O mundo parece um lugar distópico e estranhamente pouco natural, mas fomos nós que o desenhámos assim, que escolhemos esta via da glorificação do artificial, exótico, desconectado da nossa verdadeira Natureza. Mas não tem, mesmo, que ser assim. Vamos tentar reimaginar um ecossistema urbano rural, e tentar ‘pintar’ o mesmo de outras cores. Vamos antes experimentar a versão sonhada desta viagem
POR NUNO GASPAR DE OLIVEIRA

O que é que tem em comum estes hinos intemporais do rock: Born To Run, de Bruce Springsteen; Bohemian Rhapsody, dos Queen; Wish You Were Here, dos Pink Floyd; e Kashmir, dos Led Zeppelin? Foram dos maiores hits do glorioso ano de 1975, o ano em que nasci, numa segunda-feira de maio, madrugada adentro em noite de lua cheia. Não sei se era essa a banda sonora noturna no ‘aviário’ da MAC, mas que em muito determinaram o meu gosto musical isso posso garantir. Posso não ter grandes memórias dos seventies, mas guardo preciosas recordações dos bizarros e inquietos eighties. Uma delas é das férias de verão, cheias de músicas foleiras que agora adoramos como se fossem clássicos eruditos (mas não, algumas eram mesmo muito mazinhas, não percebo a cena da nostalgia exacerbada) e, em especial, do mês de agosto, em que a malta da minha rua desaparecia quase toda, iam para ‘a terra’ com os pais e avós. 

Ora, eu como não tinha ‘terra’, porque os meus pais, tios e avós já eram todos de Lisboa ou estavam cá há muitos anos, o meu ‘ir à terra’ era substituído pelo pequeno milagre que era o passe L123. Quem não é de Lisboa, não imagina a emoção que era ter esta espécie de cartão livre-de-prisão do monopólio da vida real. O L123 era mais uma pequena fortuna para um miúdo da classe operária do bairro da Ajuda, e acompanhava muito bem com walkman e ténis batidos. Subitamente a cidade abria-se e, de Almada à Amadora ou de Sintra ao Seixal, passava a ser um pulinho entre autocarros, elétricos, comboios e mesmo barcos! Foi assim que comecei a conhecer a ‘minha terra’, por vezes na companhia do meu pai, que preenchia o quadro com estórias das suas aventuras e desventuras, outras a solo ou com um par de amigos, os tais ‘desterrados’ que, como eu, não iam ‘curar’ umas semanas para um qualquer vilarejo alentejano escaldante onde não se podia andar ‘cá fora’ durante o dia, ou para uma aldeia serrana algures entre ‘seiláonde’ e o recôndito ‘praláquistão’. Pelo meio descobríamos museus, praias, ruas estreitas, largas avenidas e bairros com pronúncias estranhas. Nunca percebi os dialetos de Marvila e Olivais, mas conseguia distinguir as diferenças de sotaque e maneirismos entre a malta da Ajuda, Alcântara, Belém e Restelo como se tivesse um PhD em antropologia olissiponense. 

De vez em quando, a aventura saia fora de portas e descobríamos autênticos ecossistemas bravios dignos de documentário de domingo-antes-de-almoço em Loures, Algés, Fernão Ferro ou Charneca da Caparica. Talvez o proto biólogo que em mim habitava desde os 4 anos achasse particular interesse nestes matizes de matos e arvoredos, porque guardo imensas memórias de detalhes e texturas de sítios que hoje são selvas urbanas. Diria que nestes anos do L123 ganhei o gosto pela biodiversidade urbana.

 

Anos mais tarde, agora mais cético, menos aventureiro e muito mais chato, continuo a gostar de passear entre cidades, gosto das zonas de transição, que nem são naturais nem rurais, antes pelo contrário. Também não são urbanas, mas igualmente não o deixam de ser. Quando passei pela pós-graduação em Geografia e Território, disseram-me que se chamavam ‘hinterlands’, ou seja, uma espécie de terra-média, sem os encantos do mundo de Tolkien, uma espécie de tecido conjuntivo que liga aglomerados urbanos, centros logísticos, portos e essas coisas. Estas áreas tanto podem ser fascinantes ou profundamente aborrecidas, e marcam, efetivamente, a (des)continuidade entre o coração da urbe e a matriz rural e natural. 

 

Para melhor percebermos a importância destes elementos ecológicos que compõem os ecossistemas urbanos, vamos dar um passeio até ‘lá fora’ e, mesmo sem L123, sair da zona de conforto da cidade e ver o que se passa à nossa volta. Depressa reconhecemos os elementos mais óbvios como ribeiras, taludes, baldios, matas, campos agrícolas, lagos de barragem, linhas de arvoredo ao longo das estradas ou mesmo pequenos santuários de vida silvestre. Porém, ao olhar com mais atenção, o que é que vemos tantas (demasiadas) vezes?

  • As linhas de água, antes ribeiras, são agora estruturas em ‘V’ sistematicamente aprumadas e sem qualquer bosque de ribeira natural, ou pior, estão cheias de cana-da-Índia, acácias e matagal avulso, ou, se tivermos sorte, silvados (sinal de que ainda há esperança).  
  • Viramos a cabeça e vemos as bermas e taludes das estradas, cortados rente sob desculpas de uma legislação incoerente e francamente danosa para a conservação dos valores naturais, ou então bermas e taludes secos e queimados, não por fogo, mas pelo uso diligente de herbicidas sistémicos e, cada vez mais agressivos. 
  • As matas que aqui e ali espreitam são pouco mais do que manchas ‘despenteadas’ de mimosas, casuarinas e eucaliptos, com pinheiros avulsos e manchas mais persistentes de giestas ou esteval. Isto é nas que ainda não conheceram a cortadeira ou as lantanas. Se estas manchas tiverem alguma coisa a ver com as estruturas de matos autóctones, com sobreiros, medronheiros, carvalhos, murtas ou azinheiras, estevinha e zambujos, ou outras nativas que ainda resistam ao invasor, estamos perante tesouros a proteger a todo o custo.  
  • Continuando o nosso passeio, vamos dar aos campos agrícolas, na expectativa de um encontro com uma natureza rural e bucólica e acabamos por dar de caras, demasiadas (tantas…) vezes com plantações densas e alinhadas de vinhas, olivais, amendoais e outros que tais com poucas ou nenhumas reminiscências de habitats de refúgio para a biodiversidade de animais e plantas que deveriam compor o mosaico agroecológico que, em boa verdade, ajuda os produtores a regular água, pragas, auxiliares e nutrientes, do azoto ao carbono. E quando não são as áreas de produção industrial, são os terrenos secos e estoirados, pisados até a terra ser ferro ou cheios de cardos espinhosos, por encabeçamentos de gado quiçá demasiados otimistas para o que a terra pode dar ou em descontrolo por falta de zelo ou necessidade aguda. Impera a ideia de que o futuro do campo passa pela industrialização sistemática que glorifica a guerra contra a natureza, onde, quando uns pensam que ganham, em boa verdade, todos perdem. 
  • Mais à frente encontramos então os limites de uma albufeira de barragem, com uma rica vista, tão bela que se vê todo o espelho de água sem florestas ribeirinhas ou matagal de zonas húmidas e pauis, a importunar quem contempla ou a impedir acessos. Quando a água desce a sério ficam as margens secas e limosas, feias e deprimentes, que mais lembram a morte que a vida que a água deveria trazer. Quando a água decide subir em épocas de torrente, espraia rápido e alaga estradas e esboroa caminhos, estraga plantações e causa prejuízos imensos. Se ao menos os pauis, matagais húmidos, galerias e matas ribeirinhas existissem onde deveriam estar, talvez pudessem poupar muito agoiro, perda e agitação desnecessárias. 
  • No regresso à urbe, pela estrada fora, o desfile de zona sem qualquer proteção de vegetação ou as linhas de cedros, liquidâmbar, plátanos híbridos entre espécies europeias e americanas e todo um desfile infindável de árvores e arbustos ornamentais exóticos que tornam qualquer troço de via rápida uma espécie de jardim botânico alienígena onde as nativas parecem ter sido proibidas de entrar por serem andrajosas e de má figura. 
  • Reentramos na cidade e o cenário não muda muito. Entre roçadeiras com o seu ronco persistente que confortam os urbanos preocupados com as ervas-daninhas, ao pessoal equipado para a próxima guerra química que vai aspergindo os passeios e parques de estacionamento de glifosato ou similares, aos zelosos jardineiros de domingo que cuidam do seu mosaico de flores-de-todo-o-mundo (menos do mundo ‘de cá’) e ansiosos desenhadores de paisagens urbanas que não se conformam com a ideia de uma paisagem que demore anos ou décadas a amadurecer, mas que tem que estar pronta para o mês que vem, quando for a inauguração de mais um supermercado conveniente ou condomínio de última geração.

O mundo parece um lugar distópico e estranhamente pouco natural, mas fomos nós o que o desenhámos assim, que escolhemos esta via da glorificação do artificial, exótico, desconectado da nossa verdadeira Natureza. Mas não tem, mesmo, que ser assim. Vamos tentar reimaginar um ecossistema urbano rural, e tentar ‘pintar’ o mesmo de outras cores. Vamos antes experimentar a versão sonhada desta viagem:

  • As linhas de água, agora ribeiras, já não são em ‘V’ mas obedecem ao padrão do terreno, serpenteiam, tem pegos e córregos, rochas e zonas abertas, as manchas de vegetação são heterogéneas, aqui mais arbustivas com salgueiros, freixos ou ulmeiros, ali mais boscosas com aloendros, tamargueiras e murtas ou pilriteiros, pereiros-bravos e matos variados com mais de 20 espécies. As canas deram lugar ao caniço, tabua, juncos e manchas de poejos e hortelãs, e os silvados, que vão sendo controlados pela sombra do arvoredo, são autênticas estações-de-serviço para dezenas de espécies de aves, borboletas, pequenos répteis e mesmo lontras e ouriços-cacheiros fazerem moradia ou mordiscarem qualquer coisa para a viagem;
  • As bermas e taludes que percorrem estradas e caminhos são verdadeiros mosaicos de vegetação anual e perene, com mais de 40 espécies de plantas, várias delas tão raras e ameaçadas que já só ali encontram abrigo, como o caso das várias espécies de orquídeas silvestres e de alguns parentes afastados de várias espécies de leguminosas e cereais que hoje nos fazem companhia à mesa. O famigerado risco de incêndio deixa de ser confundido com a severidade potencial do incêndio e torna-se muito mais fácil e realista gerir com poucos meios, muito menos herbicidas e passagens de máquinas e roçadoras, ao mesmo tempo que se baixam os valores dos investimentos nos milhares de hectares de bermas e taludes que existem um pouco por todo o concelho, além de que a equipa de sapadores e cantoneiros, agora capacitada para conhecer as ‘meninas-da-beira-de-estrada’ se sente mais feliz e reconhecida porque passam de arrasadores sem critério a gestores de ecossistemas;
  • Alguns dos ‘barris de pólvora’ que eram as matas desordenadas, são agora espaços de amenidade, lazer e fruição de passeios e atividades desportivas, estão mais conduzidas e abertas, quase em exóticas e vão-se enchendo de fauna e flora da região, captam mais água e carbono, retém mais solo e impedem a erosão, já não estão apetecíveis aos oportunistas que as enchiam de lixo porque agora são um bem e serviço público, onde a criminalidade é apenas uma má recordação e onde, no outono, se podem apanhar cogumelos ou simplesmente passear com aquele ‘cheiro-a-chuva-acabada-de-cair’ que nos encanta;
  • O mosaico agrícola torna-se harmonioso, as plantações industriais apresentam coberturas diversificadas e coloridas, com enrelvamentos adequados a cada cultura, tipo de solo e regime ecológico e climático, existem sebes de vegetação natural ou naturalizada que compartimentam espaços e os tornam menos monótonos, enquanto ajudam os produtores a aumentar a diversidade de auxiliares e polinizadores, baixam o risco de pragas e doenças e promovem a fertilidade mais natural do solo. As pastagens foram restauradas com uma boa mão-cheia de espécies autóctones que vão muito para além das espécies forrageiras de trevos e gramíneas, agora os animais, sejam vacas ou ovelhas, mas sempre em valores de encabeçamento bem gizados, tem mais qualidade de vida e saúde ambiental, gerando por consequência carne ou leite de maior valor acrescentado. As manchas de matos, galerias ripícolas, zonas húmidas como charcos temporários mediterrânicos ou zonas paludosas foram restauradas e são protegidas com medidas simples e de baixo custo, que permitem que as quintas e herdades sejam agora verdadeiros santuários de biodiversidade, mais atrativos aos visitantes e que acrescentam valor aos produtos agrícolas da região;
  • A grande transformação de paisagem que foi a albufeira da barragem gerou um novo padrão de habitats e vegetação, mas o ordenamento inteligente que resultou de ‘darmos ouvidos’ à Natureza em vez de estarmos sempre convencidos de que nós é que sabemos o-que-é-que-deve-estar-onde permitiu restaurar milhares de hectares de matas ribeirinhas e zonas paludosas, bem como barrancos secos que se enchem de plantas aromáticas com enorme valor, não só para a diversidade de polinizadores, mas também uma excelente fonte de oportunidades de investimento na bioindústria, uma vez que, muitas destas plantas produzem naturalmente componentes de grande interesse e valor para a indústria cosmética, farmacêutica ou mesmo das ‘novel foods’, ou como quem diz, dos novos produtos e suplementos alimentares. Também os serviços de regularização de cheias e secas, bem como a regulação de fertilidade, sequestro de carbono e refúgio de fauna silvestre tornam estes novos lagos em áreas de recreio e lazer mais sustentável e de alto valor natural e ecológico;
  • No regresso à urbe, passamos por estradas e caminhos onde a vegetação varia entre prados de anuais a fileiras de árvores e arbustos de espécies de interesse regional que embelezam a estrada ao mesmo tempo que criam amenidade, aumentam o valor imobiliário das propriedades à beira dos caminhos e, ainda por cima, são mais resilientes a risco de incêndio severo, prevenindo a erosão e as derrocadas e poupando na conta pública do uso de água, fertilizantes e herbicidas em muitos milhares de euros;
  • Reentramos na cidade e o cenário não muda muito. As roçadeiras fazem o seu trabalho de modo mais cirúrgico, as pessoas já se habituaram à ideia de que a cidade não é um lugar estéril e estilizado, mas onde há lugar para algumas ervas benfazejas, árvores que até largam umas folhas, mas que produzem frutos que por todos podem ser aproveitados, como os medronheiros, castanheiros, zambujos e pinheiros, entre muitas outras espécies de arvoredo e arbustos. A política dos herbicidas deu lugar a ações comunitárias de proteção e valorização dos polinizadores, pessoas e empresas atuam de forma conjunta de forma a gerir espaços de jardins e de passagem onde as plantas são bem-vindas e parques industriais, supermercados e centros comerciais, taludes das estradas e jardins públicos e privados formam uma matriz riquíssima em biodiversidade que também valoriza o imobiliário, melhora a saúde ambiental diminui o risco de alergias a pólenes de espécies exóticas, diminui o risco de cheias e enxurradas, minimiza o efeito da sondas de calor, melhora a vida de crianças e aumenta a apetência para desporto, lazer, convívio e bem-estar. 

Nesta cidade sonhada, onde o telemóvel com Spotify e câmara de alta-definição é agora a minha companhia constante, continuo a ouvir os velhinhos Springsteen, Queen, Pink Floyd e Led Zeppelin, intervalados pelo chilrear de um pisco ou o gorgolejar de uma ribeira, passando pelo toque sedoso de uma murta ou pelos picos de uma rosa-canina, até ao mergulho no verde da mata mediterrânica ao passeio ligeiro pelo azul do Tejo, ou outro rio que vos apeteça. Aqui sonho com os dias quentes de agosto ou as chuvas frias do outono, enquanto vivo a ânsia presente de entrelaçar a ruralidade com a natureza e com a urbe e fazer desta terra a minha biodiverCidade.

Biólogo e CEO da NBI – Natural Business Intelligence