“Encontramo-nos no limiar de uma transição histórica, à medida que a globalização económica começa a inverter a sua marcha. Há que saborear o momento e enriquecê-lo com possibilidades”. Quem o afirma é Rob Hopkins, um pioneiro de um movimento recente – mas com expressão já em 43 países – cujo objectivo visa transformar o destino económico das comunidades, livrando-as do “business as usual” e apostando num modelo mais sustentável, equitativo e ancorado no bem-estar”, em vez de colocar no seu âmago o “crescimento económico a todo o custo”
POR
HELENA OLIVEIRA

Chama-se REconomy e faz parte da “Transition Network”, um movimento global de comunidades cujo objectivo é o de reforçar a sua resiliência no que respeita a problemas como as alterações climáticas, o aumento dos preços da energia, em conjunto com a incerteza económica e com a desigualdade, através de iniciativas locais. Este movimento, que teve início, com apenas dois grupos, em 2006 (em Kinsale, na Irlanda e em Totnes, Reino Unido), tem agora mais de 1100 iniciativas espalhadas por 43 países. [Uma curiosidade: em 2008, a delegação britânica da Fundação Calouste Gulbenkian foi um dos seus primeiros mecenas].

Um número significativo de grupos ou iniciativas que partilham a filosofia do denominado movimento de “Transição” estão a criar novas formas de subsistência, em conjunto com empresas inovadoras, expandido a sua área de influência no interior do seu ecossistema económico local. O REconomy Project surge, assim, para ajudar grupos locais de todo o mundo a transformar o destino económico das suas comunidades – “afastando-se do ‘business as usual’ condenado” e fazendo a transição para um modelo que “ajuda a construir resiliência em vez de a destruir”, que oferece esperança e oportunidades, apesar de todos os complexos desafios enfrentados pela humanidade e que demonstra ser possível criar “um sistema de comércio e de trocas mais sustentável, equitativo e ancorado no bem-estar”, em vez de colocar no seu âmago o “crescimento económico a todo o custo”.

Os exemplos de iniciativas são absolutamente variados, mas assentam sobretudo na criação de pequenas empresas, em especial ligadas à energia e à produção alimentar, detidas por uma determinada comunidade. A ideia é provar que existem formas alternativas de se fazer negócios, mais sustentáveis e justos, bem como financeiramente viáveis. Entre os vários grupos locais que abraçam o projecto da Reconomia, há quem esteja a inovar verdadeiramente criando sistemas de moeda locais, iniciando campanhas de “compre local” ou trabalhando em conjunto com empresas locais mediante variadas formas.

De acordo com Rob Hopkins, responsável pela iniciativa (em Totnes, Reino Unido) que iria dar origem ao movimento Transition, existem oito passos a dar em frente, no centro da filosofia da REconomy, os quais são promissores para o desenvolvimento, em escala, das ideias já desenvolvidas. O VER resume as oito mudanças de paradigma necessárias que fazem parte deste movimento, o qual começa a ter eco em Portugal, com iniciativas similares.

  1. De “qualquer lugar” para “aqui”
    Um dos aspectos fundamentais da REconomia está relacionado com o facto de a sua economia estar enraizada num determinado local. A maioria das respostas empresariais, como as que são prometidas pelos candidatos eleitorais, por exemplo, não tem em consideração as especificidades dos locais onde poderão ser implementadas. Ao invés, as iniciativas da REconomia emergem de e estão embutidas nos locais de onde são originárias. Um exemplo é o projecto Brixton Energy – uma cooperativa sem fins lucrativos sedeada no sul de Londres, que cria projectos de energias renováveis cujas receitas financeiras permanecem no interior da comunidade, servindo-a – mas o mesmo se aplica a vários dos exemplos que serão citados ao longo deste texto, na sua grande maioria provenientes do Reino Unido: o que diferencia estas iniciativas reside no facto de as mesmas estarem enraizadas em locais específicos, tendo em conta a cultura, história, esperanças e sonhos de uma determinada comunidade. Por exemplo a Libra Exeter, uma nota de cinco libras que será lançada a 15 de Setembro próximo como forma de incentivar os habitantes de Exeter a apoiarem os negócios locais, terá como desenho o rosto de Adam Stansfield, ex-jogador da equipa de futebol com o mesmo nome, na qual jogava com o número 9 na camisola, e que morreu de cancro muito novo. Uma parte considerável da angariação de fundos do clube é destinada à prevenção do cancro, em sua memória(a história pode ser ouvida aqui).
  1. Do “deles” para o “nosso”
    Quem detém os activos mais importantes numa determinada comunidade tem uma palavra a dizer no que respeita a quem poderá levar a cabo mudanças com significado na mesma. A “transição” é muito ambiciosa, na medida em que se pretende que os locais onde se vive possam ter a capacidade de produzir os alimentos necessários e a construção de casas para as suas populações, em conjunto com a geração de empregos e poder para os que neles habitam. E, para que tal seja uma realidade, é necessário acesso a mais capital, ao apoio popular e à capacidade para que a comunidade se possa mover mais rapidamente e fazer com que as coisas aconteçam. E se possuir activos dá origem a riscos, a verdade é que também abre portas a muitas oportunidades, o que é particularmente importante no actual contexto de austeridade, na medida em que as autoridades locais estão ávidas de se descartarem de terras, edifícios e outro tipo de activos, o que poderá conferir a estes grupos comunitátrios a oportunidade de adquirirem, em conjunto, um portefólio de activos, o qual poderá funcionar como base para levarem a cabo outros projectos. A propriedade comunitária de activos constitui, aliás, uma vertente crucial da abordagem defendida pela REconomia.
  1. Da “desinvestimento” para o “reinvestimento”
    O movimento do desinvestimento tem vindo a ganhar força considerável um pouco por todo o mundo. De forma crescente, muitos dos que detêm investimentos nos combustíveis fósseis, querem ser os primeiros a abandoná-los e não os últimos a continuarem “agarrados” aos mesmos. Assim, muitos indivíduos e organizações começam a repensar onde e como devem investir. As energias renováveis comunitárias têm criado as mais ambiciosas oportunidades de investimento para muitas pessoas. Por exemplo, a Bath & West Community Energy, em conjunto com grupos com quem estabeleceram parcerias, angariaram cerca de 10 milhões de libras através de 7 ofertas de acções comunitárias, com valores entre as 350 mil libras e os 3 milhões de libras. A West Solent Solar angariou 2,5 milhões de libras para um parque de energia solar comunitário. Na Bélgica, a cooperativa Vin de Liege, foi a responsável pela angariação de 2 milhões de euros para criar uma vinha comunitária. Como será explicado mais adiante, o modelo defendido pelo Fórum de Empreendedores Locais considera o investimento em novos empreendimentos como muito mais do que uma questão monetária, acrescentando valor através do envolvimento e apoio comunitários. Para os grupos de Transição que estão a apoiar um número considerável de empresas que vão emergindo em seu redor, juntá-las para formar uma espécie de “portefólio” de oportunidades de investimento locais poderá constituir uma boa forma de se transformar o desinvestimento em reinvestimento.
  1. De “alguém devia fazer” para “vamos fazer”
    As eleições recentes que tiveram lugar no Reino Unido foram objecto, como habitualmente, de inúmeras promessas, em particular no que respeita à criação de emprego e à construção de casas. “Construiremos 200 mil casas”, diziam uns, “E nós construiremos 300 mil”, diziam outros. Mas a verdade é que existem casas e casas. Existem as que o mercado oferece, “casas acessíveis” que só os ricos podem comprar, as quais aumentam a dívida e as emissões de carbono, e que têm como base o modelo tradicional de extrair dinheiro a investidores distantes, e depois existem aquelas como as Lilac Leeds e as  Transition Homes, cuja abordagem implica uma construção em torno da acessibilidade económica, da sustentabilidade e do maior número de benefícios possível para as economias locais.

    De forma similar, existem empregos e empregos. Ao longo dos últimos anos no Reino Unido [e se fosse só no Reino Unido], cerca de um milhão de postos de trabalho no sector público foram substituídos por empregos remunerados com o salário mínimo e mais de um quinto dos trabalhadores ganha menos do que este valor, tendo de recorrer com frequência aos subsídios governamentais para ter o suficiente para comer e pagar contas. A maioria dos empreendimentos com base na REconomia compromete-se a pagar, pelo menos, o ordenado mínimo e a consagrar os direitos do trabalhador desde o início. E em vez de se assumir, numa perspectiva idealista, que o voto serve para criar o mundo que queremos ou, no outro extremo, nem nos darmos ao trabalho de ir votar porque nada vai mudar, a ideia é ficar-se no “meio” e optar pela atitude mais inteligente – “não nos limitarmos a votar”. Em vez das queixas permanentes relativamente a empresas de energia, a grandes supermercados ou aos que planeiam a construção de casas, a REconomia diz respeito à criação de empresas de energia, sistemas de alimentação e projectos de construção de forma comunitária. Uma atitude bem sumarizada foi publicado num excelente artigo de jornal sobre a Transition Neath no País de Gales, a qual defende que [a REconomy] é “uma zona livre de negativismos – concentramo-nos no que podemos fazer em vez do que não podemos fazer”.

© Transitiontowntotnes.org
© Transitiontowntotnes.org
  1. Da “rede dos velhos rapazes” para “todos são investidores”
    A abordagem convencional para financiar novas actividades económicas é a procura de investimento por parte de instituições bancárias e/ou investidores, ou por parte de fundos governamentais. São várias as parcerias com empresas locais que parecem seguir a linha tradicional da “rede dos velhos rapazes”, um modelo de distribuição dos fundos de crescimento regional baseado em “quem se conhece”. Adicionalmente e ainda mais perturbador é o facto de estes defenderem a preservação do “business as usual”, o que já não é uma opção. Tal como Naomi Klein escreve no seu livro This Changes Everything, e sobre o qual o VER já escreveu “já não existem soluções não-radicais”.

    Assim, como é que as comunidades podem financiar os novos empreendedores e as inovações necessárias à sua (boa) transição? Um dos melhores modelos para tal reside no Fórum de Empreendedores Locais, o qual teve início em Totnes (e que teve uma nova edição ontem) e em Brixton, com nova edição marcada para 2 de Junho. Neste fórum, é defendida uma abordagem que reconhece que toda a gente pode ser um investidor, seja porque oferece uma caneta, se faz babysitting aos filhos de alguém enquanto esta pessoa precisa de ir ao banco falar com o seu gestor de conta, quando se empresta 10 ou 10 mil libras, quando se oferece apoio jurídico, o design de um website ou qualquer outra coisa. Uma outra forma que está a ter resultados cada vez melhores é o crowdfunding.

  1. Do “nicho” para a “generalização”
    Todas estas ideias estão a mover-se rapidamente, deixando de ser apanágio de alguns para se transformarem numa alternativa para muitos. Um dos melhores exemplos desta “generalização” é o trabalho que o Centre for Local Economic Strategies tem vindo a fazer com o Preston Council, analisando a forma como os principais stakeholders da cidade gastam o se dinheiro, numa espécie de “Economic Blueprint” para a cidade. Em conjunto, estes stakeholders (duas autoridades locais, uma instituição do ensino superior, duas outras instituições de ensino, a polícia, os bombeiros, os hospitais e cooperativas imobiliárias) gastaram 75 milhões de libras num ano, dos quais apenas 4% foi realmente gasto em Preston e 29% no condado de Lancashire. O relatório identifica um número de estratégias de acordo com as quais uma mudança de foco poderia dar origem a uma “boa economia local”. O trabalho é explicado neste vídeo da New Economics Foundation, a qual tem apoiado vivamente o movimento da REconomia.
  1. Do “oh não, outra vez” para o “nunca mais”
    Na esmagadora maioria das vezes, a abordagem convencional à economia e ao desenvolvimento é algo que é feito às comunidades e não feito para as comunidades. Na esmagadora maioria das vezes, uma nova proposta para um supermercado ou para a construção de um bloco de apartamentos é recebida com um erguer de sobrancelhas e com a expressão de resignação ” Oh não, outra vez”. As comunidades vêem-se incapazes de resistir aos “desenvolvimentos” devido à capacidade dos “desenvolvedores” contratarem melhores advogados para ganhar um recurso e cilindrarem a opinião local ao longo do processo.

    Todavia, se as comunidades são capazes de ser proprietárias dos seus próprios activos e se conseguem gerar retorno através da sua utilização, tal significa que a sua capacidade para influenciar os resultados também pode ser transformada. Esta realidade coloca a comunidade em posição de dizer “nunca mais” com um sentido firme de propósito. O “nunca mais” torna-se assertivo, poderoso, mas sempre assente num compromisso de fazer melhor, enraizado nas necessidades e desejos genuínos das economias locais.

  1. Das “cidades clonadas” para “locais de possibilidades”
    A iniciativa Growing Communities em Hackney tem um projecto de produção local de géneros alimentícios extraordinário. E no centro de Londres. E descreve-se a si mesma como “uma organização liderada por uma comunidade, sedeada em Hackney, North London, a qual está a fornecer uma verdadeira alternativa ao actual sistema alimentar nocivo”. É um verdadeiro modelo para uma nova economia da alimentação no meio de uma cidade, o qual pode responder à questão: “será que Londres se pode alimentar a si mesma?”. É também um convite à inovação, ao empreendedorismo e à criatividade, algo que não é feito há várias gerações. E o melhor de tudo isto é que está mesmo a acontecer. Um pouco por toda a cidade, estão a florescer novos empreendimentos: novos mercados de jardins urbanos, pessoas a cultivar cogumelos em estações de metro abandonadas, cervejeiras artesanais, plantações de pomares, novos mercados como o extraordinário mercado gastronómico da Crystal Palace Transition Town, o qual foi o segundo classificado no concurso da BBC intitulado “Food and Farming Awards”, e que premeia este tipo de iniciativas em todo o país, Assim, onde estão os melhores locais para se encontrar a criatividade, a inovação, os bons sabores, a comunidade, o riso, o futuro? No Lidl ou neste novo modelo emergente?

De acordo com o autor de estes oito paradigmas, “encontramo-nos no limiar de uma mudança histórica, de uma transição histórica, à medida que a globalização económica começa a inverter a sua marcha. Há que saborear o momento e enriquecê-lo com possibilidades”.

NOTA: Os interessados em conhecer melhor as iniciativas e contornos destes projectos de REconomia poderão visitar o website www.reconomy.org e pedir informações específicas aqui.

Editora Executiva