A ingenuidade do conceito face ao assegurar da conformidade e governança da empresa [o business compliance] – numa reminiscência da famosa crítica de Friedman à RSC, na medida em que a “CVP toma como dado adquirido o cumprimento da lei e das normas éticas, ao mesmo tempo que visa mitigar qualquer dano causado pela empresa”, o que, para os autores em causa, não consiste, em caso algum, como uma estratégia útil para a responsabilidade corporativa ou uma forma sã de “re-legitimar” os negócios;

4) E, por último, o facto de a CVP estar assente num conceito superficial do papel das empresas na sociedade. Os académicos em causa defendem que a CVP deveria, supostamente, “remodelar o capitalismo” mas, na verdade, não difere em nada do que realmente conferiu o mau nome ao mesmo – um enfoque cego no auto-interesse individual da empresa.

Críticas à parte e na medida em que existem várias multinacionais que estão a implementar o conceito de criação de valor partilhado com aparente sucesso, a SonaeSierra desafiou a NOVA SBE para esta colocar na sua agenda de conferências a temática em causa. Para além da especialista internacional em centros comerciais, a IBM, a Unilever e a Nestlé responderam ao repto e explicaram de que forma é que a CVP está a ser abraçada e implementada nas suas estratégias de negócio [os estudos de caso correspondentes fazem igualmente parte desta newsletter especial]. Enquanto director académico do The Lisbon MBA, Miguel Pina e Cunha, professor de Comportamento Organizacional, Liderança e Gestão da Mudança e Teoria da Organização Positiva, foi o anfitrião da conferência e animou o debate que se lhe seguiu. Em entrevista, Pina e Cunha apresenta uma visão moderadamente optimista do verdadeiro valor destes conceitos emergentes, sublinhando a capacidade limitada do Estado para resolver todos os “problemas sociais” e assegurando que as virtudes praticam-se, não se apregoam.          

No seguimento da conferência que a NOVA SBE apresentou na passada terça-feira – sobre a importância da criação de valor partilhado (CVP) – e enquanto Professor de Gestão, que comentários tece no que respeita aos vários movimentos e fases que a responsabilidade social corporativa tem atravessado, nomeadamente partindo do princípio que é possível, em termos de cultura organizacional e de estratégia, aliar o “fazer bem” ao “gerar bom retorno”?

A gestão acompanha a evolução da sociedade. Nesse sentido, a noção de valor partilhado resulta parcialmente do entendimento de que o Estado tem uma capacidade limitada para resolver problemas que, em princípio, estarão na sua esfera. No fundo, a ideia de VP desafia a noção de que o negócio do negócio é apenas o negócio.

No artigo publicado por Porter e Kramer na HBR sobre este conceito de CVP, os autores argumentavam que nem todo o lucro é igual. Para os mesmos, o lucro que envolve o valor partilhado permite o progresso da sociedade e o crescimento mais acelerado da empresa, prevendo igualmente que a incorporação de questões societais na sua estratégia e operações consistiria na próxima grande transformação no pensamento de gestão. Mas mais longe ainda ambicionavam ir quando escreveram, sem reservas, que os modelos de valor partilhado representariam a próxima onda evolutiva do capitalismo. Numa altura em que novas formas de capitalismo parecem estar a emergir, qual a sua visão sobre a evolução do conceito para um futuro a médio prazo?

O capitalismo é um assombroso processo de resolução de problemas, mas estimula alguns excessos. O VP representa uma tentativa de, simultaneamente, aumentar o tamanho do bolo e aumentar a legitimidade organizacional. As empresas mais escrutinadas, nomeadamente as multinacionais, têm a ganhar em desenvolver estes dois processos.

Na introdução que fez à temática em discussão, sublinhou que, na actualidade, estamos – ou devíamos estar – perante uma “articulação de desafios”, a qual corresponde ao binómio “melhor sociedade e empresas mais competitivas”. No papel de professor, mas também de mentor, de uma geração de futuros líderes, quais as expectativas que tem face ao abraçar desta articulação por parte dos líderes de amanhã?

Penso que a expectativa ou o desejo de que as organizações se movam por um propósito amplo deverá sempre incluir, naturalmente, a criação de valor para os accionistas. Mas a verdade é que as organizações adoptam, cada vez mais, lógicas institucionais híbridas, cruzando a lógica empresarial com a social. Não esquecendo que uma empresa privada é um veículo para a resolução de problemas pela via do mercado e da competição que este comporta e não um substituto das responsabilidades do Estado.

O que começou por ser uma nova “buzzword” da gestão, aparecendo nas páginas da Harvard Business Review e nas suas congéneres, dando o mote para algumas conferências e a inspiração para a criação de comunidades em seu torno, assume-se hoje como um movimento, com cada vez mais adeptos e novos princípios organizacionais para a inovação e crescimento. Estamos a falar da cruzada em busca do propósito, o qual foi referido por si no encerramento do debate. Até que ponto este “propósito” pode substituir as “Friedman-manias” [expressão sua também] e alterar os objectivos/prioridades dos líderes e, consequentemente, das organizações que lideram?

A ideia de propósito refere-se à busca do objectivo final das organizações. Para que serve uma organização? Qual a missão? Sem isto, parece-me difícil definir o âmbito adequado para a criação de valor partilhado. A busca de um propósito não poderá fazer esquecer que a empresa tem de ser forte e lucrativa para sobreviver. Num certo sentido, uma boa maneira de lucrar é fazer do negócio uma forma não filantrópica de progresso social.

Há relativamente pouco tempo, muita gente existia que olhava com desdém para a necessidade das universidades e escolas de gestão incluírem disciplinas de Ética nos seus currículos. Face ao descalabro ético que acabou por reinar em muitos escândalos empresariais – e não só quando deflagrou a Grande Recessão de 2008 – a necessidade transformou-se em urgência e são já várias as instituições que leccionam cadeiras de Ética, individual e empresarial. A seu ver – e tendo em conta também a história da Responsabilidade Social Corporativa – até que ponto os currículos nas áreas da Gestão, Economia e Finanças têm vindo a acompanhar esta mudança de mindset organizacional?

Ninguém hoje acha o tema supérfluo ou periférico. As escolas de gestão têm incorporado o tema e outros que o complementam. Eu próprio tenho trabalhado, com o Prof. Arménio Rego (da Universidade de Aveiro) o tema das virtudes dos líderes. Os curricula das escolas reflectem hoje muito mais esta realidade. Mas é evidente que as questões da ética e das virtudes se expressam na prática. Alertar e colocar no centro do conhecimento é importante, mas as virtudes praticam-se, não se apregoam.

Sei que irá lançar, a breve prazo, um paper sobre a forma como os líderes interpretam o amor nas organizações. Como surgiu esta ideia – aparentemente estranha – e de que forma é que o amor enquanto fenómeno organizacional tem lugar nas empresas da actualidade? É possível encará-lo também como uma forma de criação de valor(es) partilhado(s)?

Surgiu na sequência do livro de António Pinto Leite [O Amor como Critério de Gestão]. A ideia é simples: o amor importa em todo o lado menos na vida de trabalho. Fomos explorar a sua possível presença enquanto amor ao próximo. Será uma forma de valor partilhado? Se ajudar a resolver problemas como a inclusão, o respeito pelos mais velhos, o respeito como ingrediente organizacional, porque não? É interessante que ache a ideia estranha. Não será mais estranho o facto de acharmos a ideia estranha? Mas atenção: amor ao próximo é isso mesmo, não é gostarmos todos uns dos outros ou vivermos num mundo artificialmente cor-de-rosa. Mas é possível mudar a lente da organização como um mundo emocionalmente anémico, para outro mais rico do ponto de vista relacional. Algumas organizações têm feito esta transição adequadamente.

Editora Executiva