“Somos a primeira geração que tem uma visão clara do valor da natureza e do enorme impacto que temos sobre ela. E podemos também ser a última que pode agir para inverter esta tendência”. É com esta frontalidade que a WWF alerta, no seu relatório “Planeta Vivo 2018”, para a necessidade de reduzir o consumo a nível global com vista a minorar o impacto negativo sem precedentes da humanidade sobre o planeta. Destacando que se está a fechar a janela de oportunidade para a acção
POR GABRIELA COSTA

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“Somos a primeira geração que tem uma visão clara do valor da natureza e do enorme impacto que temos sobre ela. E podemos também ser a última que pode agir para inverter esta tendência”. É com esta frontalidade que a organização mundial de conservação da natureza WWF alerta, no seu divulgado a 30 de Outubro, para a necessidade de reduzir o consumo a nível global com vista a minorar o impacto negativo sem precedentes da humanidade sobre o planeta, destacando que se está a fechar a janela de oportunidade para a acção.

O relatório “Living Planet Report 2018: Aiming Higher”, que se realiza bienalmente há vinte anos, revela “um quadro perturbador”, traçando uma vez mais um cenário alarmante em termos ambientais: “a actividade humana está a empurrar os ecossistemas que sustentam a vida na Terra a um limite”. E o resultado é que em 2014 (ano de referência destes dados), para responder à pegada ecológica mundial – que é medida em hectares globais (gha) por pessoa, isto é, a área que cada um precisa para produzir o que consome e absorver o lixo que produz -, já eram necessários 1,7 (1,69) planetas.

O relatório Planeta Vivo utiliza o Índice do Planeta Vivo (IPL), fornecido pela Zoological Society of London (ZSL), os Índices de Habitats da Espécie (IHE), o Índice da Lista Vermelha da IUCN (RLI) e o Índice de Intensidade da Biodiversidade (BII), bem como fronteiras planetárias e a pegada ecológica (calculada pela Global Footprint Network). O IPL, que acompanha as tendências da abundância global de vida selvagem, indica que as populações globais de peixes, aves, mamíferos, anfíbios e répteis diminuíram em média 60%, entre 1970 e 2014.

A investigação conclui que “somos a primeira geração que tem uma visão clara do valor da natureza e do enorme impacto que temos sobre ela. E podemos também ser a última que pode agir para inverter esta tendência”. Alertando que, face ao impacto negativo “sem precedentes” da humanidade sobre o planeta, “se está a fechar a janela de oportunidade para a acção”.

As principais ameaças às espécies estão directamente ligadas às actividades humanas, incluindo a perda e degradação de habitats e a sobreexploração da vida selvagem. Dos rios e florestas a zonas costeiras e montanhas, o documento torna evidente que a vida selvagem diminuiu drasticamente desde os anos 70. Os maiores impulsionadores da perda de biodiversidade são a exploração pecuária e a agricultura, devido ao aumento do consumo.

[quote_center]As populações globais de peixes, aves, mamíferos, anfíbios e répteis diminuíram em média 60%, entre 1970 e 2014[/quote_center]

Como destaca Marco Lambertini, director geral da WWF Internacional, “a dura realidade” é que as nossas florestas, oceanos e rios estão em risco. “Isto é um indicador do tremendo impacto que estamos a exercer sobre o planeta, minando o tecido vivo que nos sustenta a todos: natureza e biodiversidade”.

Defendendo que a pressão da humanidade está a corroer a capacidade da natureza de apoiar a vida humana, o relatório Planeta Vivo 2018 dá ênfase à importância e valor da mesma para a saúde e o bem-estar das pessoas, sociedades e economias. Globalmente, a natureza fornece serviços no valor de 125 triliões de dólares por ano, para além de ajudar a garantir o fornecimento de ar fresco, água potável, alimentos, energia, medicamentos e outros produtos e materiais.

Na edição de 2018 o relatório analisa em concreto a importância dos polinizadores, que são responsáveis ​​por 235 a 577 mil milhões de dólares em produção agrícola por ano. A WWF explica, contudo, que “um clima em mudança, práticas agrícolas intensivas, espécies invasoras e doenças emergentes têm impactado a sua abundância, diversidade e saúde”.

Considerada a referência global sobre o estado do planeta, biodiversidade e vida selvagem, a publicação da WWF reúne dados de todos os continentes e toma o pulso à população de espécies e à biodiversidade global. Medindo o impacto da actividade humana sobre a Terra, representa a mais importante análise baseada na ciência sobre a saúde da mesma. O relatório “Planeta Vivo 2018” é a décima segunda edição da principal publicação da WWF, e inclui as descobertas mais recentes medidas pelo Índice do Planeta Vivo, que acompanham 16704 populações de 4005 espécies de vertebrados, entre 1970 e 2014.

Palácio Nacional da Pena, Sintra – © DR

Boom turístico em Portugal agravará pegada

São precisos mais de dois planetas para manter o estilo de vida dos portugueses. Ainda que a crise económica tenha contribuído para reduzir a pegada ecológica nacional, os portugueses continuam a consumir mais recursos do que os que a natureza tem para oferecer.

Em rigor, e reportando-nos a 2014, ano sobre o qual incide a investigação que serviu de base à elaboração do relatório “Living Planet” da WWF, os portugueses precisavam de 2,19 planetas para consumirem os recursos que consumiam, ainda que, possivelmente em consequência da crise económica que atingiu Portugal nestes anos, a sua pegada ecológica tenha diminuído, acompanhando o recuo do consumo e da actividade económica nacional.

Contas feitas, o relatório posiciona o nosso País no 66º lugar a nível mundial, no que concerne a pegada ecológica per capita (passando de uma pegada de 3,9 gha por pessoa em 2016, que o colocava na 59ª posição a nível mundial, para 3,69 em 2018), o que representa uma melhoria significativa de sete posições face à edição anterior e comprova o impacto real que a crise da dívida nacional associada à conjuntura mundial, que obrigou ao programa de reajustamento da troika, teve no consumo dos portugueses.

Paralelamente, o relatório demonstra que a pegada ecológica dos portugueses foi sempre muito elevada comparativamente à biocapacidade do País (isto é, à sua capacidade de continuar a produzir os recursos naturais que consome e de absorver os resíduos gerados pelas pessoas), a qual se tem mantido constante desde 1961, alheia à pressão que os padrões de consumo impõem ao planeta desde os anos 90. Estacapacidade de regeneração dos ecossistemas está longe de ser acompanhada por um consumo sustentável, em geral, e em particular, no que diz respeito ao nosso País: em 2014 a biocapacidade em Portugal era de 1,27 gha por pessoa.

O carbono, que representa 57% da pegada ecológica dos portugueses, e que em 2004 correspondia a 63% do valor total, foi a componente que mais decresceu, em resultado não só da diminuição do consumo, mas também da alteração das fontes de produção de energia nacional, graças à aposta nas energias renováveis. Comparativamente a esse mesmo ano, anterior à crise financeira, observa-se que quase todos os componentes apresentam uma quebra, com excepção – ainda que pouco significativa – das zonas de construção e das pastagens.

[quote_center]São precisos mais de dois planetas para manter o estilo de vida dos portugueses[/quote_center]

Considerando o boom do turismo e a recuperação do poder de compra que se registam em Portugal nos últimos anos, é de esperar que o próximo balanço sobre a pegada ecológica não reflicta a mesma tendência de diminuição.

O Qatar ocupa o primeiro lugar no ranking da pegada ecológica, enquanto país com pior desempenho ambiental, e países como a Alemanha, Austrália, Bélgica, Canadá, Espanha, os EUA, França, Itália, Países Baixos, Reino Unido e Suíça têm pegadas superiores a Portugal. O nosso País está, de resto, abaixo da média europeia, que é de 4,69 gha por pessoa segundo a edição de 2018 deste estudo, mas acima da mundial, que é de 2,84 gha por pessoa.

Ângela Morgado, directora executiva da Associação Natureza Portugal, que trabalha em associação com a WWF, confirma que “a ligeira descida da pegada ecológica dos portugueses foi reflexo da crise económica, que criou uma oportunidade para termos comportamentos mais amigos do ambiente”. E adianta que “agora é necessário continuar com um estilo de vida que tem menor impacto no planeta fora de situações de crise”. Na sua opinião, os portugueses têm de optar por um consumo mais sustentável, sob pena de se verem afectados não por uma crise económica, mas por uma crise ecológica sem precedentes que põe em risco a sua vida e a dos seus filhos e netos. “Está na altura de mudar. Já não podemos adiar”, apela.

Número de planetas necessários em Portugal, na Europa e no mundo em função da pegada ecológica

Um novo acordo global para a natureza

A nível mundial, as estatísticas são assustadoras”, alerta Ângela Morgado. Estas palavras já não fazem eco, mas a realidade, pura e dura, é que “a situação é verdadeiramente má” e, se “dizemos isso há um tempo”, o mais grave é que “não deixa de piorar”, reitera Marco Lambertini.

Como recorda a WWF no “Planeta Vivo 2018”, a natureza “tem sustentado e alimentado silenciosamente as nossas sociedades e economias há séculos, e continua a fazê-lo hoje”. Em troca, o mundo continua a considerá-la, e aos seus serviços, “como algo natural, deixando de agir contra a perda acelerada” de recursos.

É, pois, hora “de percebermos que um futuro saudável e sustentável para todos só é possível num planeta onde a natureza prospera e florestas, oceanos e rios estão cheios de biodiversidade e vida. Precisamos repensar com urgência como usamos e valorizamos a natureza – culturalmente, economicamente e nas nossas agendas políticas. Precisamos pensar na natureza como bela e inspiradora, mas também como indispensável. Nós – e o planeta – precisamos de um novo acordo global agora”, apela o director da organização internacional.

Porém, “coexistir de forma sustentável com a natureza da qual dependemos” requer “a acção de todos”, acrescenta a directora da Associação Natureza Portugal. Por isso mesmo, o Relatório “Planeta Vivo 2018” destaca a oportunidade que a comunidade global tem de proteger e restaurar a natureza até 2020, um ano crítico em que os líderes devem rever o progresso alcançado pelos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, no Acordo de Paris e na Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB).

Elefante africano, Masai-Mara Game Reserve, Quénia – © naturepl.com / Denis-Huot / WWF

Na perspectiva de Lambertini, “a acção deve mudar de escala: colocou-se muita atenção no clima. Mas esquecemos outros ‘sistemas’ (florestas, oceanos, etc.), interconectados com o clima muito importantes para a conservação da vida na Terra”.

A única boa notícia, sustenta, “é que sabemos exactamente o que está a acontecer” e isso deverá servir para ajudar a fornecer “a resposta adequada”. Desde já. Lambertini concretiza esta ideia: “para o clima, foi preciso ver como se intensificavam os acontecimentos extremos antes de assinar o Acordo de Paris”. Sucede que “a natureza é um pouco menos clara na relação causa-efeito: não sentiremos a desflorestação nem a extinção de espécies na pele, como sentimos o calor ou o vento”.

O consumo desenfreado que se produziu nos últimos 50 anos a todos os níveis – energia, água, madeira, peixes, alimentos, fertilizantes, pesticidas, minerais -, e a que os cientistas chamam de ‘a grande aceleração’, não é, evidentemente sustentável.  Alguns ‘sistemas’ absorvem esses impactos há décadas, mas “chegámos a patamares críticos”.

O consumo de energia – e a maneira como a produzimos – é um factor fundamental, a par do consumo de alimentos: 40% dos solos foram convertidos para fins de produção alimentar, 70% dos recursos de água servem para a mesma, e mais de 30% dos gases com efeito de estufa são por ela gerados. A soja, o óleo de palma e o gado bovino causam 80% da desflorestação do planeta na actualidade.

[quote_center]Globalmente, a natureza fornece serviços no valor de 125 triliões de dólares por ano[/quote_center]

Os esforços para reduzir estas estatísticas estão a dar os seus frutos, tanto a nível de protecção das espécies como dos seus ecossistemas. Mas o enfoque deve mudar, defende a WWF, tendo em conta que nos encontramos frente a uma aceleração dos impactos sem precedentes. Os relatórios dos especialistas da ONU sobre o clima concluem que é preciso chegar a uma neutralidade de carbono em 2050 [e não emitir mais gases com efeito estufa do que podemos absorver]. Isso significa parar a desflorestaçãoe acabar com a perda de biodiversidade, explica Marco Lambertini.

O que nos leva ao ‘acordo pela natureza’. “como em Paris, pelo clima, devemos mostrar os riscos para nós, humanos, de perder a natureza”. Nos próximos doze meses, ONGs, investigadores, empresas e governos devem definir uma meta clara e directa, equivalente ao objectivo de 1,5º C/2º C do clima, reitera o director da WWF. Defendendo que “falta uma revolução cultural que valorize verdadeiramente a natureza”, ou seja, que lhe conceda, literalmente, um valor”, Lambertini reconhece, contudo, que “isso é o mais difícil”.

Mas não impossível. A WWF está a apelar aos cidadãos, empresas e governos para que se mobilizem de modo a estabelecerem um acordo abrangente para a natureza e para as pessoas no âmbito da CDB. Este acordo galvaniza acções públicas e privadas para proteger e restaurar a biodiversidade e a natureza global e reverter a curva das tendências devastadoras destacadas no relatório “Planeta Vivo”.