É o co-fundador da Access Lab, uma empresa que “trabalha o acesso de pessoas com deficiência e surdas à cultura e ao entretenimento enquanto direito humano fundamental”. Apaixonado desde sempre por esta área e tendo a sorte de, mesmo deslocando-se na sua cadeira de rodas, poder assistir a concertos desde miúdo, a sua paixão pela oferta cultural deu origem a este “laboratório de acesso” que visa ajudar os que geralmente são excluídos da “simples” entrada num espectáculo musical, num teatro ou num jogo de ao futebol. É crítico da falta de rigor nos dados referentes à população com deficiência – questionando de forma veemente o último Censos –, acredita na inclusão através do emprego, sendo por isso grande entusiasta da nova lei que veio estabelecer um sistema de quotas para pessoas com deficiência, e tem esperança que o mundo empresarial acolha esta mais-valia. Não suporta quem quer normalizar a invisibilidade e continuamente tenta desconstruir estereótipos. É o Tiago Fortuna
POR HELENA OLIVEIRA

Quem é o Tiago Fortuna?

Um homem de 29 anos completamente apaixonado por cultura. Desde muito novo que comecei a ir a concertos, tive o privilégio de ter pais permissivos e que me acompanharam nessa paixão. Sempre foi um lugar de felicidade. Julgava que queria ser jornalista mas percebi que queria trabalhar ao lado de quem fazia os espectáculos acontecerem. Estudei Ciências da Comunicação, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da NOVA, e depois trabalhei como assessor de imprensa até 2020. Desloco-me, desde sempre, em cadeira de rodas, e todas estas experiências tiveram essa nuance que me foi inquietando – nunca acomodando. Foi a inquietação que me trouxe até onde estou hoje. 

Que tipo de barreiras mais o afectaram ao longo da sua vida pelo facto de ser uma pessoa com deficiência e que progressos, se é que existem, elege para um país como o nosso, que continua a discriminar amplamente esta população?

Penso que a falta de acessibilidade física e a condescendência foram as duas coisas que mais me afectaram. A falta de acessibilidade física é revoltante, mas foi sendo contornada. A condescendência ferve em lume brando. É preciso frieza, uma grande capacidade de aceitação e superação. A discriminação foi algo que senti em espectáculos. Não percebia porque não podia aceder a esses espaços da mesma forma que os meus amigos – foi aí, na minha paixão, que percebi o quão desigual é a nossa sociedade e quanto existe por fazer. O nosso país tem muita (e boa!) legislação, mas falta-nos fiscalização – vivemos num clima de impunidade. As pessoas com deficiência são invisíveis e enquanto não reconhecermos que existem será difícil avançarmos. É bom ver uma comunidade cada vez mais receptiva, mais pessoas a ingressar no mercado de trabalho e mais empresas a abraçar a questão.

Como e quando nasceu a Access Lab?

A Access Lab nasceu em Abril de 2022. Começou a ser desenhada em Julho de 2021, e estudada, sem saber que destino teria, durante a pandemia, em 2020. 

E qual é o seu principal propósito e objectivos?

É um projecto co-fundado por mim e pela Jwana Godinho para garantir o acesso de pessoas com deficiência e surdas ao entretenimento enquanto direito humano fundamental. Constituímos uma empresa porque acreditamos que as pessoas devem ser encaradas como potência económica e na economia social como futuro da sociedade. Tendo na missão a cultura e entretenimento, acreditamos que esse deve ser o sonho, ou reflexo, de uma sociedade melhor. O espaço onde nos projectamos. Para chegar a ele é preciso ter acesso à educação, ao emprego, à política, à saúde. É por isso que na nossa Academia acabamos por trabalhar a formação de profissionais nestas áreas para que acolham as pessoas com deficiência como cidadãos plenos. 

Num país em que as pessoas com deficiência continuam a ser amplamente discriminadas, particularmente no acesso ao emprego, o que o levou a eleger o acesso à cultura como missão da Access Lab?

A paixão. Querer assistir a um espectáculo com o mesmo grau de equidade que qualquer outra pessoa. Acho que devemos procurar acrescentar algo à sociedade nas áreas que mais nos apaixonam, esta é a minha e da Jwana. 

Que tipo de serviços de consultoria em acessibilidade presta a Access Lab?

Aquilo que mais trabalhamos em consultoria é a jornada do consumidor, por exemplo, num evento: como é feita a comunicação; como é a compra de bilhete; como se chega ao espaço, que transporte usa; como é atendido; terá balcões rebaixados; tem Língua Gestual ou Audiodescrição. Procuramos que esta jornada seja plena e que as pessoas tenham experiências dignas e positivas. É um trabalho exigente mas acreditamos ser o único caminho possível. Esta é a jornada de um espectáculo mas também podia ser a de um colaborador, ora vejamos: como acede ao anúncio de emprego; se a entrevista é ajustada às suas necessidades; como é o processo de contratação; como é o acolhimento dos colegas; como são as condições de trabalho. Fazemos tudo isto procurando sempre desconstruir estereótipos. 

Na prática, como funcionam esses mesmos serviços?

Através da proximidade, do rigor, da conciliação. Procuramos capacitar diariamente equipas, conciliar ideias, não gerar conflitos desnecessários. Compreender que o ser humano é uma construção diária, que existe sempre mais para aprender. Isso faz-se com a proximidade, a disponibilidade para a escuta – e tem de ser de parte a parte conhecendo bem a realidade. É preciso uma dose grande de compaixão.

Que tipo de parcerias foram já efectuadas e com que empresas?

Temos colaboração com a Galp e os seus colaboradores na formação para a diversidade e também na consultoria para a inclusão. Tivemos apoio filantrópico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que nos permitiu, entre outros projectos, viabilizar uma grande transformação da acessibilidade na Altice Arena e servir públicos surdos e com deficiência visual. Também unimos o fado à Língua Gestual Portuguesa pela primeira vez no Santa Casa Alfama. Estamos ainda a trabalhar com a Câmara Municipal de Lisboa e trabalhámos na formação de todos os colaboradores do CCB, entre outros projectos. Deixo o convite para subscrever a nossa newsletter editorial que conta sempre, a cada quinzena, novas histórias sobre a deficiência. 

Existem já alguns bons exemplos de entidades que se preocupam com a acessibilidade e inclusão no que respeita aos eventos culturais e de lazer?

Sim. Além da Altice Arena, Santa Casa Alfama e Câmara Municipal de Lisboa, que acabo de referir, é incontornável o trabalho que tem sido feito pelo Teatro São Luiz, Teatro Nacional D. Maria II, pela Fundação Calouste Gulbenkian, entre outros espaços. Se dermos alguma atenção ao assunto encontraremos muitas ofertas também no âmbito do património e da museologia. 

Quais as principais barreiras a ultrapassar para que as pessoas com deficiência possam ir a um concerto, a um teatro ou a um jogo de futebol, por exemplo?

As barreiras são muitas, mas vou eleger uma: deixar de cobrar bilhete ao acompanhante ou assistente pessoal. Estamos a criar um movimento, mas Portugal tem resistido muito a esta mudança. As pessoas com deficiência precisam de assistência para conseguir participar plenamente (pode ser para chegar ao local; comer; ir à casa de banho; um sem número de situações) e temos vindo a negar esse acesso. As sociedades mais desenvolvidas da Europa têm isto como dado adquirido e não há razão para que não se torne um padrão em Portugal. Felizmente, neste primeiro ano da Access Lab conseguimos que vários eventos se juntassem ao movimento. A Federação Portuguesa de Futebol e os maiores clubes já tinham este tipo de política mas existe um conjunto de festivais que me deixam particularmente feliz por terem aceitado o desafio: Super Bock Super Rock, MEO Sudoeste, MEO Kalorama, Rock in Rio (e mais alguns não querendo alongar-me). 

No que respeita à implementação de soluções que promovam o acesso à cultura de pessoas portadoras de alguma deficiência, quais as principais dificuldades sentidas?

A falta de recursos humanos e financeiros. Precisamos de começar a encarar o investimento na acessibilidade como aquele que fazemos na segurança, é um investimento na integridade do nosso trabalho, de querermos receber bem os nossos clientes (ou os nossos colaboradores). Temos de parar de procurar integrar, precisamos de incluir. Podemos fazê-lo faseadamente, podemos assumir aquilo que não conseguimos fazer já, mas precisamos de começar a agir. Tardamos a agir e estamos a perpetuar processos de exclusão. 

A Access Lab é pioneira nesta área em Portugal?

Existem muitos projectos a trabalhar a área da acessibilidade. Acredito que trazemos uma nova abordagem, muito preparada para o entretenimento, para a cultura organizacional das empresas, que nasce no seio da comunidade e existe para ela. Acredito que somos muito contemporâneos e procuramos manter-nos em contacto com a comunidade para não perdermos o norte. Estamos a assistir a grandes tomadas de decisão por parte da comunidade e é bom ser parte disso. 

Porquê uma start-up e não uma associação?

Porque valorizamos o contributo que as pessoas têm para a economia. Acreditamos que devem pagar bilhete ou qualquer serviço – sempre com equidade. Também porque existem associações a fazer um trabalho muito bom e sentimos que faríamos a diferença enquanto empresa. Mal a constituímos tivemos o primeiro obstáculo: não existem apoios para a criação do próprio emprego para a pessoa com deficiência, só se essa for contratada por outrem. Foi o primeiro paradoxo e dor de crescimento com que nos deparámos. Talvez isso tenha acontecido porque tinha de acontecer, tínhamos de passar por isso e fazer advocacy para que mude e para que no futuro outros empreendedores com deficiência possam ser apoiados na criação do seu emprego e não apenas quem os contrata. 

O Tiago é bastante crítico no que respeita ao Censos de 2021 no que respeita à população com incapacidades. Porquê?

Não consigo aceitar que tenham desaparecido 700 mil pessoas com incapacidade dos Censos de 2011 para os de 2021 (escrevi sobre isso no Expresso). Tal como não consigo aceitar com leviandade que 84,4% da população com incapacidade seja economicamente inactiva. Eu trabalho, desconto, nunca estive de baixa. Quero ser considerado como os meus pares, não quero que normalizem a invisibilidade. E se a inactividade económica é tão grande então pelo menos questionem o porquê e apresentem soluções. Os dados são amorfos, como quase todos os dados que temos sobre deficiência. Não consigo aceitar este panorama. Há uma geração inteira de pessoas com deficiência que está a trabalhar para mudar as suas condições e, sobretudo, as condições de vida de gerações seguintes. Precisamos de ser mais rigorosos e exigentes com as entidades que recolhem dados. 

O “capacitismo” tem vindo a ser bastante debatido nos últimos tempos. Como o define?

O capacitismo é a discriminação em razão de deficiência. Gostava em vez de falar no capacitismo, que precisa de ser discutido, convidar os leitores a ler o artigo 71º da Constituição da República Portuguesa de 1976. Com algumas alterações em nomenclaturas, está lá exactamente aquilo que é a luta contra o capacitismo. Mais tarde, foi instituída a lei 46/2006, que proíbe e pune a discriminação em razão da deficiência. Gostava que, colectivamente, conseguíssemos parar dois minutos, reflectir sobre a nossa democracia e tivéssemos mais respeito por ela. A discriminação, qualquer que seja, é um atentado à integridade humana. Acredito que o único caminho deve ser o da inclusão e da compaixão. 

Lei n.º 4/2019, de 10 de Janeiro, veio estabelecer o sistema de quotas de emprego para pessoas com deficiência, com um grau de incapacidade igual ou superior a 60 %, visando a sua contratação por entidades empregadoras do sector privado, bem como por organismos do sector público, com um período de transição que terminou a 31 de Janeiro. Apesar de terem passado apenas dois meses sobre esta “obrigatoriedade” e de, muito provavelmente não existirem ainda dados, o que perspectiva para a adopção desta lei?

Acho esta medida importantíssima. O trabalho é um passaporte para uma participação mais plena e informada. Acho que o futuro do trabalho é ajudar a população a ser cada vez mais activa. Não creio que o futuro passe por trabalhar das 09h às 17h sem nos preocuparmos com o bem-estar de quem empregamos. Vamos querer que as pessoas se sintam felizes na sua vida. Para isso, vamos precisar de criar culturas organizacionais inclusivas, que respeitem a diversidade e exijam cada vez mais das forças políticas. Não precisamos de esperar pelo exemplo de ninguém: precisamos de atirar-nos de cabeça e fazer as coisas pelas razões certas. Estamos longe de cumprir as quotas legisladas, mas existem várias empresas, e algumas das maiores do país, que já estão a fazer um trabalho importantíssimo na inclusão de pessoas com deficiência. É o primeiro passo. Creio que temos de trabalhar em paralelo pelo estímulo da competitividade e o empoderamento. 

Quais os planos de crescimento da Access Lab a médio prazo?

Queremos continuar a ser um projecto de e para a comunidade, com impactos reais na vida das pessoas. Que transforme a percepção pública da deficiência e seja um contributo para a autonomia das pessoas e autodeterminação. Continuaremos a trabalhar a inclusão no entretenimento a par das culturas organizacionais, as empresas, e o trabalho no seio da economia social, os quais podem ser um dos maiores aliados da emancipação da comunidade.

Crédito foto: © Pedro Ruela Berga e Miguel David

Editora Executiva