Globalmente, quase mil milhões de crianças são expostas a castigos corporais por parte de familiares ou outros cuidadores. 70 milhões de raparigas já foram vítimas de violência. 95 mil jovens e crianças foram vítimas de homicídio em 2012. Mais de um terço dos jovens entre os 13 e 15 anos, a nível mundial, já viveu pelo menos um episódio de bullying. São os números que ninguém quer ler, mas que somos obrigados a escrever. Porque a violência existe. E persiste
POR MÁRIA POMBO

Todas as crianças têm o direito a viver num ambiente saudável e feliz. Esta é uma das principais ideias presentes na Convenção sobre Direitos das Crianças, sob a qual a UNICEF trabalha há mais de 60 anos, constando igualmente em outros documentos, mas desconhecida de (ou esquecida por) tantas crianças, homens e mulheres de todo o mundo.

Também da autoria da UNICEF é o relatório “Hidden in Plain Sight” (“Escondido à Vista de Todos”, em português) que reúne dados de 190 países sobre violência contra crianças e jovens, com o objectivo de aumentar a visibilidade desta realidade e fornecer pistas para a sua prevenção. Através da análise de padrões, atitudes e normas sociais, conjugadas com os factos (tipos mais frequentes de violência, as suas causas e consequências, mas também relativamente ao número de vítimas e de agressores), o documento (o maior realizado até hoje sobre esta temática) demonstra que é vasto e moroso o trabalho que ainda há para fazer, revelando-se um autêntico apelo à acção.

Os números não deixam margem para dúvidas:

  • Uma em cada 10 raparigas com menos de 20 anos (120 milhões em todo o mundo) já foi sujeita a relações sexuais forçadas, sendo que uma em cada três jovens casadas com idades entre os 15 e os 19 anos já foi vítima de violência emocional, física ou sexual por parte do parceiro;
  • Em 2012, um quinto das vítimas de homicídio (equivalente a 95 mil) tem menos de 20 anos, sendo esta a principal causa de morte na adolescência em países como a Venezuela, o Panamá, El Salvador, o Brasil ou a Colômbia;
  • Mais de um em cada três estudantes entre os 13 e os 15 anos já foi vítima de bullying e, em países como a Letónia ou a Roménia, cerca de seis em cada 10 adolescentes admitem já ter sido autores de bulliyng;
  • Em 58 países, os castigos físicos severos (como bater na cabeça ou na cara, ou espancar repetidamente) são aplicados a 17% das crianças, aumentando para 40% em países como o Chade, o Egipto ou o Iémen em crianças entre os dois e os 14 anos.

Algo parece estar muito errado quando, aos dados apresentados, acrescentarmos que, a nível mundial, três em cada 10 adultos acreditam que o castigo físico é uma componente necessária à educação de uma criança, opinião que é partilhada por 82% dos inquiridos da Swazilândia, na África Austral. Tão ou mais grave é também o facto de, em termos globais, cerca de metade (44%, o que equivale a 126 milhões) das raparigas inquiridas com idades entre os 15 e os 19 anos considerar justificável ou justificada a violência dos maridos sobre as mulheres, caso estas discutam, saiam de casa sem avisar, negligenciem a educação dos filhos, recusem ter relações sexuais ou deixem queimar a comida (no Afeganistão, na Guiné e em Timor-Leste, este valor chega a ultrapassar os 80%).

Surpreendente ainda é a percentagem de raparigas, superior aos dos rapazes, que, em 28 dos 60 países analisados, consideram justificado este comportamento, a qual chega a duplicar em nações como o Camboja, a Mongólia ou o Senegal (registando este último valores na ordem dos 60% de raparigas contra 30% de rapazes).

Independentemente da condição económica e social, da religião ou da etnia, a violência é uma constante na vida de inúmeras crianças, a nível mundial, tendo consequências devastadoras, nomeadamente em termos de desempenho escolar fraco, baixa autoestima e depressão, originando ainda a repetição do padrão de violência ou abuso na adolescência e idade adulta. Os números sobre a atitude dos inquiridos perante a violência são reveladores do poder que têm a tradição, a cultura e as normas sociais, as quais ditam muitas vezes os comportamentos que devem ou não ser aceites pelos elementos de determinada comunidade.

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Comportamentos agressivos sem fronteiras geográficas

Os quase 95 mil jovens com menos de 20 anos e crianças que morreram às mãos de outrem, em 2012, colocam o homicídio no topo das causas de morte infanto-juvenil, a nível mundial. Com mais de 25 mil vítimas, a América Latina e as Caraíbas são as zonas onde se registam as mais elevadas taxas de homicídio, seguindo-se a África Ocidental e Central (com mais de 23 mil) e por fim a África Oriental e Austral (que regista cerca de 15 mil). Cuba, Peru e Suriname são as nações onde o índice de homicídio sobre menores de 20 anos é mais baixo.

Um dado “curioso” é o facto de, até perfazerem os 10 anos, não se registarem diferenças consideráveis entre sexos no que a este indicador diz respeito; no entanto, à medida que a idade avança, são os rapazes as principais vítimas de lesões intencionais e homicídio (cerca de 70% são rapazes e 30% são raparigas), sendo a faixa etária entre os 15 e os 19 anos aquela que maior fatia de vítimas abarca, atingindo cerca de 54 mil jovens (mais de metade do total).

Também denominada como “disciplina violenta”, a agressão física é a principal causa de homicídio infantil, sendo chocante o número de crianças que anualmente são sujeitas a actos desta natureza (como castigos corporais, tortura ou agressão), regra geral nas suas próprias casas e desde tenra idade. Entre os dois e os 14 anos, quase mil milhões de crianças (seis em cada 10) são expostas a castigos corporais e agressão por parte de familiares ou outros cuidadores, em todo o mundo. Os castigos severos são uma prática comum que afecta 17% das crianças em 58 países, atingindo mais de uma em cada cinco, em 23 nações.

A agressão física e psicológica manifesta-se igualmente entre pares, especialmente entre estudantes e na adolescência. Em todo o mundo, mais de um terço dos jovens com 13 a 15 anos já viveu um episódio de bullying, com taxas que variam entre os 7% (no Tadjiquistão) e os 74% nas ilhas de Samoa. Relativamente aos adolescentes que sofrem ataques com frequência, a percentagem varia entre os 20% (na Macedónia e no Uruguai) e os 50% (em países como o Iémen, o Gana ou o Egipto). O retrato não apresenta diferenças consideráveis nos países desenvolvidos ou ocidentais: um terço dos jovens da Europa e da América do Norte revela comportamentos agressivos para com os seus pares (numa percentagem que varia entre os 14%, na República Checa e na Suécia, e os 59% na Letónia e na Roménia).

A nível mundial, são cerca de 70 milhões (perto de um quarto do total) as raparigas com idades entre os 15 e os 19 anos que afirmam já ter sido vítimas de violência, não sendo este valor muito diferente, nos rapazes (embora, sobre estes, os dados disponíveis sejam bastante limitados). África é o continente onde existem as mais elevadas taxas de agressão entre pares, com os familiares, amigos e professores no topo dos principais agressores.

Entre as raparigas que já estão ou estiveram casadas, os principais agressores são os próprios maridos ou ex-maridos: os cerca de 70% das adolescentes indianas, moçambicanas ou paquistanesas (entre outras nacionalidades) que denunciam esta realidade são relevadores da expressão da violência sobre mulheres em contexto matrimonial. A África Subsaariana, o Sul da Ásia, a América Latina e as Caraíbas são as regiões onde esta prática é mais comum.

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Velhos e novos abusos

O abuso sexual é outro tipo de violência que afecta um elevado número de menores de 20 anos, em todo o mundo. São cerca de 120 milhões (mais de um décimo, em termos globais) as raparigas que já foram forçadas a qualquer tipo de prática sexual, sendo a África Subsaariana a região onde se verifica a maior prevalência deste comportamento. Por outro lado, os países da Europa Central e de Leste e as antigas repúblicas soviéticas com (poucos) dados disponíveis revelam menos de 1% de denúncias a este nível, por parte de raparigas adolescentes.

Em 18 dos 21 países que divulgaram informação sobre esta temática, o primeiro abuso ocorreu entre os 15 e os 19 anos, mas é igualmente expressivo o número de abusos que ocorrem em idades mais jovens. A este respeito, os autores do documento em causa alertam para a “permeabilidade” destes números, considerando a falta de dados existentes, mas também o facto de muitas das vítimas não conseguirem ter memória da primeira vez em que o acto ocorreu. Dos 40 países com dados comparáveis, 35 registaram casos de abuso sexual a raparigas adolescentes.

Em oito desses países, cerca de 20% das raparigas inquiridas, em 2014, revelaram já ter sido vítimas desse tipo de abuso, pelo menos uma vez, sendo os Camarões e a República Democrática do Congo as nações onde se registaram o maior número de vítimas. Por medo da denúncia ou por falta de dados disponíveis, os registos de actos sexuais forçados no ano de 2014 rondam, no máximo, os 10%, continuando a ser os três países acima referidos aqueles onde os mesmos acontecem (ou são denunciados) mais frequentemente. Tal como nos restantes tipos de violência, os autores mais comuns dos abusos a raparigas são os actuais ou anteriores maridos ou namorados.

No entanto, apesar de em menor escala ou com menor número de denúncias, os abusos sexuais também têm expressão no universo masculino, com Moçambique, por exemplo, a registar 3% de abusos a rapazes contra 9% a raparigas. Tal como acontece com o universo feminino, é entre os 15 e os 19 anos que esta prática é mais frequente, sendo os parceiros ou antigos parceiros os principais autores.

Importa ainda referir que o abuso sexual (tal como os restantes tipos de violência) não ocorre apenas em países com baixos rendimentos. Um inquérito de 2009 revelou que, na Suíça, cerca de 22% das raparigas e 8% dos rapazes entre os 15 e 17 anos foram vítimas de abusos com contacto físico, tendo sido denunciado o abuso “sem contacto físico” por 40% das raparigas e 20% dos rapazes. Situações idênticas acontecem, contudo, em diversas outras nações, de que são exemplo a Alemanha, Itália ou os Estados Unidos da América.

A este respeito, os autores do documento alertam para um tipo particular e mais recente de abuso, que está a ganhar expressão um pouco por toda a parte, mas especialmente nos países mais desenvolvido: o abuso sexual no espaço virtual. O mesmo pode adquirir variadas formas e graus de severidade. Um dos grandes perigos do mundo digital é o facto de os agressores poderem facilmente forjar inúmeras identidades, mas também a velocidade a que as informações (e imagens) pessoais se difundem, perdendo-se facilmente o controlo sobre as mesmas.

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Violência: escondida, aceite ou ignorada?

Apesar da existência de todos estes dados, a análise revela que a maioria das vítimas mantém a situação em silêncio e não a denuncia nem procura ajuda. Metade das raparigas que declararam, num inquérito anónimo, ter sofrido abusos sexuais ou físicos revelaram nunca o ter contado a ninguém. Adicionalmente, também cerca de 50% das entrevistadas (126 milhões) revelam que a agressão dos maridos às suas mulheres pode ser justificada (“negligenciar os filhos” é o motivo mais frequente), sendo vários os países em que essa percentagem é superior à dos rapazes.

A agressão física (ou disciplina violenta) é aquela em que se regista uma maior uniformidade de opiniões, com a maioria dos adultos a declarar que a mesma é necessária à educação das crianças. Este tipo de violência é, inclusivamente, mais bem aceite e encarado como normal (e benéfico) do que a agressão entre adultos.

As conclusões desta análise indicam que é elevado o número de crianças que não recebe uma protecção adequada contra a violência (a qual é ainda encarada por muitos inquiridos como um problema individual). O documento revela que, em todo o mundo, existem apenas 39 países que disponibilizam serviços de protecção legal contra todas as formas de violência, incluindo castigos corporais em ambiente familiar.

Entre diversas acções possíveis, a UNICEF apresentou um conjunto de estratégias que pode auxiliar os Estados e a sociedade em geral a prevenir e a reduzir a violência sobre crianças e jovens. Ajudar os familiares e cuidadores a adquirir ferramentas que lhes permitam reconhecer comportamentos de risco e prevenir a violência sobre as crianças que têm ao seu cuidado é o primeiro passo, o qual está intimamente ligado ao segundo, a partir do qual são as próprias crianças que aprendem a proteger-se dos agressores.

Mudar mentalidades para que certos comportamentos violentos (que são socialmente aceites) sejam denunciados e prevenidos é outra das estratégias propostas, as quais terão muito mais impacto se forem reforçados os sistemas judiciários e penais, assim como os serviços sociais (os quais ocupam os quarto e quinto lugares no grupo das possíveis soluções para o fim da violência). Finalmente, e em jeito de apelo à acção, o documento reforça a importância de haver informação disponível, sendo necessário proceder-se à criação de estatísticas e estudos com dados actualizados sobre esta temática, para que possam ser tomadas medidas mais eficazes.

Como refere Anthony Lake, director executivo da UNICEF, “a violência contra as crianças não é inevitável”.

Jornalista