É assim que Qu Dongyu, director executivo do Programa Alimentar Mundial, olha para a hecatombe que se vai desenrolando à frente dos nossos olhos depois da convergência da crise pandémica, da invasão da Ucrânia, do aumento da inflação e, consequentemente, do pico nos preços dos alimentos, energia e fertilizantes. E se as estimativas mais recentes da OXFAM, baseadas em dados do Banco Mundial e de outras entidades credíveis, apontam para que até ao final de 2022 quase metade da humanidade viverá abaixo do limiar da pobreza, também é certo que não serão apenas os pobres que sofrerão as consequências de “uma ausência de imaginação económica e de vontade política”para enfrentar uma crise que se está a transformar numa catástrofe. Todos nós estamos, igualmente, à sua mercê. Só não temos de escolher entre alimentar os nossos filhos, prestar-lhes cuidados de saúde ou enviá-los para a escola

POR HELENA OLIVEIRA

A desigualdade extrema já existente, a subida em flecha dos preços dos alimentos e da energia, em conjunto com a Covid-19 e com a guerra na Ucrânia estão a convergir no sentido de (mais) uma catástrofe para os mais pobres do mundo.

De acordo com o relatório “First Crisis, Then Catastrophe“, publicado a 12 de Abril último pela Oxfam com base em projecções do Banco Mundial e de uma investigação conduzida pelo Centro para o Desenvolvimento Global, os picos de preços dos bens alimentares poderão resultar em mais de 263 milhões de pessoas empurradas para a pobreza extrema ao longo do ano de 2022, o que se traduz num total de 860 milhões de pessoas a viver abaixo do seu limiar (com cerca de 1,7 de euros por dia), número que é equivalente às populações do Reino Unido, França, Alemanha e Espanha juntas.

Este aumento galopante já inverteu duas décadas de progresso na luta contra a pobreza e já ninguém se lembra – ou faz por esquecer – os tão outrora falados mas aparentemente desprezados Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Outras projecções apontam para que ainda ao longo deste ano, sejam 3,3 mil milhões as pessoas que viverão abaixo do limiar da pobreza (com cerca de 5 euros diários), ou seja, quase metade da humanidade.

Neste momento, pessoas “comuns” que sofreram grandes dificuldades económicas durante a pandemia, enfrentam aumentos céleres no custo dos alimentos, os quais atingiram valores sem precedentes, ultrapassando as crises alimentares de 2011 e 2014.

Entretanto, a riqueza bilionária assistiu ao seu maior aumento de sempre e as grandes empresas parecem estar a explorar o ambiente inflacionário para aumentar os lucros à custa dos consumidores: o aumento dos preços e das margens de lucro dos gigantes petrolíferos atingiu níveis recorde, enquanto os investidores esperam que as empresas agrícolas se tornem rapidamente mais lucrativas à medida que os preços dos alimentos sobem em espiral. Os países de baixos rendimentos – com as suas reservas estrangeiras em grande parte esgotadas pelas respostas à Covid-19 e ao aumento da dívida – estão dependentes de uma mão-cheia de nações exportadoras de cereais. Por fim, a fragilidade e desigualdade dos sistemas alimentares e energéticos globais está a ser profundamente exposta.

Desde o início da invasão da Ucrânia – o denominado “Celeiro da Europa”-, os preços do trigo aumentaram 21%, a cevada 33% e alguns fertilizantes 40%.E esta inflação já se faz sentir em todo o mundo, como dá conta o “New York Times”. A Ucrânia é líder mundial na produção de óleo e sementes de girassol e está entre os principais produtores mundiais de cevada, centeio, milho e outros cereais, assim como de leite e derivados. Por outro lado e na Europa já há fábricas a cortar nas produções devido ao aumento do preço da electricidade e, pelo menos em algumas zonas dos Estados Unidos da América e do Brasil, existem já agricultores a cortar nos fertilizantes e a “encolher” as suas colheitas.

Como escreve a Oxfam, é alarmante assistirmos à significativa instabilidade da inflação, que está a crescer mais rapidamente do que os salários reais. Actualmente, o poder de compra está a diminuir em todo o mundo, esperando-se que a inflação em 2022 ultrapasse significativamente o crescimento dos salários, resultando num corte de rendimentos a longo prazo. Milhões de famílias estão já a enfrentar escolhas impossíveis: entre alimentar os seus filhos, enviá-los para a escola, ou tratá-los de alguma doença, por exemplo. O pico nos preços dos alimentos, aliado às catástrofes climáticas e aos conflitos em várias zonas do planeta, está igualmente a agravar substancialmente as crises de fome já existentes e devastadoras em partes da África Oriental, do Médio Oriente e da África Ocidental.

Para a maioria dos trabalhadores em todo o mundo, os salários reais continuam a estagnar ou mesmo a cair. Os efeitos da COVID-19 alargaram também as desigualdades de género existentes: depois de sofrerem as maiores perdas de emprego relacionadas com a pandemia, as mulheres estão a lutar para voltar ao trabalho. Em 2021, havia menos 13 milhões de mulheres empregadas em comparação com 2019, enquanto o emprego dos homens já recuperou para os níveis do ano que antecedeu a pandemia.

Ao mesmo tempo e não sendo novidade, enquanto os países mais pobres enfrentam dívidas de dimensão cada vez maior, a par de uma redução significativa no poder de compra e nos salários, os gigantes do petróleo e do gás estão a relatar lucros recorde, esperando-se tendências semelhantes no sector alimentar e de bebidas.

Inflação, recessão, insolvência

Como é habitual e apesar de a grande maioria das pessoas vir (ou já estar) a ser negativamente afectada de alguma forma, são os mais pobres que mais duramente estão a ser atingidos por esta catástrofe múltipla. O FMI estima que os custos alimentares representem 40% dos gastos dos consumidores na África Subsaariana (nos países ricos estes não ultrapassam os 17%), mais do dobro do que nas economias avançadas. Mas mesmo no interior dos países desenvolvidos, é igualmente sabido que existem profundas desigualdades: os 20% mais pobres destas sociedades estão a gastar quatro vezes mais do que os 20% do topo em alimentos, como é o caso dos EUA. Os impactos a longo prazo de uma crise nutricional agravam permanentemente a vida dos mais pobres, os quais, e como também já é normal, atingem desproporcionalmente mulheres e raparigas: ou seja, as que são as últimas a comer para conseguirem alimentar os filhos, as primeiras a serem excluídas de uma escola que não pode ser paga e aquelas cujo trabalho doméstico e de cuidados com ascendentes e descendentes não é remunerado.

Todos estes números têm como base o nível de preços dos alimentos dos primeiros meses de 2022, mas se o ritmo inflacionista continuar a acelerar devido à continuação da crise na Ucrânia, que já está a perturbar consideravelmente e a nível global os bens alimentares, a energia e os fertilizantes, as condições agravar-se-ão ainda mais nos próximos meses.

A Oxfam alerta também para o número crescente de governos que estão a aproximar-se de uma situação de incumprimento da dívida e a ser forçados a cortar as despesas públicas para pagar aos credores e importar alimentos e combustível. Os países mais pobres do mundo deverão pagar 43 mil milhões de dólares em reembolsos de dívidas em 2022 que, e de outra forma, poderiam cobrir os custos das suas importações de alimentos.

Adicionalmente, tal como as pessoas mais pobres estão a enfrentar o enorme peso desta crise multifacetada, também as nações mais pobres que já se defrontavam com pesadas pressões fiscais, estão agora a ser brutalmente empurradas para uma pobreza mais profunda e duradoura.

Os países em desenvolvimento, com níveis de dívida historicamente elevados, têm sido igualmente cilindrados pelo custo da resposta à pandemia e à consequente recessão, uma situação que tem sido em parte motivada pela extrema desigualdade na administração das vacinas para a Covid-19, uma vez que as nações ricas as acumularam e negaram aos mesmos os direitos de as produzirem eles próprios.

O regresso dramático da inflação e que levou a Reserva Federal dos EUA a aumentar o custo dos empréstimos, em conjunto com a guerra na Ucrânia, fez também subir o custo do dólar, o que resulta numa tempestade perfeita para a turbulência financeira nos países de baixo rendimento, que precisam de dólares para as suas importações de energia, medicamentos e alimentos, e cuja moeda da dívida é, em grande parte, o dólar. É muito provável também que vários países em desenvolvimento não cumpram as suas dívidas nos próximos meses, tentando evitar a bancarrota à medida que tentam manter as importações dos bens necessários à sua sobrevivência.

Este cenário que já é real poderá traduzir-se em cortes drásticos nas despesas a nível mundial, exacerbando um caminho já perigoso para a austeridade e na medida em que vários destes países estão já a ser apoiados pelo FMI. Alguns dos instrumentos mais eficazes para reduzir a desigualdade – bens públicos como os cuidados de saúde universais, educação e protecção social – correm o risco de serem cortados, o que teria um impacto desproporcional nas pessoas mais pobres, nas mulheres e nos grupos étnicos mais desfavorecidos.

A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, na sigla em inglês) já advertiu que o “aperto” das políticas monetárias nos países ricos, impulsionado pela inflação e pela guerra na Ucrânia, poderá levar a uma súbita depreciação da moeda em muitos países em desenvolvimento, levando à recessão e à insolvência.

O que sugere, porque não pode exigir, a OXFAM

Para que haja pelo menos um raio de luz nesta escuridão imensa que ameaça ainda mais o planeta, os representantes do G20, o FMI e o Banco Mundial, juntamente com todos os demais líderes, têm de agir e proteger as pessoas dos duros impactos da crise. E como? Entre várias outras formas possíveis e complementares, expandindo as transferências de dinheiro, controlando os preços dos alimentos, rejeitando a austeridade, não aumentando os impostos e apostando no investimento progressivo. Por outro lado, os países ricos devem cancelar urgentemente os pagamentos da dívida não pagável dos países mais pobres.

Apesar dos custos acumulados com a Covid-19 e da riqueza multimilionária ter aumentado mais desde a COVID-19 do que nos 14 anos anteriores combinados, os governos – com poucas excepções – falharam em aumentar os impostos sobre os mais ricos. Como sugere a Oxfam e de acordo com as suas estimativas, a aplicação de um imposto anual sobre a riqueza dos milionários de apenas 2%, e de 5% sobre a dos multimilionários, poderia gerar 2,52 mil milhões de dólares por ano – o suficiente para tirar 2,3 mil milhões de pessoas da pobreza, produzir vacinas suficientes para todos e proporcionar cuidados de saúde e protecção social universais aos que vivem em países de baixo e médio rendimento.

Na sessão de apresentação deste novo relatório, a directora executiva da Oxfam International, Gabriela Bucher, afirma rejeitar a ideia de que os governos não têm dinheiro ou meios para tirar as suas pessoas da pobreza e da fome e assegurar a sua saúde e bem-estar. “Apenas vemos a ausência de imaginação económica e de vontade política para o fazer de facto”, declarou ainda, recordando também que “agora mais do que nunca, com uma tal escala de sofrimento humano e com a desigualdade desnudada e agravada por múltiplas crises globais, essa falta de vontade é indesculpável”.

Assim, defende, o G20, o Banco Mundial e o FMI devem “cancelar imediatamente as dívidas e aumentar a ajuda aos países mais pobres e juntos agir para proteger o cidadão comum de uma catástrofe evitável”.

Algumas das medidas mais defendidas pela Oxfam incluem:

  • Introduzir impostos únicos e permanentes sobre a riqueza para financiar uma recuperação justa e sustentável da crise provocada pela pandemia e agravada agora com a subida da inflação. A Argentina, por exemplo, adoptou uma taxa especial única apelidada de “imposto milionário”, que resultou em cerca de 2,4 mil milhões de dólares para pagar a recuperação pandémica.
  • Acabar com a exploração da crise através da introdução de impostos sobre os lucros excedentários das grandes empresas em todas as indústrias. A Oxfam estima que tal imposto sobre apenas 32 empresas multinacionais extremamente lucrativas poderia ter gerado 104 mil milhões de dólares em receitas em 2021.
  • Cancelar todos os pagamentos da dívida aos países em desenvolvimento que precisam urgentemente de ajuda. O cancelamento da dívida, só em 2022, libertaria mais de 30 mil milhões de dólares em fundos vitais para 33 países que se encontram já em elevado risco de endividamento.
  • Aumentar o apoio e pagar a assistência ucraniana e os custos de acolhimento de refugiados com novos fundos, em vez de transferir fundos de ajuda destinados a outras crises em países mais pobres.
  • Reafectar pelo menos 100 mil milhões de dólares em Direitos de Saque Especiais (DSE), sem sobrecarregar os países com novas dívidas ou impor medidas de austeridade.
  • Agir para proteger as pessoas do aumento dos preços dos alimentos e criar um Fundo Global de Protecção Social para ajudar os países mais pobres a proporcionar uma segurança de rendimento essencial às suas populações, mantendo estes serviços em tempos de crise grave.

“O mundo está atento”, remata Gabriela Bucher.

Mas e afinal, de que serve esta atenção?

Editora Executiva