O século XXI tem sido marcado por uma atenção crescente às condições de vida, à dignidade e ao respeito por todos os seres humanos, à igualdade de direitos e de deveres, às migrações desencadeadas pela guerra, pela miséria e ausência de futuro, ao combate à pobreza, ao acesso à saúde e à educação, à responsabilidade ética e moral das pessoas, das empresas, das organizações em geral, à luta contra o aquecimento global e a pegada de carbono, à sustentabilidade do estilo de vida dos países mais desenvolvidos e dos desafios colocados pelas economias emergentes, etc.. O mundo está preocupado, as pessoas chamam a atenção. São tempos de mudança na vida social, económica, política e individual, na nossa interioridade
POR FERNANDO ILHARCO

Talvez sempre 1 só tenham existido dois tipos de pessoas: as que cuidam e as que passam ao largo, como se lê na Carta Encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco. A obra ‘A Sociedade do Cuidado – Cuidar do outro, de si e do mundo no século XXI’ é sobre essa diferença, sobre a diferença no mundo entre cuidar e passar ao largo. É sobre o que cada um pode fazer, sobre o que juntos podemos mudar, no trabalho, em família, na vida social, em prol do desenvolvimento de uma sociedade do cuidado, de uma sociedade de encontro, de uma sociedade em paz, genuinamente humana. Sem mais.

O século XXI tem sido marcado por uma atenção crescente das pessoas, dos povos e das organizações em geral às condições de vida da humanidade, à dignidade e ao respeito por todos os seres humanos, à igualdade de direitos, de deveres e de condições, às migrações globais desencadeadas pela guerra, pela miséria e ausência de futuro, ao combate à pobreza, ao acesso à saúde e à educação, ao respeito pelas minorias, à responsabilidade social, ética e moral das pessoas, das empresas, das entidades coletivas em geral, à luta contra o aquecimento global e a pegada de carbono, à sustentabilidade do estilo de vida dos países mais desenvolvidos e dos desafios novos colocados pelas economias emergentes, etc.

O mundo está preocupado, as pessoas chamam a atenção. São tempos de mudança na vida social, económica e produtiva, mas também na vida individual, na nossa interioridade. Quiçá, mais do que tempos de mudança, parece viver-se uma mudança de tempo (Juan Ambrósio in Sociedade do Cuidado).

A Sociedade do Cuidado é uma reflexão multifacetada virada para o cuidado com os outros, com o mundo e consigo mesmo. Trata-se de um projeto concebido em 2019, antes do surgir da pandemia do Covid-19, mas que ganhou uma atualidade reforçada com a mesma, tanto mais que a pandemia não é um fenómeno isolado, mas antes um acentuar da natureza global da humanidade no século XXI. O objetivo deste projeto, ao abordar temas vastos, estruturantes e decisivos para a humanidade, é projetar-se além da pandemia, influenciando o pensamento, as ações e as iniciativas dos homens, das organizações e dos Estados. Trata-se de uma contribuição modesta para criar uma sociedade humana de cuidado, uma sociedade que verdadeiramente seja o tomar conta dos homens e do mundo do século XXI.

Ninguém se salva sozinho’, refere a mensagem do Papa Francisco do Dia Mundial da Paz, a 1 de janeiro do corrente ano. Se a comunicação, o trabalho, a cultura, a pandemia são hoje fenómenos globais, uma sociedade do cuidado também o pode ser.

A ideia de cuidado que procuramos debater, no entanto, não é unívoca. Cada autor e cada tema correspondem a uma declinação de um núcleo central. Este núcleo assenta numa visão cristã do homem, reconhecendo a sua missão como o ser que cuida, que cuida de si e do outro, que cuida do mundo. Esta visão de uma sociedade do cuidado reconhece obrigações, exigentes, que devem ser aprofundadas e que têm de ser colocadas na discussão pública. No mundo complexo de hoje, onde abundam as clivagens, as falsas narrativas e o alheamento, é urgente colocar a questão do outro no centro das nossas ações e decisões.

Cuidar é agir para com o outro. Na fundamentação ontológica da sociedade do cuidado encontra-se a parábola do Bom Samaritano, referida várias vezes na obra. Os únicos critérios de decisão do Bom Samaritano são a condição objetiva da necessidade e a possibilidade objetiva de ir ao seu encontro. É este o comportamento justo. Face a estes critérios, o Bom Samaritano não faz nada de extraordinário, não faz nada que não esteja nas possibilidades de qualquer outro no seu lugar. Faz o que qualquer um de nós deve fazer na mesma situação (José Manuel Pereira de Almeida in A Sociedade do Cuidado). O outro, ali mesmo, sempre à minha frente, define-me, faz-me ser no mundo, faz-me, com ele, mudar o mundo. Trata-se do critério da gratuitidade, o critério do amor pelo outro, o agir sem preconceitos e sem o privilégio de si. Trata-se de um corolário de um dos mais radicais ensinamentos de Jesus, quando Ele nos diz no Sermão da Montanha:

Ouvistes o que foi dito: Amarás ao teu próximo, e odiarás ao teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está nos Céu, pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter? Não fazem já isso os cobradores de impostos? E se saudais somente os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não fazem também os pagãos? Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste (São Mateus, 5 43-48).

O cuidado é, antes de mais e em termos constitutivos, respeito pela liberdade e dignidade do outro. Todos os homens têm a mesma dignidade e são igualmente livres. Cuidar é caminhar juntos, olhando pelos outros e por nós, melhorando o mundo. Não basta querer cuidar, desejar um dado futuro para que este aconteça. É necessário traduzir intenção em comportamentos, em influência, modelação e educação. Se, por um lado, cada ser humano é o mundo inteiro, por outro lado, um pormenor, uma palavra, um gesto, uma ajuda numa situação em que já nada se esperava, podem mudar uma vida. O poder do cuidado é muitas vezes subestimado. Fiodór Dostoiévski (1821-1881), sobre cuidado, ajuda, educação, escreveu:

Ouvimos muita coisa sobre educação, mas a recordação de algo belo e querido, que tenhamos sabido preservar desde a infância é a melhor de todas as educações. Se um homem levar pela vida fora lembranças suficientes desses momentos, ele estará salvo para o resto dos seus dias.2

Cuidar é agir, é verbo, é ir sendo humano, fazendo, mudando, melhorando a vida dos outros. Neste ponto, acentuamos a importância das empresas e dos seus líderes e empresários na sociedade atual, no que respeita à criação de riqueza e à realização profissional das pessoas, à criação de valor e à geração de significado. Margaret Thatcher (1925-2013) comentou que o Bom Samaritano não tinha apenas bom coração; também tinha dinheiro. É decisivo fazer é necessário poder fazer e fazer.

Cuidar é cuidar sempre. O cuidar não se conclui porque cuidar é o modo humano de ser. O mundo flui, tudo está sempre a mudar, e o tipo de pessoa que se é faz-se em cada dia. Ao escolher, o caminho não fica escolhido. Ser humano é estar sempre a escolher. Cuidar, ser humano, é o que fazemos a cada momento das possibilidades, da liberdade, da responsabilidade, do talento que somos. O caminho do cuidado é um caminho de vontade, esforço, perdão e intervenção. É ser todos os dias o que se escolhe.

Hoje é fácil uma pessoa perder-se porque muitos parecem ser os caminhos. A nova cultura videográfica, qual monstro aditivo, mantém as pessoas coladas aos ecrãs dos telemóveis, computadores, televisão, etc. Mas criticar o ambiente digital em si mesmo, sem mais, falha o alvo. As novas tecnologias, tal como as velhas tecnologias, seja a industrial ou a revolução do fogo, tendo lançado novos desafios aos homens, contribuíram para a melhoria das condições da vida humana. O desafio é não confundir tecnologia com melhor qualidade de vida, procurando garantir que os novos desenvolvimentos tecnológicos e científicos estejam ao serviço da vida humana, da dignidade dos homens e do bem-estar das populações.

A obra apresenta cerca de trinta reflexões sobre a sociedade do cuidado, propostas para pensar, e mais importante, para construir, para fazermos todos os dias uma sociedade mais humana. O cuidar do mundo, o homem como o tomar conta do mundo, um tomar conta a um tempo ontológico e prático, imediato e para o futuro, o homem como o ser que repara que reparou, como o ser que cuida do próprio ser face ao abismo do nada é o tema da Parte I – “Cuidar”. A Parte II – “Cuidados” apresenta textos sobre atuações concretas, políticas e programas, problemas, desafios e cuidados específicos, abordando áreas tão diversas como os refugiados e as migrações, os jovens e o desemprego, a atuação das empresas, a longevidade, a igualdade de género e a inclusão digital.

Quando a obra A Sociedade do Cuidado estava prestes a ser fechada, tivemos a bela e honrosa surpresa de o Papa Francisco dedicar a sua mensagem do Dia Mundial da Paz, a 1 de janeiro de 2021, à cultura do cuidado. Foi assim que, com a devida autorização de publicação, nos chegou o texto da emergente Parte III desta obra: ‘A Cultura do Cuidado como Percurso de Paz’, do Papa Francisco. Lê-se no final da mensagem Papal: «empenhemo-nos em cada dia concretamente por formar uma comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros».

NOTA: Este artigo resulta de um resumo da introdução ao livro “ A Sociedade do Cuidado”, coordenado por Fernando Ilharco, obra que apresenta uma reflexão multifacetada sobre o cuidado – o cuidado com os outros, com o mundo e consigo próprio”, contando com a visão de 30 autores de prestígio. A sua pertinência foi reforçada pela pandemia do Covid-19, a qual acentuou a natureza social, global e interconectada da humanidade, e que se entende como estruturante para o futuro da sociedade humana global.

Editado pela Universidade Católica Editora, a obra pode ser adquirida aqui

1 Texto baseado em Ilharco F. ‘Introdução’ Sociedade do Cuidado, 2021 (Ilharco, F., Coord.)

2 In Epílogo, secção III, Dostoiévski, F. (2014) Os Irmãos Karamázov. 3ª e 4ª Partes, Epílogo Volume II. Lisboa: Editorial Presença.

Fernando Ilharco

Professor Associado da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa; Presidente do CEPCEP – Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa