A 24 de Fevereiro de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia. Um ano depois, o conflito perpetua-se sem um fim à vista. Um aniversário que celebra a incapacidade tão humana de ultrapassar conflitos. Um aniversário que recorda, uma vez mais, o recorrer à guerra, como uma escolha supostamente justificada, necessária e legítima. Tenho a certeza de que a única solução digna será uma solução negociada, dialogada, política, orientando todos os esforços para esse fim, com determinação. Proponho-me, por isso, refletir sobre a guerra e a paz em si mesmas
POR MARIA DE FÁTIMA CARIOCA

Ao longo de séculos, autores como Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino e filósofos da Escola de Salamanca elaboraram um conjunto de teses, ao qual se chamou de doutrina da guerra justa. Este conceito baseia-se na ideia de que a guerra pode ser justificada sob certas circunstâncias. Tradicionalmente, estabeleceram-se quatro condições para que se possa considerar uma guerra como justa. É importante referir que as quatro condições são todas elas necessárias e nunca são suficientes por si mesmas. Isto é, basta que uma das quatro condições esteja em falta para que não se possa considerar uma guerra como “justa”. A primeira considera que deve haver uma causa justa e legítima, como a defesa de si mesmo ou de inocentes. Em segundo lugar, deve haver uma intenção correta e uma autoridade competente que decida a necessidade de empreender a guerra. Em terceiro lugar, a guerra deve ser proporcional e evitar danos desnecessários, tanto para os combatentes quanto para os não combatentes. Por fim, a guerra deve ter a esperança fundada de alcançar a paz e o bem comum.

Os autores da doutrina da guerra justa alegam não defender a violência e a agressão, mas sim a proteção dos valores fundamentais da humanidade. Segundo estes pensadores, é importante ter em conta que a guerra é sempre uma última opção e deve ser evitada sempre que possível. Pelo que, em situações extremas em que a justiça e a paz são ameaçadas, a guerra pode ser uma escolha necessária e legítima. Nesses casos, a doutrina da guerra justa fornece uma estrutura ética para a ação militar, garantindo que ela seja conduzida de forma moralmente aceitável.

Uma visão diferente é a rejeição da guerra como princípio, defendida, entre outros, pelo Papa Francisco como tão expressivamente grita na sua Carta Encíclica Fratelli Tutti (p.258): “Nunca mais a guerra!” Desde logo porque a paz real e duradoura é condição necessária, não suficiente, para que todos possam crescer, realizar-se e conviver em sociedade.

Mas além disso, os autores que recusam a guerra consideram que as condições de legitimidade moral que acima citei têm, facilmente, uma interpretação demasiado abrangente desse possível direito. Por outro lado, também salientam que, com o desenvolvimento da tecnologia e a sua aplicação a cenários de guerra, a destruição é sempre avassaladora, atingindo muitos milhares de inocentes. Neste sentido, os riscos serão sempre superiores à hipotética justificação legítima que se atribua à guerra. Perante a realidade, é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos noutros séculos para falar duma possível «guerra justa».

Ficamos assim com duas visões diferentes, embora não necessariamente opostas, sobre o conceito de guerra justa, porque para ambas, a paz será sempre melhor solução do que uma guerra, por muito “justa” que esta seja. Enquanto a paz constrói, toda a guerra deixa o mundo pior do que o encontrou.

Curiosamente, o facto de existirem duas visões distintas é sempre um ponto de partida tanto para começar uma guerra, como também para começar um diálogo. A guerra e o diálogo têm esta premissa em comum. No entanto, a guerra resulta sempre do desprezo e da desistência do diálogo. A guerra é, por si mesma, uma rendição, um fracasso da política e da própria humanidade. Já para haver diálogo não bastam duas visões distintas, é também necessário que as duas partes reconheçam, mutuamente, a dignidade do outro e a existência de uma verdade comum que sustente a paz. Ou seja, para chegar à paz é necessário pôr-se de acordo sobre alguma base, a fim de que seja possível um novo futuro.

O segredo do caminho para a paz é, portanto, o diálogo. Não deixa de ser singular que num mundo global e hiper conectado, em que estamos próximos de tudo e de todos, tantas vezes nos encontramos mais distantes emocionalmente e mais propensos a conflitos. A ligação digital não basta para lançar pontes, não é bastante para unir a nossa humanidade. Dizia Bento XVI que a globalização “torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos”. Talvez o princípio da paz esteja no tecer, de forma laboriosa, artesanal e perseverante, de uma cultura de respeito, de sintonia, de inclusão, de diálogo. Integrar as realidades diferentes é sempre um processo muito difícil e lento, embora seja a garantia duma paz real e sólida.

A este propósito fez, no dia 18 de fevereiro, 2 anos que o rover Perseverance aterrou em Marte e aí continuará nos próximos anos, em busca de sinais de vida. Um nome simbólico e uma missão histórica, cujo objetivo é investigar, buscar informação para projetar o futuro. Deveria também ser este o caminho da paz: em conjunto, buscar no diálogo uma base de verdade. Seja na conversa tranquila ou na discussão mais apaixonada, seja em sede diplomática, seja na vida quotidiana, o importante é fazer o caminho. É um caminho que exige perseverança, capaz de recolher a vida das pessoas e o passado dos povos, para construir o futuro. É, sobretudo, um caminho de sabedoria, coisa que, como todos os alunos da AESE sabem, “não se ensina, mas aprende-se”. Assim se esteja disponível para tal. Assim se tenha a ousadia de o empreender.

Nota: Artigo originalmente publicado no Jornal de Negócios. Republicado com permissão.

Professora de Factor Humano na Organização e Dean da AESE Business School