Já considerada como a epidemia do século XXI, o número de pessoas que se sente só não pára de aumentar. O mesmo acontece com o declínio crescente das interacções sociais, com consequências gravosas para a saúde física e mental, e também para a longevidade. Está mais do que na altura de se investir em formas que permitam diminuir este flagelo que paira sobre a espécie humana
POR HELENA OLIVEIRA

Os cientistas sociais definem “solidão” como um estado emocional criado quando as pessoas têm menos contactos sociais e relações com significado do que o que desejariam, apesar do conceito não gerar consenso entre todos os que o investigam. Por exemplo, os termos “isolamento social” e “solidão” são utilizados muitas vezes como sinónimos, mas tecnicamente referem-se a estados de espírito diferentes, sendo definidos, e no primeiro caso, também como um contacto escasso com os outros e no segundo com a percepção de nos sentirmos desligados e sem um sentimento de pertença.

São múltiplos os estudos que concluem que a ausência de relações sociais coloca um risco significativo para a saúde individual e para a longevidade. De acordo com o Surgeon General, que publicou um relatório recente intitulado “Our Epidemic of Loneliness and Isolation 2023”, a solidão e o isolamento social aumentam o risco de morte prematura em 26% e 29% respectivamente. De uma perspectiva mais alargada, o risco de morte prematura derivado da ausência de conexões sociais é equivalente a fumar 15 cigarros por dia, mais ainda do que a obesidade ou a falta de exercício físico. Complementarmente, relações sociais pobres ou insuficientes estão associadas a uma maior propensão para doenças cardíacas (29%) e de acidentes vasculares cerebrais (32%). Para além disso, está igualmente ligada a um risco crescente de ansiedade, depressão e demência, tornando igualmente as pessoas mais susceptíveis a vírus e a doenças respiratórias. E as consequências prejudiciais de uma sociedade onde as relações sociais não abundam podem ser sentidas nas escolas, locais de trabalho e organizações cívicas, nas quais a performance, a produtividade e o envolvimento são diminutos.

O Surgeon General – o Corpo de Comissários do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos e, por conseguinte, o principal porta-voz em questões desta natureza – alerta veementemente para a necessidade e obrigação de se investir em estratégias que visem atender e dar apoio a quem sofre destas condições, as quais sejam tão fortes quanto ao investimento feito para alertar para as questões relativas com a obesidade, o acto de fumar e às crises de adição com o objectivo de intervir naquela  que é considerada “a epidemia do século XXI”, ou seja, a solidão.

Isolamento social e solidão estão relacionados, mas não são a mesma coisa

O isolamento social consiste objectivamente em ter poucas relações e papéis sociais, ausência de pertença a grupos e interacções sociais pouco frequentes. Por outro lado, a solidão é um estado interno subjectivo. É a experiência angustiante que resulta da percepção de isolamento ou de uma necessidade não satisfeita entre a experiência desejada e a experiência real de um indivíduo.

A ligação social é uma necessidade humana fundamental, tão essencial para a sobrevivência como a comida, a água e o abrigo. Ao longo da história, a nossa capacidade de confiar uns nos outros sempre foi crucial para a nossa sobrevivência. Actualmente, mesmo nos tempos modernos, os seres humanos estão biologicamente preparados para serem uma espécie social. Ou seja, o cérebro adaptou-se para viver na proximidade dos outros, com os nossos antepassados longínquos a dependerem entre si  para os ajudar a satisfazer as suas necessidades básicas. 

Viver em isolamento, ou fora do grupo, significa ter de satisfazer as muitas exigências difíceis da sobrevivência por conta própria. Apesar dos avanços actuais que nos permitem viver sem nos envolvermos com os outros (por exemplo, as encomendas online que passamos a receber sem sair de casa, a automação ou o entretenimento remoto), a necessidade biológica de nos relacionarmos permanece.

O nível de ligação social de um indivíduo não é simplesmente determinado pelo número de relações próximas que tem. Há muitas maneiras de nos ligarmos socialmente, o mesmo acontecendo no que respeita à ausência ou insuficiência destas mesmas interacções. 

No geral e como explica o relatório, existem três componentes vitais da ligação social: estrutura, função e qualidade. A estrutura implica o número de relações, a sua variedade de (por exemplo, colegas de trabalho, amigos, família, vizinhos) e a frequência das interacções com os outros; a função está relacionada com o grau mediante o qual se pode contar com os outros para as várias necessidade e, por fim, a qualidade assenta no grau em que as relações e interacções com os outros são positivas, úteis ou satisfatórias (versus negativas, inúteis e insatisfatórias). De sublinhar que estes três componentes são vitais, podendo influenciar a saúde mediante variadas formas. 

É igualmente importante compreender outras características que definem a conexão social. Em primeiro lugar, são um continuum. Geralmente, os indicadores das interacções sociais ou da desconexão social são considerados como uma dicotomia. Toda a gente tem lugar neste continuum, com as relações que são consideradas pobres associadas a uma performance árida e as que são ricas a resultados mais enriquecedores.

Em segundo lugar, a ligação social é dinâmica. A quantidade e a qualidade da interacção social nas nossas vidas não são estáticas. A ligação social muda ao longo do tempo e pode ser melhorada ou comprometida por uma miríade de razões. Doenças, mudanças de casa, transições de emprego e inúmeros outros acontecimentos da vida no geral, bem como mudanças na comunidade e na sociedade, podem ter um impacto na ligação social num sentido ou noutro. 

Além disso, o tempo que permanecemos num dos extremos do continuum pode ser importante. Sentimentos transitórios de solidão podem ser menos problemáticos, ou mesmo adaptativos, porque o sentimento de angústia motiva-nos a uma reconexão social. Do mesmo modo, experiências temporárias de solidão podem ajudar-nos a gerir as exigências sociais. No entanto, a solidão crónica (mesmo que alguém não esteja isolado) e o isolamento (mesmo que alguém não se sinta só) representam um problema de saúde significativo.

Consideremos dois exemplos: primeiro, um indivíduo que faz parte de uma família grande e muito unida e, em segundo lugar, um indivíduo que tem contacto regular com colegas de trabalho, mas tem pouco tempo para relações pessoais fora do ambiente laboral. Em cada caso, essa pessoa não está objectivamente isolada e pode não se sentir subjectivamente solitária. No entanto, em ambos os casos, as principais avaliações de isolamento e solidão podem não indicar se estão a colher os benefícios da ligação social de outras formas, como o facto de se sentirem adequadamente apoiados ou de terem relações próximas e de elevada qualidade.

As mudanças nos indicadores-chave, incluindo a participação social individual, a demografia, o envolvimento comunitário e utilização da tecnologia ao longo do tempo, sugerem um declínio global da ligação social. Adicionalmente, o desgaste do tecido social também pode ser visto de forma mais ampla na sociedade, na medida em que a confiança entre as pessoas e nas principais instituições se encontram em níveis historicamente baixos.

Declínio dos relacionamentos sociais é um fenómeno global

O número de amizades íntimas também diminuiu ao longo das últimas décadas. Entre as pessoas que não relatam solidão ou isolamento social, quase 90% têm três ou mais confidentes. No entanto, quase metade dos americanos (49%) em 2021 referiu ter três ou menos amigos íntimos – com apenas cerca de um quarto (27%) a referir o mesmo num estudo realizado em 1990. Como sabemos também, as ligações sociais diminuíram de forma expressiva durante a pandemia de Covid-19.  

No que respeita às tendências demográficas, incluindo as alterações que delas são provenientes, como a idade, o estado das relações amorosas, bem como a dimensão dos agregados familiares, servem para melhor compreender o panorama nesta área, em particular no que respeita ao declínio dos casamentos e relações análogas, à dimensão das famílias que tem vindo a decair persistentemente ao longo das últimas décadas, ao mesmo tempo que o número de pessoas que vivem sozinhas não pára de crescer.

As razões pelas quais as pessoas optam por permanecer solteiras ou sem uma relação estável com um parceiro, por terem famílias mais pequenas e viverem sozinhas ao longo do tempo são complexas e englobam muitos factores. Mas, ao mesmo tempo, é importante reconhecer a contribuição que estas alterações demográficas têm na desconexão social devido aos impactos significativos na saúde já identificados nas provas científicas. Além disso, a consciencialização pode ajudar os indivíduos a considerarem adequadamente estes impactos e cultivar formas de promover uma ligação social suficiente fora dos meios e estruturas convencionais. 

Uma grande variedade de factores pode influenciar o nível de ligação social de um indivíduo a uma comunidade. De acordo com o estudo, existe uma ferramenta que nos ajuda a compreender melhor estes factores e que é denominada como modelo socioecológico. Este modelo organiza os factores inter-relacionados que afectam a saúde a nível individual, nas nossas relações, nas nossas comunidades e na sociedade. Cada um destes níveis – desde o mais pequeno ao mais alargado – contribui para a conexão social, para os riscos associados e para a protecção da saúde.

A ligação social é mais frequentemente vista como sendo impulsionada pelo indivíduo – a sua genética, saúde, estatuto socioeconómico, raça, sexo, idade, situação de vida do agregado familiar e personalidade, entre outros factores, que podem influenciar a motivação, a capacidade ou o acesso para o relacionalmente social. Como já vimos, o nível de ligação de uma pessoa também depende da estrutura, função e qualidade das relações. No entanto, a ligação é influenciada por mais do que simples factores pessoais ou interpessoais. Também é moldada pela infra-estrutura social da comunidade em que se nasce, cresce, aprende, brinca, trabalha e envelhece.

Por seu turno, a infra-estrutura social inclui os bens físicos de uma comunidade (como bibliotecas e parques), programas (como organizações de voluntários e associações de membros de ordem variada) e políticas locais (como transportes públicos e habitação) que apoiam o desenvolvimento das conexões sociais. 

A infra-estrutura social dessas comunidades é, por sua vez, influenciada por políticas mais amplas como políticas sociais, normas culturais, ambiente tecnológico, ambiente político e factores macroeconómicos. Além disso, os indivíduos são simultaneamente influenciados por condições a nível social, como a cooperação, a discriminação, a desigualdade e a ligação ou desconexão social colectiva da comunidade

Todos estes factores determinam a disponibilidade de oportunidades para ligações sociais saudáveis (ou não).

Quem corre mais risco de isolamento social?

Qualquer pessoa de qualquer idade ou origem pode sentir solidão e isolamento, mas alguns grupos estão em maior risco do que outros. Nem todos os indivíduos ou grupos experimentam os mesmos factores que facilitam ou se tornam barreiras para a conexão social. Algumas pessoas ou grupos estão expostos a maiores barreiras. E é fundamental examinar e destacar o risco desproporcional que enfrentam e direccionar intervenções para atender às suas necessidades.

Embora o risco possa diferir consoante os indicadores de desconexão social, estudos actuais revelam que a prevalência da solidão e do isolamento é mais elevada entre as pessoas com saúde física ou mental deficiente, insegurança financeira, pessoas que vivem sozinhas, famílias monoparentais, bem como populações mais jovens e mais velhas. Por exemplo, enquanto as taxas mais elevadas de isolamento social se registam entre os adultos mais velhos, os jovens adultos têm quase o dobro de probabilidades de se sentirem mais sós do que as pessoas com mais de 65 anos. A taxa de solidão entre os jovens adultos tem vindo a aumentar desde 1976. Adicionalmente, pessoas com baixos rendimentos são mais propensos à solidão do que aqueles que auferem rendimentos mais elevados. 

Estes dados não sugerem que os factores individuais ou demográficos gerem inerentemente solidão ou isolamento, mas permitem compreender que os diferentes mecanismos socioeconómicos, políticos e culturais podem indicar riscos mais elevados para certo tipo de grupos, como por exemplo as minorias.

Tecnologia: mais mal do que bem?

Um outro facto que é amplamente debatido no que respeita ao isolamento prende-se com as “tecnologias sociais”, as quais e ironicamente, foram concebidas para as pessoas aumentarem as suas ligações e não se sentirem tão sozinhas. Na medida em que existem cada vez mais evidências de que o ambiente em que nos movemos tem uma importância extrema para o nosso estado físico, o mesmo é verdade para os ambientes digitais e para a nossa saúde social. Assim e dada a explosão de uma variedade de tecnologias que alteraram radicalmente a forma como vivemos, trabalhamos, comunicamos e socializamos (redes sociais, smartphones, realidade virtual, trabalho remoto, inteligência artificial, entre outras), estas encontram-se cada vez mais omnipresentes. Dados do estudo levado a cabo pelo Surgeon General (Nos Estados Unidos mas extensível a outros países) apontam para que a esmagadora maioria dos jovens e adultos com menos de 65 anos (96% e 99% respectivamente) afirmam utilizar a internet, na qual passam cerca de seis horas por dia, essencialmente nas redes sociais. Um em cada um três adultos a partir dos 18 anos reporta estar online de uma forma quase constante – com um aumento de 5% em 2005 para quase 80% em 2019 – e a percentagem de  adolescentes entre os 13 e os 17 anos (95%) que afirmam o mesmo, confessando que lhes seria extremamente difícil  abandonarem as redes sociais.

A tecnologia tem evoluído de forma célere e as evidências em torno do seu impacto nos nossos relacionamentos estão sempre rodeadas de complexidade. Cada tipo de tecnologia, a forma mediante em que é usada e as características de quem a utiliza têm sempre de ser consideradas quando se determina o seu contributo para um risco menor ou maior de desconexão social. 

Muitos exemplos dos benefícios relacionados com a tecnologia incluem o fomento dos relacionamentos ao oferecerem oportunidades para manter o contacto com amigos e familiares, ao mesmo tempo que permitem a participação social dos mais excluídos e dos grupos mais marginalizados na medida em que criam oportunidades para juntar comunidades. 

Mas também são muitos os exemplos que definem os danos potenciais que estas tecnologias podem causar, na medida em que substituem o  envolvimento pessoal e presencial, monopolizam a nossa atenção, reduzem a qualidade das nossas interacções e diminuem a nossa auto-estima. Tudo isto pode conduzir a uma maior sentimento de solidão, ao medo de “ficar de fora”, a conflitos e a relações sociais reduzidas. 

Adicionalmente, os factores que facilitam, ou se transformam em barreiras, para as interacções sociais podem desencadear ou um círculo virtuoso ou vicioso. O status económico e a saúde são apenas alguns do exemplos ilustrativos no sentido em que, e como já referido, as boas interacções sociais podem conduzir a uma melhor saúde, acontecendo o inverso quando as primeiras são negativas [o presente estudo tem um capítulo dedicado apenas aos inúmeros malefícios para a saúde decorrentes da solidão o das fracas relações sociais]. Por outro lado, uma saúde mais pobre pode transformar-se numa barreira para o envolvimento social, para a redução das oportunidades e apoios sociais, reforçando assim o círculo vicioso criado.

Um padrão similar pode ocorrer entre aqueles que lutam com dificuldades financeiras. Por exemplo, a insegurança financeira pode exigir que as pessoas trabalhem em mais do que um local, o que resulta em menos tempo de lazer e limita a participação e as relações sociais o que, por seu turno, poderá conduzir a menos recursos ou oportunidades financeiras.

Leia também: A solidão pode matar

Nota: O presente estudo oferece ainda sugestões ao nível individual, empresarial comunitário e governamental para que a solidão e o isolamento social possam ser considerados como áreas de intervenção prioritária. E vale a pena conhecê-las.

Editora Executiva