Erradicar o sofrimento humano exige soluções políticas, união de propósitos e de lideranças e investimento humano e financeiro. Exige aquilo que parece impossível, mas não é: que todos (juntos) construamos dignidade para uma (só) humanidade. Ban Ki-moon não desiste e lança mais um apelo, que quer transformar em agenda de acção global para combater a crise mundial de refugiados e migrantes sem precedentes a que o mundo assiste, desinspirado
POR GABRIELA COSTA

“As privações humanitárias atingiram níveis máximos, mas as soluções políticas para as mitigar são evasivas”

Nos últimos anos, o mundo está a assistir a uma escalada sem precedentes de carências ao nível mais básico das necessidades humanas, enfrentando alguns dos maiores e mais complexos desafios do nosso tempo.

03032016_TemosDeEm 2015 existiam 125 milhões de pessoas com urgência em receber auxílio humanitário, e 60 milhões – metade das quais são crianças – foram forçadas a abandonar as suas casas, devido a violência e conflitos armados. Esta realidade afecta 37 países e requer um financiamento externo na ordem dos 20 mil milhões de dólares, denunciam as Nações Unidas. Ao mesmo tempo, os custos humanos e económicos das crescentes catástrofes naturais ocorridas nas duas últimas décadas cifram-se hoje em 218 milhões de pessoas afectadas a cada ano, o que representa um custo anual para a economia global que ultrapassa já os 300 mil milhões de dólares.

Congratulando-se com os acordos globais alcançados no ano passado, como a adopção dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODS) no âmbito da nova Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e o Acordo de Paris saído da COP 21 – reveladores de como “a comunidade internacional é capaz de se unir e lidar com desafios globais como a pobreza e as alterações climáticas”, construindo assim “um mundo melhor para as gerações futuras”, a ONU alerta que “agora é o momento de transformar as promessas em acções para essa geração”, reconhecendo e preservando “o direito que as pessoas têm de viver em segurança, com dignidade e com a perspectiva de prosperar, enquanto ‘donas’ do seu próprio destino”.

Foi neste contexto que o Secretário-Geral das Nações Unidas convocou a primeira Cimeira Mundial de Apoio Humanitário, agendada para os dias 23 e 24 de Maio, em Istambul, na Turquia. O grande objectivo desta grande campanha global de acção “é reafirmar o nosso compromisso com a humanidade e traçar um caminho para a mudança”, definindo “novas estratégias para salvar vidas e prevenir e aliviar o sofrimento humano”, apelou Ban Ki-moon.

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O evento gerido pelo Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), reunirá no Istanbul Congress Center (ICC) e no Lutfi Kirdar Convention and Exhibition Center (LKCC) comunidades de pessoas afectadas por crises humanitárias com governos e líderes mundiais de dezenas de países, organizações humanitárias e não-governamentais, representantes de movimentos jovens e outros parceiros essenciais para encontrar soluções para os desafios mais urgentes e definir uma agenda efectiva para a acção humanitária no futuro, como o sector privado.

Ao todo são esperados mais de 5 mil participantes neste que será o primeiro grande encontro global dedicado às actuais questões do crescente fluxo de migração que está a gerar uma crise de refugiados sem precedentes, desde a 2ª Guerra Mundial (hoje, os 60 milhões de deslocados ultrapassam já o número gerado pela Grande Guerra).

A Cimeira, que tem três objectivos centrais – revitalizar o compromisso global com a humanidade e com a universalidade dos princípios humanitários; iniciar um conjunto de acções e de compromissos concretos, com vista a possibilitar que as nações e as comunidades se preparem eficazmente para responder com resiliência aos impactos desta crise; e partilhar inovações e boas práticas que ajudem a salvar vidas em todo o mundo, colocando as pessoas afectadas no centro da acção humanitária, com o intuito de aliviar o enorme sofrimento por que estão a passar – incluirá sete mesas redondas, dedicadas a temáticas como as lideranças necessárias para prevenir e combater os actuais conflitos, os esforços políticos, legais e operacionais concretos exigidos para reduzir os deslocamentos forçados, a dinamização de acções para alcançar a igualdade de géneros, ou a gestão de riscos inerente ao combate diferenciado de catástrofes naturais e alterações climáticas.

Nestas sessões, diversos Chefes de Estado e de Governo e altos representantes de várias entidades da sociedade civil terão a oportunidade de determinar medidas ambiciosas para enfrentar a premente crise humanitária. De destacar também um painel sobre financiamento humanitário que visa contribuir para o debate através de propostas sobre como diminuir as lacunas existentes entre as necessidades e os recursos disponíveis para as solucionar.

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A nova agenda para a humanidade

Não é DA mas PARA a agenda que Ban Ki-moon quer ver adoptada por toda uma humanidade em crise. Infelizmente, e na prática, não existe.

Consciente que “a escala e o custo de lidar com as necessidades humanitárias estão progressivamente a comprometer a capacidade de resposta” do mundo a esta complexa realidade que se agrava a cada dia, e que “o futuro será ainda pior se não tomarmos medidas decisivas e colectivas agora”, o secretário-geral da ONU, também ele vítima, quando tinha seis anos, de uma deslocação forçada devido à guerra na sua terra Natal, na Coreia do Sul, embarcou numa missão inédita.

Precedida por uma extensa investigação realizada durante três anos em 153 países, envolvendo cerca de 23 mil pessoas, e apresentada, a 9 de Fevereiro, no relatório “One Humanity: Shared Responsability”, que Ban Ki-moon elaborou como documento preparatório do Encontro que terá lugar em Maio, na Turquia, a Agenda para a Humanidade elege cinco grandes responsabilidades consideradas prioritárias, enquanto compromissos fundamentais que toda a comunidade internacional deve assumir e partilhar, colocando assim a caridade humana no centro da tomada de decisões, pelos líderes mundiais:

1. LIDERANÇA GLOBAL PARA PREVENIR E ACABAR COM OS CONFLITOS

Prevenir os conflitos e a violência deve ser a responsabilidade primordial da humanidade

Erradicar o sofrimento humano exige soluções políticas, união de propósitos e de lideranças sustentáveis e investimento em sociedades pacíficas. Os conflitos armados devido a causas políticas, sociais ou religiosas são responsáveis por 80% do total de necessidades a nível humanitário, em todo o mundo.

2. PRESERVAR AS NORMAS QUE SALVAGUARDAM A HUMANIDADE

Minimizar o sofrimento humano e proteger as populações exige o reforço do cumprimento das leis internacionais

Todos os dias, dezenas de civis são, deliberada e indiscriminadamente, mortos em guerras. A sociedade contemporânea está a testemunhar a erosão de 150 anos de leis internacionais de protecção humanitária. 90% da população morta ou ferida pelo uso de armas de fogo e explosivos em áreas urbanas são civis.

3. NÃO ABANDONAR NINGUÉM

Honrar o compromisso de não deixar ninguém para trás requer obter apoio para todas as pessoas em risco e vulnerabilidade devido a situações de conflito ou catástrofe

Perante o compromisso global para transformar as vidas de todos os que estão em risco de abandono e esquecimento, é preciso garantir uma assistência humanitária que abranja as populações vulneráveis em todos os pontos do globo. É urgente dar mais poder a todas as pessoas, especialmente às mulheres, para liderarem uma mudança positiva nas suas vidas, garantir maior protecção às crianças, reduzir os deslocamentos forçados, apoiar os refugiados e migrantes, combater a violência sexual e de género e reduzir os fossos na educação entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, tal como foi firmado pelos líderes mundiais na Agenda 2030.

4. MUDAR A VIDA DAS PESSOAS – DA ASSISTÊNCIA HUMANITÁRIA À ERRADICAÇÃO DAS PRIVAÇÕES

Acabar com as carências implica reforçar os sistemas locais e ultrapassar fossos ao nível do desenvolvimento humanitário

Hoje, o sucesso tem de ser quantificado pelos níveis de redução da vulnerabilidade e risco das populações. Erradicar privações nas necessidades mais básicas do ser humano tem de passar por três mudanças estratégicas: reforçar os sistemas nacionais de protecção; antecipar as crises humanitárias; e ultrapassar as divisões ao nível do desenvolvimento humanitário. Actualmente, 43% da população mundial vive em condições de vulnerabilidade, número que, se estima, disparará para 62%, em 2030.

5. INVESTIR NA HUMANIDADE

Agir sobre as responsabilidades partilhadas para o apoio humanitário exige um investimento político, institucional e financeiro

É necessária uma transição do mero financiamento para um investimento em recursos locais, e adoptar medidas de investimento assentes no conhecimento dos riscos ao apoiar situações de fragilidade ou soluções abrangentes que não se adeqúem à realidade local. Paralelamente, há que diminuir as lacunas de financiamento para assistência humanitária. Em 2014, apenas 0,4% da Ajuda Pública ao Desenvolvimento foi destinada a assistência a catástrofes.

Com esta Agenda o secretário-geral apela aos líderes mundiais, a todos os stakeholders – de empresas, a organizações da sociedade civil e a todos cidadãos – para aceitarem e agirem com responsabilidade sobre estas cinco mudanças estratégicas prementes.

Insistindo, no seu relatório para o World Humanitarian Summit, que “uma das consequências mais visíveis dos conflitos, violências e calamidades [que grassam pelo mundo] tem sido o deslocamento massivo de populações, Ban Ki-moon acredita que esta Cimeira “é o momento para nos juntarmos para renovar o nosso compromisso com a humanidade e com a união e cooperação exigidas para prevenir e acabar com as crises e reduzir o sofrimento e a vulnerabilidade das pessoas”, como enunciou na apresentação do mesmo.

[pull_quote_left]A escala e o custo de lidar com as necessidades humanitárias estão progressivamente a comprometer a capacidade de resposta[/pull_quote_left]

Face à complexidade dos desafios que a comunidade internacional enfrenta perante o nível de sofrimento humano que testemunhamos, todos os dias, e um pouco por todo o mundo, o secretário-geral da ONU sublinha neste seu relatório que a Cimeira Humanitária “deve ser um ponto de viragem” no modo como esta “se alia para resolver diferenças, aceitar responsabilidades individuais e colectivas, e enfrentar os desafios do nosso tempo em conjunto e de forma coerente”.

No entanto, e como destaca, as Nações Unidas precisam “do apoio dos Estados-membros para superar esses desafios, já que a ONU não pode fazer isso sozinha. “Nenhum país pode resolver todos esses problemas sozinho”, que têm como consequência mais grave 60 milhões de refugiados e deslocados internos em todo o mundo.

A Cimeira Mundial de Ajuda Humanitária deverá resultar numa série de compromissos para a acção ao mais alto nível, que visam melhorar a vida das pessoas afectadas por conflitos e catástrofes naturais. Os principais resultados do Encontro serão apresentados numa síntese dos trabalhos elaborada por Ban Ki-moon, e posteriormente divulgada num relatório, de acordo com a resolução da Assembleia Geral da ONU 70/106, o qual será depois debatido pelas Nações Unidas.

Paralelamente, uma plataforma de acção online irá acompanhar a dinamização do envolvimento multi-stakeholder com todos os compromissos atingidos na Cimeira. O grande desafio é inspirar um impulso político e social para acelerar a implementação das medidas que forem traçadas em Istambul, através de acções a desenvolver pelos vários Estados-Membros e por todas as partes interessadas envolvidas, no maior número de iniciativas e projectos relevantes para alcançar a construção de uma agenda efectiva para a humanidade.