O mundo, neste momento tão delicado da sua vida colectiva, teve no Papa um pastor atento, sábio e oportuno, sempre pronto com uma palavra serena, profunda e eficaz
JOÃO CÉSAR DAS NEVES*

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*João César das Neves é
Professor catedrático e presidente
do Conselho Científico da
Faculdade de Ciências Económicas
e Empresariais da
Universidade Católica Portuguesa

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O pontificado de Bento XVI durou quase oito anos. Foi um dos mais curtos dos últimos dois séculos (só cinco dos últimos 14 papas tiveram um pontificado menor: Leão XII, Pio VIII, Bento XV, João XXIII e João Paulo I) e também dos mais calmos desse longo período. Para compreender isto devemos notar que desde 1800 dois papas viveram exilados (Pio VII e Pio IX), o primeiro foi preso, cinco estiveram isolados («prisioneiros») no Vaticano (de Pio IX a Pio XI), houve suspeitas de envenenamento em dois casos (Pio VIII e João Paulo I), dois suportaram guerras mundiais (Bento XV e Pio XII), todos sofreram revoltas e contestações e um foi atingido por quatro balas (João Paulo II). Comparativamente, os últimos oito anos foram bastante serenos…

Este pontificado foi dominado por três grandes factos, dois vindos do mundo, o terceiro de dentro da Igreja. Esta, por ordem do seu Senhor, é presença de Deus no mundo e participa plenamente nas alegrias e esperanças, nas tristezas e angústias dos homens de cada tempo. Por outro lado, ela própria é um povo vivo, e evolui, cresce, organiza-se, confronta-se. Em oito anos muita coisa acontece.

O primeiro elemento, que domina todo o mundo, mas se sente sobretudo nos países mais pobres, é a fortíssima transformação económica a que se chama globalização. Este elemento tem-se revestido de três grandes aspectos. Entre os países mais pobres alguns vivem ainda na miséria de sempre, necessitando de caridade, serenidade, esperança. A novidade é que vários outros, as chamadas economias emergentes, sofrem um intenso crescimento, que as sujeita a uma terrível tensão. Este processo, o mais forte a que o mundo alguma vez assistiu, implicou e implica múltiplas violações de direitos humanos. Ressurgem em países pobres, alguns alegadamente marxistas, aqueles males de exploração que Marx, entre muitos outros, denunciou.

Entretanto, nos países ricos, por causa destas transformações, surgiu a crise financeira, que dominou toda a segunda metade do pontificado. O fascínio pelo dinheiro fácil causou nova bolha especulativa, esta particularmente assustadora, que ameaçou a estabilidade ocidental e, por consequência, também mundial. Foi também ela que implicou o forte ajustamento que oprime muitas economias ainda hoje. Estes problemas atingiram até o Vaticano, onde o seu banco se encontra envolvido em sérias suspeitas.

Para enfrentar todos estes graves e diversificados males, que já vinham de trás e que continuarão depois dele, o ensino de Bento XVI foi decisivo. O mundo, neste momento tão delicado da sua vida colectiva, teve no Papa um pastor atento, sábio e oportuno, sempre pronto com uma palavra serena, profunda e eficaz. Entre muitos outros contributos, publicou uma encíclica social magistral, Caritas in Veritate, de 29 de Junho de 2009. Aí relembrou todos os princípios básicos da doutrina social da Igreja, numa síntese nova e original, para depois os aplicar em sentenças sábias e profundas, realistas e equilibradas. Os economistas e agentes económicos terão nesse texto durante séculos uma orientação preciosa.

O segundo problema, que é específico ao Ocidente, é a desregulação da sexualidade e os ataques à família e à vida humana. Nas sociedades prósperas da Europa e América do Norte vive-se um fascínio com o prazer venéreo, que insolitamente parece dominar todos os aspectos da vida. A loucura chega mesmo a desprezar os valores mais básicos da civilização, como o direito a nascer, ser educado no seio de uma família sólida e estável, morrer em paz. Acima de todas as essas coisas está o apetite de uma «vida sexual e reprodutiva saudável, gratificante e responsável», que significa cada um fazer o que lhe apetece sem ser incomodado. Num tempo e comunidade em que se regulam todos os aspectos da existência, no campo central da vida e do amor reclama-se a mais desbragada libertinagem.

Este tema foi abordado repetidamente ao longo do pontificado. Até porque os fumos do inferno chegaram a empestar mesmo o interior da Igreja, com o gravíssimo escândalo da pedofilia no clero. Em todos estes casos, Bento XVI foi referência sólida, inflexível no essencial, compreensivo perante o sofrimento, marcando o rumo da verdadeira felicidade sem as pestes do egoísmo, orgulho e concupiscência. Em particular, logo na sua encíclica inaugural, Deus caritas est de 25 de Dezembro de 2005, o Papa fez uma reflexão profunda e brilhante sobre o verdadeiro significado do amor, a sua grandeza e distorções.

O terceiro elemento do pontificado, que nasceu dentro da Igreja, é o Concílio Vaticano II. Bento XVI é o quinto papa que esteve no Concílio. Depois do seu inspirador, João XXIII, e do seu guia, Paulo VI, reinaram dois padres conciliares, João Paulo I e João Paulo II. Bento XVI, sem nunca falar na aula conciliar, participou activamente na posição de «perito», figura original a que o Concílio deu tanta importância. Certamente será o último pontífice que participou no Concílio (entre os cardeais eleitores existe ainda um outro perito, Godfried Cardinal Danneels). Pode dizer-se que com o seu pontificado o ensinamento conciliar chegou ao seu pleno. Coube-lhe mesmo lançar a celebração do cinquentenário da abertura do Concílio.

O «riaggiornamento» realizado pelo grande acontecimento eclesial do século XX teve vastas e profundas consequências em todas as áreas da vida da Igreja. Foram tempos intensos, espantosos, maravilhosos, mas também tempos de perplexidade, confronto, sofrimento. Toda essa realidade traspassou a vida pessoal de Joseph Ratzinger, e inspirou centralmente o seu pontificado.

Coube-lhe intervir em múltiplos aspectos da defesa do espírito do Concílio. Em particular, na segunda encíclica, Spes salvi, de 30 de Novembro de 2007, Bento XVI apontou o futuro à Igreja na linha do Concílio. Sem nunca citar directamente os seus documentos, mas profundamente embuído do seu ensinamento, através de todos os textos posteriores (nomeadamente o Catecismo da Igreja Católica, a referência mais citada na encíclica, de cuja Comissão redactora fora Presidente), o Papa Bento mostrou bem o rumo que o seu pontificado imprimiu à Igreja e que frutificará durante muito tempo.

Todos estes problemas existiam muito antes de Bento XVI ser Papa e continuarão muito depois da sua morte. Mas eles serão diferente porque ele foi Papa. Quem o seguiu durante oito anos, mas até quem apenas o ouviu ocasionalmente, não ficou indiferente. Porque ele sempre corporizou a mensagem que a Igreja de Cristo, renovada pelo Concílio, tem a dizer ao mundo de hoje.

«Aparece aqui também como elemento distintivo dos cristãos o facto de estes terem um futuro: não é que conheçam em detalhe o que os espera, mas sabem em termos gerais que a sua vida não acaba no vazio. Somente quando o futuro é certo como realidade positiva, é que se torna visível também o presente. Sendo assim, podemos agora dizer: o cristianismo não era apenas uma “boa nova”, ou seja, uma comunicação de conteúdos até então ignorados. Em linguagem actual, dir-se-ia: a mensagem cristã não era só “informativa”, mas “performativa”.

Significa isto que o Evangelho não é apenas uma comunicação de realidades que se podem saber, mas uma comunicação que gera factos e muda a vida. A porta tenebrosa do tempo, do futuro, foi aberta de par em par. Quem tem esperança, vive diversamente; foi-lhe dada uma vida nova» (Spes salvi 2).

Economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas