Ética e compliance. Ainda que estas duas áreas, em contexto organizacional, possam ser consideradas como duas faces de uma moeda, apenas a compliance tem sido (e cada vez mais) implementada. E percebe-se que assim seja, ou melhor, que um programa abrangente de ética comece por aquela “face”. Mas é igualmente importante não esquecer (e reforçar) a outra face da moeda, a da ética
POR HELENA GONÇALVES

Dois dos princípios prima facie centrais no debate bioético são o princípio de não-maleficência (obrigação de não causar, em termos gerais, qualquer mal ou dano) e o da beneficência (obrigação de ajudar os outros, isto é, de providenciar benefícios ou promover o bem e não apenas evitar o mal). Em linguagem comum poderíamos dizer que equivalem a “Não faças nunca o mal e faz todo o bem que puderes”.

Se aplicarmos estes dois princípios às empresas poderemos compará-los à missão das suas áreas de compliance e ética. Ou seja, a área de compliance terá como missão proteger as organizações contra eventuais “males” ou, formulando pela positiva, garantir que a organização conduz o negócio em completo alinhamento com as leis nacionais e internacionais, bem como com a regulamentação específica do setor e das normas profissionais, aceitando-as enquanto normas internas da empresa. A área da Ética terá como missão conduzir o negócio alinhado com determinados valores e princípios de ética e conduta, que estão em regra expressos no seu código de ética.

Ainda que estas duas áreas, em contexto organizacional, possam ser consideradas como duas faces de uma moeda, apenas a compliance tem sido (e cada vez mais) implementada. E percebe-se que assim seja, ou melhor, que um programa abrangente de ética comece por aquela “face”. Mas é igualmente importante não esquecer (e reforçar) a outra face da moeda, a da ética.

As organizações estão em diferentes fases de maturidade no que se refere à gestão ética. Em The Ethics Office Handbooki[ CITATION The181 \l 2070 ], esta maturidade é analisada em função das crenças e atitudes em relação à ética na organização, sobre formas de olhar e integrar (ou não) a gestão da ética nos negócios.

[quote_center]A crença de que a própria natureza dos negócios é eticamente neutra faz com que as organizações fiquem “cegas” quanto à necessidade e utilidade da gestão da ética[/quote_center]

No Modelo de Gestão da Ética aí apresentado, analisa-se a importância dada à ética e respetiva capacidade de determinar se tem um ethics office, mas também de analisar quanto neste departamento é investido na edificação, tempo e recursos monetários e humanos alocados. Esta abordagem está baseada em seis “estilos”, ou melhor, em seis perspetivas: amoral, sobrevivência, reativa, compliance, integridade e completamente alinhada.

Os primeiros três correspondem a uma ausência de perspetiva ética enquanto os três últimos vão integrando algum pensamento ético, designadamente os princípios da não-maleficência e beneficência referidos. Tendo por base esta taxionomia de perspetivas, não se faz considerações sobre as três primeiras, acreditando que o mercado e o tempo se encarregarão de mostrar aos gestores das organizações que se encontram nestes patamares o que perderam e o “mal” que fizeram e que continuam a fazer.

 
Amoral Sobrevivência Reativa Compliance Integridade Alinhamento Total
Natureza Ética não pertence aos negócios A conduta antiética é necessária para sobreviver Gestos simbólicos sobre intenções éticas Compromisso para evitar comportamentos antiéticos Promoção do comportamento ético responsável A ética está enraizada no propósito e identidade corporativa
Propósito Exclusão de considerações éticas dos negócios Comportamento antiético como o que é necessário para a sobrevivência Proteção contra o risco de comportamento antiético Prevenção de comportamentos antiéticos Elevar o nível de desempenho ético corporativo A ética é crucial para a implementação da estratégia
Abordagem de gestão da ética Exclusão de considerações éticas dos negócios Práticas antiéticas são aceites e até recompensadas Padrões éticos sem qualquer aplicação Detectados comportamentos antiéticos e penalizadas os transgressores Detectados comportamentos éticos e reconhecidos Negócios éticos imbuidos como padrão (a ética é um modo de vida)

Adaptado de The Ethics Office Handbook [ CITATION The181 \l 2070 ]

O pensamento na perspetiva amoral é o da neutralidade ética. A crença de que a própria natureza dos negócios é eticamente neutra faz com que as organizações fiquem “cegas” quanto à necessidade e utilidade da gestão da ética. Em tais organizações, a adesão à lei é vista como eticamente suficiente, ou seja, a menos que sejam compelidas por lei, tais organizações não tem uma função dedicada à gestão da ética, um ethics office. Na perspetiva de sobrevivência, as organizações optam por fazer negócios através de comportamentos antiéticos e estão por isso alheias à possibilidade de ter um ethics office, uma vez que este departamento, a existir, poderia “exigir” a prestação de contas por falhas éticas. No terceiro estilo, na perspetiva reativa, as organizações reconhecem o custo potencial do comportamento antiético e podem, portanto, criar alguns padrões éticos. Mas, como não desaprovam alguns meios antiéticos de fazer negócios, esses padrões éticos são principalmente para “fachada”, sendo improvável que estas organizações invistam substancialmente na função de gestão de ética.

[quote_center]Na perspetiva de sobrevivência, as organizações optam por fazer negócios através de comportamentos antiéticos e estão por isso alheias à possibilidade de ter um ethics office, uma vez que este departamento, a existir, poderia “exigir” a prestação de contas por falhas éticas[/quote_center]

E é a partir deste patamar que se poderá fazer alguma comparação mais direta com os princípios da não-maleficência e da benevolência.

Na perspetiva de conformidade, embora as organizações estejam comprometidas com o comportamento ético, a sua filosofia de gestão da ética incluiria a aplicação de regras e a chamada atitude de “tolerância zero”, forçando os colaboradores a serem éticos por medo de punição. Assim, caso seja criado o ethics office, o seu foco será a prevenção de comportamentos antiéticos e terá um forte pendor para criar uma tick-box, sendo os conceitos “ética” e “conformidade” usados como sinónimos. Esta fase é uma tentativa de incorporação do princípio da não-maleficência, ou seja, evitar não fazer mal, até porque os eventuais incumprimentos ou mesmo danos na reputação começam a ter valores demasiadamente grandes. A esse propósito pode ser recordada a recente lista dos 10 principais escândalos empresariais e a influência que tiveram nas respetivas cotações bolsistas, em Top 10 biggest corporate scandals and how they affected share prices, estando na sua origem temas como a manipulação ou falsificação de relatórios, a venda enganosa, o assédio, o uso de informação, o abuso de posição dominante ou o ambiente.

No quinto estádio, na perspetiva de integridade, e incorporando parcialmente o princípio da beneficência, as organizações concentram-se em promover o comportamento ético, com os colaboradores a agirem eticamente, por vontade própria e não por medo de punição. Reconhecem incondicionalmente a importância da ética nos negócios e investem muito na gestão da ética e num ethics office, nomeando “embaixadores da ética” para garantir que a mensagem de ética esteja espalhada por toda a organização. Intervenções éticas proativas, com programas de éticas abrangentes, como formação (sistemática) em ética e recompensa ou distinção dos colaboradores por comportamento ético, tornam-se a norma.

[quote_center]Na perspetiva de integridade, e incorporando parcialmente o princípio da beneficência, as organizações concentram-se em promover o comportamento ético, com os colaboradores a agirem eticamente, por vontade própria e não por medo de punição[/quote_center]

Por fim, e embora poucas organizações alcancem a fase de alinhamento total, são as que integram o comportamento ético de forma transparente em todas as operações de negócios, sendo a ética um modo de vida nesses ambientes. As organizações de modo totalmente intuitivas e totalmente alinhadas têm em regra um ethics office, embora o seu papel seja altamente facilitador, agindo como um “leme” que mantém o “barco” organizacional em curso.

Há cada vez mais organizações a quererem fazer a transição da fase da compliance para a fase da integridade/ética. Mas para isso, e tal como qualquer outra área da gestão, precisam de estudar, de aprender, de estar atentos às melhores práticas, em suma de fazer investimentos em tempo e dinheiro, mas também e sobretudo, para além de conhecerem profundamente o negócio, refletirem sobre o propósito da organização, aliás com apelos globais e crescentes de que é exemplo o de “Larry Fink’s 2019 Letter to CEOs -Purpose & Profit

Em síntese, as áreas de compliance focam-se (tradicionalmente) em regras, diretivas, regulamentos e normas, mas não em valores e cultura; punem comportamentos não éticos, mas não recompensam comportamentos éticos; seguem normas mínimas, mas não as melhores práticas, enfim, focam-se no talk mas não no walk. Seguem, e bem, o princípio da não-maleficência, mas não incorporam o da beneficência no negócio.

[quote_center]As organizações totalmente alinhadas têm em regra um ethics office, embora o seu papel seja altamente facilitador, agindo como um “leme” que mantém o “barco” organizacional em curso[/quote_center]

A par com a área de compliance, algumas organizações têm já áreas de sustentabilidade e/ou responsabilidade social relativamente maduras que já incorporam na sua cultura o princípio da precaução e minimizam os impactes negativos (a máxima “não faças nunca o mal”), mas muitas ainda não incorporaram a outra face, a maximização de impactos positivos (a máxima “faz todo o bem que puderes”). E é sobretudo para promover estes impactos positivos que a área da ética é especialmente relevante.

Em síntese, parece ser evidente que as organizações que se encontram nos três primeiros estádios não integram o princípio da não-maleficência, o que é considerado imoral. O quarto estádio, o da compliance, parece integrar o princípio da não-maleficência, mas não integra o princípio da beneficência, o que poderá não ser considerado imoral e não o é, frequentemente, no mundo empresarial. O quinto estádio, o da Integridade, é claramente a fase da transição, onde (timidamente) parece ser integrado o princípio da beneficência. A existência generalizada de organizações éticas talvez seja (ainda) uma utopia. Mas cabe a cada um de nós, gestores, trabalhadores, políticos, investigadores, educadores ou cidadãos em geral, reconhecer a sua importância e fazer com que haja um crescente número de organizações (mais) éticas. Para isso é necessário ajudar a trazer a reflexão ética para as práticas, para o dia-a-dia, ou seja, é necessário falar regular e continuadamente sobre ética.

Esta necessidade torna-se imperativa se aceitarmos a regra dos “20;60;20”: 20% das pessoas farão sempre a “coisa certa”, atuarão legal e eticamente independentemente das circunstâncias ou ambientes de trabalho; 20% de pessoas atuarão sempre de forma ilegal ou não ética quando tiverem oportunidade para o fazer, se as recompensas forem atrativas e se percecionarem uma baixa probabilidade de serem apanhadas; 60%, sendo basicamente honestos, poderão optar por comportamentos ilegais ou não éticos, se as “circunstâncias o exigirem”, tais como pressões das chefias ou pares, sistemas de recompensas, convicção de estarem a agir no melhor interesse da empresa. Este grupo de “moldáveis” são os potenciais alvos de programas de ética, porque podem ser influenciados a terem comportamentos éticos quando trabalham em organizações com culturas éticas (Schwartz, 2013, p. 41ii)

[quote_center]Um dos mitos que rodeiam a ética organizacional é o de que as pessoas são éticas ou não são, e que por isso não há muito que se possa fazer a esse respeito[/quote_center]

Em conclusão, um dos mitos que rodeiam a ética organizacional é o de que as pessoas são éticas ou não são, e que por isso não há muito que se possa fazer a esse respeito. Acreditar nesse mito implica acreditar que não se pode controlar a ocorrência de comportamentos antiéticos e, portanto, não se pode mudar o comportamento dos gestores e colaboradores. Essa visão da vida na organização significa que tudo o que se pode fazer é esperar que as pessoas éticas contenham os antiéticos. Acredito que não passa de um mito. Já há (boas) respostas, que merecem ser estudadas e divulgados, a perguntas tais como: É possível fazer alguma coisa para reforçar o desenvolvimento moral dos colaboradores? O código de ética, a comunicação e a formação em ética serão as únicas ferramentas? Como criar mecanismos seguros (anónimos e sem retaliação) que permitam e favoreçam denúncias/reclamações, ou melhor, que permitam “dar voz à integridade”? Como medir e gerir a ética?

O Ethics Office é necessário para responder a estas e muitas outras perguntas que têm de ser levantadas em cada organização, para promover comportamentos (mais) éticos e enraizar a ética no propósito e identidade corporativa. Em suma, o Ethics Office é necessário para apoiar o desenvolvimento e fortalecimento de uma cultura ética.

i The Ethics Institute, The Ethics Office Handbook (2018)

ii Mark S. Schwartz, Developing and sustaining an ethical corporate culture: The core elements, Business Horizons (2013) 56, 39—50

Docente e coordenadora do Fórum de Ética da Católica Porto Business School

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