Sentirmo-nos constantemente pressionados pelo tempo, ou pela falta dele, é um sintoma dos tempos modernos. Principalmente nos casos em que os nossos rendimentos são mais elevados. Se trabalhamos para ganhar mais dinheiro, é quase irresistível não trabalharmos ainda mais para poder encher, crescentemente, os nossos bolsos. Se trabalhamos mais, dormimos menos. Se ganhamos mais, vemos menos televisão e vamos mais ao teatro. Se somos pobres, temos menos incentivos para ganhar mais. Confuso? Daniel Hamermesh, economista e a mais proeminente figura mundial no que respeita ao estudo do tempo na economia, explica (quase) tudo no seu mais recente livro sobre como as pessoas utilizam o seu tempo e o que determina as suas decisões face à forma como o gastam
POR HELENA OLIVEIRA

Para os economistas, a ideia de ‘gastar’ tempo não é uma metáfora, pois é possível gastar qualquer que seja o recurso e não apenas dinheiro. E, entre todas as desigualdades existentes no nosso mundo, é verdade que a todas as pessoas são alocadas as mesmas 24 horas por dia”, Daniel Hamermesh

Desde 1947, data em que o eminente académico e economista norte-americano Daniel Hamermesh recebeu, com quatro anos, o seu primeiro relógio, que o tempo faz parte das suas principais preocupações e investigações. “Pura neurose”, afirma, numa entrevista que concedeu à Wharton School of Management acerca do seu mais recente livro “Spending Time: the Most Valuable Resource”.

Hamermesh é considerado como a mais proeminente figura mundial no que respeita ao estudo do tempo na economia, em particular na área que se dedica à escassez, assegurando que é necessário olharmos para este valioso recurso de uma forma diferente, na medida em que os nossos rendimentos têm vindo a aumentar ao longo das três últimas gerações, sem existir qualquer aumento no tempo que temos ao nosso dispor. Por causa disso, somos forçados a tomar inúmeras e complexas decisões: optamos por comprar alguma coisa com o dinheiro que ganhamos, o que geralmente implica uma escolha de não adquirirmos outra coisa qualquer; ou preferimos antes uma experiência – que também custa dinheiro, apesar de forma distinta; e se optarmos por comprar seja o que for, temos tempo de gozar essa mesma aquisição? Estas e outras perguntas são respondidas, com a ajuda da economia, no livro já citado e que oferece perspectivas surpreendentes no que respeita à forma como as pessoas utilizam o seu tempo e sobre o que determina as suas decisões na utilização que fazem do mesmo.

Na medida em que o tempo que temos é limitado pelo número de horas existentes num dia, pelo número de dias existentes num ano e pelo número de anos existentes nas nossas vidas, Hamermesh discorre sobre os constrangimentos que enfrentamos ao despendê-lo e sobre as escolhas que somos obrigados a fazer e que envolvem trade-offs obrigatórios. Quanto tempo dedicamos ao sono, a ver televisão, às obrigações domésticas, ao divertimento e, é claro, ao trabalho varia consideravelmente entre diferentes culturas, classes e sexos. E tendo como cenário principal os Estados Unidos – os campeões do trabalho entre as nações ricas – o autor faz igualmente uma análise comparativa com outros países desenvolvidos, como a França, a Alemanha, o Reino Unido, o Japão ou a Noruega relacionada com a forma como utilizam o seu tempo, sendo os resultados profundamente dependentes do tipo de rendimentos auferidos pelos seus segmentos populacionais, por exemplo.

Numa sociedade que se queixa todos os dias da falta de tempo, vale a pena gastar algum para saber o que Daniel Hamermesh concluiu depois de décadas a investigar o nosso mais valioso, e simultaneamente mais escasso, recurso.

Economia, tempo para os ricos e tempo para os pobres

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As formas mediante as quais as pessoas usam o seu tempo têm vindo a registar significativas alterações ao longo do último século, em particular nos países ricos: mais horas de trabalho, mais rendimento; menos trabalho pago, menos tempo despendido nas tarefas domésticas, mais tempo passado em actividades de lazer. A teoria económica formal para analisar estas e outras mudanças teve o seu início num artigo publicado em 1965 por Gary Becker, sendo que a sua tese principal apontava para o facto de que as pessoas não se limitam a consumir bens (gastando os seus rendimentos) e a utilizar o seu tempo extra-trabalho, mas antes a combinar esses bens e o tempo na produção doméstica (cozinhar, cuidar das crianças, fazer comprar, preparar refeições, limpar a casa, tc.). Este argumento leva à conclusão que as actividades que demoram pouco tempo e muito dinheiro são desproporcionalmente realizadas por pessoas de elevados rendimentos, enquanto aquelas que levam mais tempo, como as horas de sono, por exemplo, são negligenciadas por estas mesmas pessoas.

Com base nos “diários de tempo” utilizados pelos Estados Unidos nos últimos 20 anos, nos quais cerca de 1000 pessoas têm vindo a registar todas as suas actividades ao longo do dia – e o mesmo a ser feito feito noutros países desenvolvidos – existe agora uma enorme panóplia de dados, utilizada por Hamermesh para a sua pesquisa, que permite analisar o tempo enquanto um factor económico, em particular devido à sua escassez. Como afirma o autor, “a economia é mais sobre escassez do que sobre outra coisa qualquer”. E isto é especialmente verdade para as pessoas ricas que têm muito dinheiro, mas que não têm mais tempo do que aquele que os pobres têm. E existe uma enorme distinção na utilização do mesmo por parte de ambas as classes. De acordo com o autor, os ricos trabalham mais do que os outros (e devem fazê-lo), na medida em que têm muito mais incentivos para o fazer. Mas mesmo aqueles que não trabalham, usam o tempo de forma distinta. Uma pessoa rica vê menos televisão do que uma pessoa pobre – no mínimo, menos uma hora -, dorme menos, e vai mais a museus e ao teatro. Tudo o que envolva dinheiro, os ricos fazem mais, e coisas que exigem muito tempo e pouco dinheiro, fazem menos. E isso é verdade nos Estados Unidos, em França e em todos os países ricos analisados.

Esta realidade aumenta o fosso de rendimentos entre ricos e pobres, na medida em que da mesma forma que existem mais incentivos para os ricos trabalharem mais – e ganharem mais dinheiro, ficando assim mais ricos -, existem muito menos incentivos para que uma pessoa com um baixo rendimento trabalhe mais. Como afirma o autor “é o nosso próprio comportamento a responder aos incentivos que exacerba tanto o gap de rendimentos como o gap de tempo entre ricos e pobres”.

No que respeita às actividades mais “gastadoras de tempo”, o sono posiciona-se no primeiro lugar, seguido directamente pelo trabalho, sendo que este se divide em quatro categorias: “trabalhar por um salário” – em que se é pago; “produção doméstica” – em que se paga a outra pessoa para o fazer (para quem tem dinheiro para isso); “cuidados pessoais”, que têm de ser obrigatoriamente feito por nós e “lazer”, em que queremos fazer esse trabalho. E os diários de utilização do tempo demonstram que o sexo, a idade e o rendimento afectam a forma como operamos no interior destas categorias. No que respeita, por exemplo, às diferenças de utilização do tempo entre homens e mulheres, a pesquisa de Hamermesh concluiu que em particular nos Estados Unidos e nas nações do norte da Europa, ambos os sexos partilham sensivelmente a mesma quantidade de trabalho total, com as mulheres a trabalharem uma hora semanal a mais face aos homens. Todavia, o tempo – e o stress sentido devido à sua escassez – é sentido de uma forma muito mais “perturbadora” pelas mulheres, na medida em que fazem mais “malabarismos” e, geralmente, são mais eficientes a fazerem mais coisas ao mesmo tempo comparativamente aos seus pares masculinos.

Cidadãos dos Estados Unidos são os que trabalham mais horas

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Tendo como ponto de referência os Estados Unidos – os campeões do trabalho entre os países ricos -, Hamermesh concluiu que os americanos trabalham, em média, mais oito horas por semana do que os alemães e mais seis do que os franceses, uma diferença face ao que acontecia há 40 anos, em que todos estes países trabalhavam sensivelmente o mesmo número de horas. “Hoje, até os japoneses trabalham menos do que nós”, assegura o autor. E o principal motivo para tal prende-se com o facto de os americanos tirarem muito poucos dias de férias, ou até nenhuns, face a quatro, cinco ou até seis semanas tiradas pelos demais países ricos que integram a sua análise.

Por causa disto, existe igualmente um gap salarial entre os Estados Unidos – onde se ganha mais – e países como a Alemanha, a França e o Japão. Todavia, comparativamente à Noruega – onde os trabalhadores são autorizados a ter quatro ou cinco semanas de férias – esse fosso não existe na medida em que ganham tanto ou mais que os americanos. Este factor é de extrema importância para o autor, na medida em que considera ser este o propósito do seu livro: apesar de, em principio, ser uma escolha trabalhar mais para ganhar mais, a ideia de Hamermesh é que “se tire um tempinho” para pensar de que forma utilizamos o tempo e como a sociedade nos impõe essa mesma utilização. “Se as pessoas pensassem mais sobre a forma como gastam o seu tempo, e decidissem optar por mais tempo e menos dinheiro, seriam decerto mais felizes”, diz,

Por exemplo, e voltando ao exemplo dos Estados Unidos comparativamente aos países da Europa Ocidental, é muito difícil encontrar uma loja aberta aos Domingos nestes últimos. O mesmo acontece com o trabalho nocturno – ninguém trabalha mais de noite do que os americanos, assegura o autor -, nem ao final do dia, nem aos sábados e aos domingos. “Estamos a trabalhar o tempo todo e cada vez mais”, diz.

“Se definirmos a economia como a utilização de recursos escassos para maximizarmos o nosso bem-estar, então não existem dúvidas de que esta realidade oferece mais rendimento do que nunca. Mas também nos obriga a correr cada vez mais e a sentirmo-nos menos felizes”, acrescenta ainda. E é por isso que defende uma política colectiva que incentive a alterar o comportamento face a esta corrida por dinheiro que mata o tempo para se fazer outras coisas, ou seja, que exista legislação que coloque um travão neste “workaholism” tal como a maior parte dos países ricos fez entre 1979 e 2000.

Todavia, Hamermesh não acredita que tal irá acontecer, pelo contrário. Quem ganha mais porque trabalha mais irá querer cada vez mais dinheiro nos seus bolsos e terá cada vez menos tempo para se dedicar a outras actividades. E é também por isso que as pessoas se sentem cada vez mais perturbadas pela inexistência de tempo. “Se os outros trabalham ao Domingo para ganhar mais, então eu também tenho de trabalhar ao Domingo se quero ‘andar para a frente’”, é a atitude “normal” nos dias que correm, afirma ainda o autor.

Tempo, stress e dinheiro

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Nas sociedades ricas, as pessoas tendem a queixar-se constantemente sobre o quão ocupadas estão (e são). Todavia, diz o autor, estas mesmas pessoas utilizam este “busyness” como um sinal da sua importância e como se merecessem uma medalha por isso. Estar stressado devido à falta de tempo surge, assim, como um indicador da importância e do status de cada um na sociedade.

E existem duas coisas que levam as pessoas a expressar os seus sentimentos face ao facto de “viverem em correria”: a forma como despendem o tempo e quão elevado é o seu rendimento. E se é verdade que todos temos as mesmas 24 horas por dia, algumas actividades fazem-nos sentir mais stress do que outras.

As evidências existentes para a França, a Alemanha e os Estados Unidos demonstram que o trabalho remunerado é a actividade que mais stress gera. Dormir e ver televisão, pelo contrário, não geram stress e outras actividades de lazer, em conjunto com as actividades domésticas, posicionam-se numa categoria intermédia, de acordo com as pesquisas de Hamermesh.

Claro que, e mais uma vez, os rendimentos contam e muito. De acordo com dados existentes para a Austrália, a Alemanha e os Estados Unidos, as pessoas que ganham mais à hora são as que mais pressão sentem devido à falta de tempo quando comparadas com os seus concidadãos da mesma idade e que vivem nas mesmas cidades analisadas, e que possuem o mesmo estado marital, o mesmo nível educacional e o mesmo número de filhos.

Ou seja, as pessoas que se dizem sentir stressadas sempre ou muitas vezes ganham mais do que os que declaram sentir-se stressados às vezes. Por sua vez, estes últimos ganham também mais do que aqueles que se sentem raramente stressados, sendo que os menos pressionados são os que auferem salários mais baixos face a todos os outros grupos considerados. O que Hamermesh pretende demonstrar com estes dados é que o stress relacionado com o tempo – ou com a falta dele – é uma “doença” das pessoas com elevados rendimentos.

Claro que tal não significa que quem não recebe nenhum rendimento, não sinta a pressão do tempo. De acordo com o autor, isso está errado. A razão é que os não trabalhadores têm outras fontes de rendimento, como pensões, dinheiro proveniente de investimentos ou acesso aos rendimentos do companheiro/a. Grande parte deste rendimento não vai para poupanças e, por isso, tem de ser gasto. E mesmo gastá-lo em bens ou actividades de luxo “gasta” tempo. Como escreve Hamermesh, “Maseratis têm de ser conduzidos, iates têm de ser pilotados e lugares em camarotes na Metropolitan Opera exigem tempo para ouvir ópera”. Ou seja, gasta-se tempo a gastar dinheiro.

E, de acordo com a pesquisa de Hamermesh, isto é verdade na Alemanha, em França e no Reino Unido, três países onde dados recentes permitiram testar e confirmar esta tese. Mais uma vez, a pressão do tempo afigura-se como uma “doença” para pessoas com altos rendimentos, independentemente de trabalharem por dinheiro ou não trabalharem de todo.

Assim, escreve o autor, “quando alguém se queixa que está stressado por falta de tempo, “não lhe devemos oferecer a nossa simpatia”. “Se a sua vontade é terem menos stress, então que desistam de parte do seu rendimento”, acrescenta ainda. Mas e na medida que os dados demonstram que as pessoas que expressam menos pressão relacionada com o tempo expressam em simultâneo mais pressão relacionada com o dinheiro, então isso significaria que, caso optassem por ter mais tempo, passariam a queixar-se por terem menor rendimento.

Ou e em suma, para o especialista em tempo na economia da escassez, as pessoas sentem-se sempre pressionadas seja relativamente ao tempo, seja relativamente o dinheiro. Mas e raramente, não relativamente a ambas as coisas ao mesmo tempo.

Editora Executiva