Como se gere filhos, trabalho, casa, relações, medos, dúvidas, incertezas, prazos, reuniões virtuais, birras, chefes e professores, tudo ao mesmo tempo, dentro do mesmo espaço, sem se poder gritar de desespero ou ir dar uma volta à praia para arrefecer as ideias? Não é fácil, mas também não é impossível. É “só” preciso manter a calma, diminuir expectativas de perfeccionismo e aceitar que não existem nem super-trabalhadores nem super-pais. Apesar de ser certo que alguns super-poderes dariam imenso jeito nos tempos que correm
POR HELENA OLIVEIRA

“O primeiro erro que cometi foi achar que podia trabalhar com um portátil na mesa da sala. Nesta altura ainda não tinha interiorizado bem o que significava isto de ficar em casa a trabalhar com dois filhos, um rapaz de 12 (7º ano) e uma rapariga de 10 (4º ano). Os professores, também eles enlouquecidos, a enviar à queima-roupa uma interminável lista de tarefas, enquanto testavam várias plataformas de ensino à distância. Passado uma semana, enviei uma ordem de despejo a mim própria: abandonei a sala, fui buscar o meu desktop à redacção e montei um escritório em casa”.

O desabafo é de Cíntia, editora numa revista feminina e, presentemente “a acumular novas funções de ainda-não-sei-bem-o-quê”. E ilustra bem a vida de muitos pais e mães, em regime de teletrabalho que, há mais de um mês, tentam conciliar a reunião via Zoom com o chefe com os problemas de matemática do filho.

Tudo em simultâneo, por vezes no mesmo espaço, ao que se junta a preparação de refeições diárias, a gestão das lides domésticas, a logística das compras, as discussões entre irmãos, a supervisão dos trabalhos escolares, a limitação de horários frente ao YouTube ou à Playstation e a um puxar constante pela cabeça para imaginar formas de esvaziar a inesgotável energia dos mais novos. “Aulas de educação física online e inventei um jogo de corridas pela casa, correm durante 30 minutos entre os dois. Há que cansá-los!”, conta Filipa, gestora de conteúdos web num banco e actualmente a viver em regime de “loucura instalada”, com o marido, advogado e professor, também a trabalhar em casa e com um filho, de 10 anos, no 5º ano e uma filha, com seis, no 1º ano do primeiro ciclo.

De acordo com uma sondagem do Cesop-Universidade Católica Portuguesa para a RTP e PÚBLICO, publicada a 11 de Abril, cerca de um quarto dos portugueses em idade activa está agora em teletrabalho, com quase metade destes a produzir menos ou muito menos do que produzia antes e com 73% a considerarem que o rendimento escolar está a ser menor – a conciliação trabalho/família é, sem surpresas, mais fácil para quem não tem filhos debaixo do mesmo tecto.

Ou um breve retrato de um país que, de um dia para o outro, se fechou em casa, com trabalho e ensino à distância, onde o silêncio e a privacidade passaram a ser um luxo, o medo de contrair um vírus invisível se tornou uma nuvem negra permanente em cima da cabeça e em que, para muitos, a quebra de rendimentos se transformou numa nova realidade (para um terço, de acordo com a sondagem acima citada).

É assim que estão muitos portugueses e, muito provavelmente, assim irão continuar nos tempos que se avizinham, com a particularidade de terem, no mesmo espaço físico, dois trabalhos (no mínimo) a tempo inteiro. “É como se estivéssemos a passar um grande fim-de-semana em família, mas a trabalhar. A trabalhar em casa e a trabalhar no trabalho. Portanto, a trabalhar a dobrar”, resume Susana, jurista e dirigente intermédia na Administração Pública, com um filho adolescente, de 14 anos, a frequentar o 9º ano.

A vida não está fácil para ninguém, mas dêem graças aqueles que podem continuar a trabalhar sem terem de se preocupar com as aulas à distância dos filhos, com refeições a horas certas para preparar, com miúdos pequenos para entreter, com banhos para dar, histórias para contar e, sobretudo, com o medo de falhar enquanto pais e profissionais.

“Tudo o que temos que fazer é para fazer ao mesmo tempo”

“Para muitos pais, esta situação exige um reset total da sua realidade”, afirma Dave Anderson, psicólogo clínico e director no Child Mind Institute, que sugere, antes de mais, que os adultos reduzam os seus níveis de perfeccionismo e não se culpabilizem pelo facto de não serem nem super-trabalhadores nem super-pais.

O que não é tarefa fácil. “Sentimos que não estamos a cumprir nada 100% bem. O trabalho fica prejudicado e não nos sentimos plenos no nosso papel de pais. Trabalhamos mais em casa do que anteriormente, com a vida compartimentada em blocos de pequenas vidas. Andamos cansados, com a cabeça a mil e tudo o que temos que fazer é para fazer ao mesmo tempo. E temos que lidar com este sentimento todos os dias e lembrarmo-nos que estamos a fazer o melhor possível, com as ferramentas que temos disponíveis. As crianças andam sensíveis e reactivas. Nós também”, confessa Filipa que, por vezes, se vê obrigada a fechar-se na cozinha, em silêncio, a beber o seu café e a saborear o seu guilty pleasure, um chocolate, para adoçar as amarguras dos dias.

Desde que uma boa parte da população passou a trabalhar remotamente, multiplicaram-se – pelo menos numa primeira fase – os argumentos de que o teletrabalho pode aumentar significativamente a performance e que esta nova experiência pode ser duplamente positiva, para empregados e empregadores. “Mas o que está a acontecer actualmente com a crise do coronavírus é completamente diferente”, afirma um economista de Stanford, Nicholas Bloom, devido essencialmente a quatro factores: filhos, espaço, privacidade e opção de escolha. Bloom, que é um entusiasta do teletrabalho, prevê uma enorme quebra de produtividade nas empresas na medida em que um dos requisitos para o sucesso do trabalho a partir de casa implica que os filhos estejam na escola ou na creche. O que, e como sabemos, é impossível em tempos de confinamento.

E a verdade é que a diferença é abissal. Como conta Susana, “já precisei, algumas vezes, de ficar em casa, por períodos muito reduzidos, para realizar trabalhos que exigem maior concentração. Em casa, encontrava facilmente essa tranquilidade. O silêncio! Bastava-me levar o miúdo à escola de manhã e, assim que chegava a casa, era só trabalhar, sem interrupções (o almoço era qualquer coisa feita à pressão, pois era uma situação esporádica…), até à hora de o ir buscar novamente. E nesse momento, desligava do trabalho. Eventualmente, e apenas quando absolutamente necessário, voltava a ligar-me quando o resto da família já se tinha ido deitar”. Agora tudo é diferente: “estar em teletrabalho com a família em casa, nada tem a ver com a situação que descrevi”, assegura.

Pois não. E é por isso que são necessárias rotinas e estratégias para impedir que o isolamento social obrigatório se transforme num caos e para que pais e filhos consigam cumprir as suas obrigações, mesmo que tal signifique não se conseguir fazer tudo o que consta nas listas de tarefas que, nos dias que correm, não são de grande ajuda. “Prometi a mim mesma que não voltaria à política de porta aberta no que toca às dúvidas dos meus filhos: a minha porta estará aberta para esse efeito duas vezes por dia: ao fim da manhã e ao fim da tarde. Assim como a cozinha tem horários de refeição bem definidos. Ok, talvez possam roubar uma banana aqui e ali…”, comenta Cíntia, admitindo que “cá em casa sempre fui eu que me encarreguei das pastas da Educação e da Saúde – o meu marido, empresário em nome individual, ficou com umas bem piores, a das Finanças e a das Obras Públicas”.

Filipa concorda. “O segredo para que tudo funcione um pouco melhor está no planeamento e estabelecimento de regras e rotinas. Todos os dias nos levantamos, tomamos banho e vestimos roupa de rua, mais descontraída é certo, mas não andamos de pijama o dia todo. Igual para as crianças. Apenas ao fim-de-semana não temos horários, como sempre aconteceu”, declara.

Para que os dias não se transformem em pesadelos, o psicólogo clínico Dave Anderson recomenda igualmente que se estabeleçam objectivos, mas com flexibilidade razoável. “Pegue na sua lista de tarefas e corte-a ao meio. De seguida, volte a cortá-la ao meio”, diz, sugerindo que o número de objectivos diários a cumprir sejam um máximo de cinco: “uma ou duas coisas que realmente sejam obrigatórias em termos de trabalho, uma ou duas coisas que pretenda que os seus filhos cumpram e uma actividade em família, nem que seja a de se atirar com os miúdos para cima do sofá e verem meia hora de televisão juntos”. E, assegura, “não espere conseguir fazer muito mais do que isto, pois só se sentirá mais frustrado e stressado”.

Mas e como reagirão os empregadores a esta manifesta falta de tempo e de condições para manter os níveis de produtividade pré-crise? “Toda a gente será menos produtiva e os chefes têm de ter essa noção”, afirma Jaime Klein, CEO da Inspire, uma empresa de Recursos Humanos, que aconselha a estabelecerem-se, com empregadores e colegas, expectativas realistas face ao trabalho que tem mesmo de ser executado e para evitar mal-entendidos ao longo do processo. Em primeiro lugar, sugere, “perceba que horário de trabalho funciona melhor para si, defina os períodos em que estará mais disponível e quanto é que acha que consegue cumprir”, admitindo, contudo, que “trabalhar fora de horas, principalmente para quem tem filhos pequenos, poderá ser a hipótese mais rentável”.

Já o economista de Stanford, Nicholas Bloom, afirma que apesar de todos estes obstáculos, existem alguns truques que podem ajudar a que as quebras de produtividade não sejam tão pronunciadas: “controlos regulares entre os gestores e as suas equipas, manter horários que separem, o mais possível, a vida profissional da vida familiar e fazer videochamadas com os colegas que permitam a continuidade do trabalho colaborativo”. Na verdade, o que não faltam são conselhos e sugestões para se levar o teletrabalho a bom porto, pese embora o facto de os filhos não se encaixarem completamente nestas fórmulas idealistas e, muitas vezes, irrealistas.

“Que raio de contas são aquelas que os miúdos fazem agora?”

Paralelamente à preocupação de se continuar a cumprir as obrigações profissionais ao mesmo tempo que se satisfazem as exigências parentais – e todas as outras –, os pais e as mães portugueses estão, compreensivelmente, apreensivos face à situação escolar dos seus filhos. Não só porque o ensino à distância está a ser uma experiência nunca antes praticada, mas também porque temem não estar à altura de os ajudar da forma mais adequada.

“Considero-me uma pessoa até bastante optimista e não sou de fazer grandes dramas, mas confesso que o anúncio de António Costa me deixou momentaneamente sem ar. Espera, aí, mas os miúdos não vão voltar à escola como? Então, mas não querem pensar mais um pouco sobre o assunto?”, questionou Cíntia quando se tornou pública a notícia de que as escolas permaneceriam encerradas até ao final do ano, pelo menos para os alunos até ao 10º ano.

A somar a todas as inquietações com a saúde, o trabalho, a família e o confinamento domiciliário, estar igualmente preocupado com a escola e com os resultados deste ano tem tirado o sono a muitos pais por esse país fora. Mesmo que, e de acordo com a sondagem anteriormente mencionada, 59% dos respondentes tenham afirmado que a comunicação em geral entre a escola e os alunos está a ser boa.

Todavia, várias questões se colocam, sendo uma delas a do papel que os pais têm de desempenhar agora que o ensino se faz ao longe, onde os miúdos não são controlados por nenhum professor e em que a sua proficiência em tecnologias é superior à de muitos adultos, podendo dar azo a que se troque a conversa enfadonha do professor por um bem mais animado jogo no computador. A este propósito, afirma Susana: “é necessário, de vez em quando, ir ao quarto de surpresa e perceber se está mesmo só na aula e com atenção à mesma, ou se está num chat paralelo na conversa com os colegas”. Apesar de se sentir bastante satisfeita com a escola do seu filho, “bem organizada (aulas via zoom colibri, trabalhos via escola virtual, prazos devida e atempadamente definidos, professores empenhados e muito próximos dos alunos) “ e de, sendo adolescente, este já ter uma enorme autonomia na execução das suas tarefas escolares, “apercebi-me uma vez que, enquanto a Professora dava uma aula no zoom, ele e outros falavam noutra plataforma”, sublinhando ainda “a velocidade com que desligam o microfone de uma plataforma e ligam o da outra para responderem às perguntas da professora”.

Também o facto de os miúdos passarem demasiado tempo em frente aos ecrãs constitui uma preocupação renovada para os pais. “Quando não tinham aulas, inventava alguns trabalhos para fazerem. Não fosse isso e estavam agarrados a televisão e à Playstation o dia inteiro” refere Filipa, agora mais tranquila pois as férias terminaram e o 3º período chegou, com horários fixos e avaliações. “Estamos muito contentes com a forma como o colégio está a lidar com esta nova realidade. Em duas semanas mobilizou todos os professores, deu formação e orientou todos. Para nós é um descanso garantir que as crianças estão ocupadas (para podermos trabalhar com menos stress) e que mantêm um certo grau de aprendizagem”, reforça também.

O facto de os pais terem, supostamente, de vestir a pele dos professores é outra consequência da situação atípica em que estamos a viver. Mas, e como afirma Cíntia, “não tenho pretensões de me tornar professora dos meus filhos: primeiro porque não tenho habilitações (que raio de contas são aquelas que eles fazem agora?!); segundo porque são dois papéis incompatíveis”, garante, afirmando que “uma coisa é negociar o top de verão que ela quer usar em pleno inverno, outra é ter de chegar a acordo sobre as funções da derme e da epiderme”.

Susana elenca igualmente inquietações que são comuns a muitos pais. “Causa-me alguma preocupação, também, o miúdo não desligar do computador – o que ele adora, diga-se de passagem (diz que os “gamers” foram feitos para isto…). Mas preocupa-me que ele não esteja a levar a coisa a sério: receio que, como é no computador, não seja a sério, como na escola. Percebo que ele e os colegas, assim que a aula termina, começam logo a jogar”, lamenta. “Isto não aconteceria se estivessem na escola. Iam jogar à bola, conversar”, recorda, como se esse tempo tivesse há muito passado.

Com o plano de intenções dos professores chegado ao seu email no fim-de-semana de Páscoa – “uma miscelânea de eventos, entre aulas por videoconferência na Webex – a plataforma da Cisco foi a escolhido pelo agrupamento a que pertencem as escolas dos meus dois filhos – e trabalhos atribuídos pelos professores”, Cíntia admite ter dúvidas e curiosidades. “Conseguirão eles manter a concentração numa aula online? Conseguirei eu treinar a sua autonomia? Quantos dias antes de eu ameaçar deixá-los sem YouTube para sempre? Quantas semanas antes de eu ameaçar fazer as malinhas e partir por aquela estrada, agora que já podemos voltar a atravessar as fronteiras de concelho?”, questiona, enquanto também brinca com o assunto.

Brincar com coisas sérias ajuda igualmente a enfrentar os dias fechados em casa, a incerteza avassaladora face aos tempos mais próximos e a suspensão da vida tal como a conhecíamos. Como diz Filipa, “o mundo mudou e temos agora uma nova normalidade”. Ou, como espera Susana, “isto é temporário, há-de passar e, aí, retomaremos a normalidade”. Ou como informa Cíntia: “vou agora dedicar-me a outros dos serviços que presto por estes dias de isolamento a quatro: o de cantina escolar. O que vai ser o almoço, o de amanhã e o dos próximos 60 dias? Aqui está outro dos meus ainda-não-sei-bem-o-quê dos dias que correm”.

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