Não é aceitável que alguém durma de baixo de uma ponte. Não é aceitável que um toxicodependente seja descartado e deixado à sua mercê. Não é aceitável que alguém tenha de vasculhar um contentor de lixo para encontrar alimento. Não é aceitável que enquanto sociedade sejamos impermeáveis ao sofrimento de pessoas como nós cuja vida levou para caminhos de infortúnio, qualquer que seja a razão.
POR MARGARIDA CASTRO REGO

Acredito que o ser humano nasce com um sentido de justiça que se molda ao longo da vida em função do contexto e das experiências. A percepção de que os critérios de justiça não são nem universais nem estáticos tem-me ajudado a compreender porque é que cada um de nós sente e vive «grandes injustiças» de formas tão distintas.

Já terão certamente reparado que muitas pessoas têm uma causa que lhes toca o coração de forma particular – alguns sentem-se desinstalados pelas situações de refugiados de guerra; outros vêem a sua cabeça e coração tomados pela falta de acesso a alimentos e saneamento básico; há ainda quem se sinta mais tocado por outras temáticas como situações de abandono de idosos, maus-tratos infantis, entre outras.

Creio que esta mecânica humana é vital ao progresso da sociedade porque aloca, de forma natural, a dedicação e conhecimento adquiridos sobre a causa aos exercícios teóricos e práticos para a sua resolução. Não me interpretem mal – não sou defensora de um sistema que nos desresponsabiliza ou nos incentiva a estar alheados de tudo o resto que se passa no mundo mas, de facto, creio que o clássico conhecimento em formato de T (superficial em diversas áreas e profundo nalguma em específico) consegue ser muito eficaz quando se torna generalizado.

Nos últimos anos, tenho-me vindo a aperceber que fico particularmente atormentada com a problemática das pessoas em situação de sem abrigo. Esta voz que me desinstala parece ter aumentado de volume desde que me mudei para Londres – lá estão as experiências e o contexto a dar o seu valioso contributo – e por isso quis deixar por escrito um desabafo de algumas ideias que me vêm à cabeça de forma recorrente.

Londres é uma cidade encantadora – vasta e rica na arte, extraordinária na diversidade de pensamento e culturas e um exemplo em termos de progresso tecnológico e económico. Por contraste, é também uma cidade onde nas suas maiores praças poderão encontrar com regularidade e abundância pessoas a viver à margem (literalmente, encostadas a qualquer parede ou estrutura que lhes dê suporte, já que a sociedade não o consegue fazer adequadamente).

No contexto de pessoas em situação de sem abrigo, não me consigo conformar com ideias como a de que «haverá sempre pessoas que não conseguiremos tirar da rua» ou de que «só podemos ajudar quem quer ser ajudado». Não é aceitável que alguém durma de baixo de uma ponte. Não é aceitável que um toxicodependente seja descartado e deixado à sua mercê. Não é aceitável que alguém tenha de vasculhar um contentor de lixo para encontrar alimento. Não é aceitável que enquanto sociedade sejamos impermeáveis ao sofrimento de pessoas como nós cuja vida levou para caminhos de infortúnio, qualquer que seja a razão.

A consciencialização desta paridade nunca foi para mim tão clara como é agora. Nos últimos meses tenho conhecido algumas pessoas sem-abrigo e fiquei surpreendida quando, ao conversar com elas, fiquei a conhecer as línguas que falavam, as viagens que realizaram e as profissões que em tempos exerceram.

Talvez a maior das surpresas tenha sido o facto de eu ficar surpreendida com estas descobertas. No passado, dizia muitas vezes que as pessoas não são sem abrigo, mas sim que estão sem abrigo. Contudo, esta surpresa mostrou-me que a ideia que tanto defendia e defendo não estava assim tão bem interiorizada. Tinha enraizadas ideias pré-concebidas de que o passado destas pessoas estaria bastante distante da minha realidade, e assim deixava que a sua condição actual moldasse erradamente a minha percepção de quem eram.

Uma outra dimensão que me assusta muitas vezes é o facto de por vezes se imputar a culpa desta situação à pessoa que está sem abrigo. Ainda que nos pareça que quem tem ao seu dispor todas as ferramentas para dar a volta à sua vida, ou até que foi uma escolha a situação onde foi parar, na verdade estamos sempre longe de conhecer por completo a sua história, o seu contexto e seu estado de saúde (físico e mental); por isso, abstenhamo-nos de qualquer juízo de valor ou suposição.

Estou muito longe, de perceber como é que posso ter impacto a nível local, nacional ou internacional, mas tenho um enorme desejo de o fazer. Por vezes, ficava frustrada por ainda não estar a fazer nada de visível para a resolução deste problema porque não via um propósito maior em pequenos gestos. Hoje aceito com maior serenidade que são muitíssimo importantes na vida de quem estamos a ajudar e que, num segundo plano, poderão ser essenciais no nosso caminho para compreender e eventualmente transformar uma realidade que não é a nossa.

Margarida Castro Rego

Nasceu em Lisboa em 1996. Completou o curso e o mestrado na NOVA SBE onde desenvolveu um gosto especial por políticas públicas. Atualmente trabalha em Londres no departamento de economia aplicada da consultora Oxford Economics.