Num momento em que nos é proposto e imposto um estado de confinamento, de afastamento dos outros, daqueles de quem tanto gostamos, dos com quem e para quem trabalhamos, dos com quem simplesmente nos cruzávamos, vivo a experiência de um confinamento físico mas não social. Curiosamente tenho tido a oportunidade de me aproximar de pessoas e realidades que até estavam perto mas que ficaram mais nítidas quando as perdi de vista ou quando as passei a ver e ouvir por vídeo call. Fenómeno estranho este…
POR CÁTIA SÁ GUERREIRO

Quero partilhar convosco o que tenho vivido nestes tempos de confinamento, enquanto diretora do programa de Gestão de Organizações Sociais (GOS), ministrado na AESE Business School. Faço-o porque penso que o devo fazer. Porque tenho recebido tanto das entidades do setor de economia social com quem lido, agora virtualmente, mas não de forma distante.

No início da edição do GOS 2020, em fevereiro, tínhamos tudo bem preparado. Veio o vírus. Tudo mudou. O GOS não deixou de ter aulas. Testemunho a determinação daqueles que, estando na linha da frente da luta contra os efeitos desta pandemia, param uma tarde por semana para ter aulas online. Param para estar uns com os outros. Param para criar rede, de forma espontânea. Entreajudam-se. Fazem valer recursos que já existem. Partilham ideias, bens, serviços, conhecimento. Ouvem-se. Sabem que existem e não estão sós. Fazem-se companhia. Eles inquietam os que os veem e ouvem, pedem-nos que os ajudemos a não baixar os braços.

Ao longo destas semanas temos ouvido e visto muitos e merecidos elogios aos profissionais de saúde e segurança que têm trabalhado incansavelmente, e tantas vezes colocando-se em risco, por Portugal, pelas nossas gentes. Hoje, aqui, tenho de estender estes elogios, tenho de dizer bem alto um obrigada, a todas e a todos aqueles que, nas entidades do setor de economia social, se ocupam da população em risco. Funcionários de lares, de instituições de acolhimento de crianças e jovens, de associações de doentes, de tantas entidades que dão respostas a necessidades de primeira linha a pessoas que são consideradas vulneráveis e de risco neste cenário de pandemia. O setor do silêncio, que tantas vezes pouca projeção dá ao que faz, mas que está sempre presente.

Que desafios enfrentam estas entidades?

Cuidam dos outros todos os dias, 24 horas por dia, sete dias da semana, feriados, fins-de-semana, épocas especiais. São o rosto de quem acalma o outro, de quem cuida, esquecendo-se de si e dos seus medos. São eles quem acalma a saudade das famílias separadas. São, tantas vezes, a mão que ampara o último adeus.(1)

Enfrentam os desafios da gestão de recursos humanos neste cenário conturbado, da assistência às famílias (e também às suas!), dos horários onde as horas crescem e o tempo de repouso diminui.

Enfrentam desafios de trabalho em articulação com as entidades do Estado, com as orientações nacionais, e têm estado na linha da frente deste desafio de harmonia em prol do bem comum. Para lá do que ouvimos, das queixas que surgem, dos relatos de dificuldades, fica a certeza de esforços de todas as partes por chegar a bom porto na implementação de respostas eficazes e eficientes à pandemia.

Enfrentam desafios de sustentabilidade que, certamente, se farão sentir para lá desta fase, quando a prevalência da doença diminuir e os ritmos regressarem à esperada normalidade. Muitas organizações sociais não têm reservas financeiras que permitam aguentar o impacto de um evento catastrófico, o que significa que meses de redução de financiamento poderão conduzir ao desemprego de muitas pessoas e ao colapso de algumas organizações (2).

Enfrentam desafios na forma como prestam serviços. Planeamento. Tomada de decisão. Inovação. Estratégias nem sempre fáceis de assumir neste setor.

Enfrentam ainda o grande tema da Saúde Mental. Que impacto terá esta situação pandémica na nossa forma de viver em sociedade e na nossa saúde mental? O isolamento e seus efeitos. Os idosos sozinhos. Os doentes com pouca companhia. Que vai na mente das pessoas? Dos utentes e também na das suas famílias? E dos profissionais, há semanas em situação de stress?

Como encarar estes desafios?

São aqui muito válidas as 7 Lessons for Leading in Crisis descritas por Bill George (3). Sem me deter na sua enumeração e descrição, sublinho que este autor faz duas afirmações no mínimo úteis às entidades deste setor nesta fase da sua existência. Em primeiro lugar, Crises offer rare opportunities to make major changes in an organization because they lessen the resistance that exists in good times. Olhar esta crise como uma oportunidade para fomentar a resiliência. E a flexibilidade também. Tanto para aprender ou simplesmente para ir buscar ao mais profundo de cada funcionário, de cada entidade. E aos líderes o desafio é também grande: See crisis as a chance to develop and enhance your leadership skills. Sim, para os responsáveis das entidades do setor social esta pode ser uma oportunidade para desenvolver ou aprofundar competências de liderança que impactem no presente e no futuro das suas organizações.

Tal como nos outros setores de atividade, também neste as crises, os fracassos e os problemas são parte integrante da vida das organizações. Cabe aos líderes enfrentar essas realidades com tenacidade, coragem, integridade e espírito de aprendizagem com os erros – e não negá-las ou procurar bodes expiatórios (4).

Caberá a cada um e cada uma, dentro do setor, o desafio de encarar a realidade: voltar à normalidade não é voltar ao que éramos. As instituições não voltarão a funcionar da mesma forma. Terão de se repensar. Com ânimo, sem saudosismo, com realismo e determinação.

Àqueles que não são deste setor, o tempo presente lança desafios no sentido do apoio à economia social. Que posso eu fazer? Que pode a minha empresa realizar? Em primeiro lugar, a um nível amplo, urge considerar que os Estados não serão a solução para a sustentabilidade destas entidades, pois estarão assoberbados, a desenhar respostas que mantenham a pandemia controlada, a dar suporte ao sistema de saúde, e a lutar por uma vacina que consiga fazer a normalidade regressar (2). Contribuirão mas não estará neles a garantia da sustentabilidade. A mesma fonte refere ser urgente que os grandes financiadores privados mundiais não esqueçam as organizações sociais e de suporte à comunidade – que os muitos fundos acrescidos necessários para o combate à COVID-19 não canibalizem o dinheiro dos financiamentos regulares às organizações.

Isto tem de nos fazer pensar. Como cidadão e como empresas. Que vamos fazer? Valerá a pena repensar a forma como exercemos a responsabilidade social? Os desafios da intersetoralidade!

Novas questões para caminhos inovadores

Levantam-se ainda uma série de questões do domínio ético que não nos podem deixar indiferentes. Ouso dizer que, antes de opinar sobre elas, urge que nos questionemos a fundo, procurando chegar a respostas consistentes e não meramente opinativas.

O lugar e o papel dos idosos na nossa sociedade. O apoio a quem deles cuida e a quem quer cuidar mas não pode. Ouvimos tantas vezes a expressão de que “os idosos são uma oportunidade”. Isto sugere que os lares analisem a oferta que têm dado nos últimos anos, assim como a que quererão dar. E temos de repensar o apoio ao domicílio, a possibilidade de as famílias cuidem dos seus sem que isso ponha em risco postos de trabalho.

Os modelos de gestão pré-COVID 19 utilizados pelas entidades do setor de economia social poderão já não ser adequados. Os desafios do teletrabalho em instituições onde a pessoa é o foco da intervenção. Articulação com os Cuidados de Saúde Primários. Quantos dilemas éticos! E o desemprego. A pobreza que sabemos vem crescendo. Como apoiar? Como manter o desafio da sustentabilidade que abraçamos globalmente, não apenas neste setor? Sobretudo emerge a convicção de que o setor terá de reinventar a sua forma de existir. Para existir para a que sempre foi a sua missão – a promoção do bem comum. Como não desvirtuar a missão num mundo em tão grande mudança?

O trabalho em rede e as parcerias apresentam-se como estratégias desejáveis. E levantam-se questões de valores. Valores que ficaram esquecidos ou escondidos na corrida do nosso tempo e que voltarão a estar na base das relações sociais, laborais, familiares. Olhemos tantos exemplos de entreajuda, de abertura ao outro, quando estamos fisicamente confinados, tantas ideias e ações de todos os quadrantes da sociedade. Resiliência. Flexibilidade. Não voltaremos ao que éramos.

Tudo isto será uma oportunidade, sem dúvida. Uma luta, já o é. Emergirão os bons líderes. Emergirão os que inspiram. Os que deixam rasto para lá das agruras do tempo presente. Os que sabem contar histórias com cor no cinzento dos dias. É a tempestade que consagra os bons marinheiros. São esses que emergirão. É desses que queremos ouvir a voz, mais alta que a dos lamentos do impacto do inesperado.


1. De alma e coração: OBRIGADO! [Internet]. [cited 2020 Apr 8]. Available from: http://www.solidariedade.pt/site/detalhe/13887

2. Pedra C. Quando o suporte colapsa [Internet]. VER. 2020 [cited 2020 Apr 20]. Available from: https://ver.pt/quando-o-suporte-colapsa/

3. George B. Seven lessons for leading in crisis. Jossey Bass; 2009.

4. Rego A, Pina e Cunha M. Liderar em tempos de crise – reflexões para a ação. Católica Porto Business School; 2020.

(artigo adaptado do publicado pela autora na rúbrica Article a day da AESE Business School no passado dia 23 de abril http://aese.com.pt/article/ARTIGOS.html)

Directora do programa de Gestão de Organizações Sociais (GOS) na AESE Business School