Uma das maiores dificuldades que se apresenta aos que, e muito bem, se preocupam com o futuro do trabalho face ao contexto de progresso acelerado da automação, não reside na identificação das áreas em que a presença dos humanos deixará de ser necessária. O que é mais difícil de prever são as novas funções que esta revolução tecnológica e social irá criar e que possam ser exclusivamente desempenhadas pela nossa espécie. E essa pode ser a maior das nossas vantagens
POR
HELENA OLIVEIRA

Imagine que precisa de fazer uma Tomografia Computorizada (TAC) ao pulmão, sugerida pelo seu médico e que aguarda ansiosamente pelo relatório do radiologista. Este último é um profissional especializado e amplamente treinado para traduzir possíveis alterações visíveis nas imagens dos seus pulmões e para detectar alguma anomalia, a qual poderá fazer toda a diferença no seu diagnóstico e futuros passos a dar, caso os resultados sejam preocupantes. Apesar de o radiologista em causa ser da sua inteira confiança, existem, no mínimo, sete por cento de hipóteses de erro na interpretação das imagens. Afinal, o seu radiologista é humano e todos nos lembramos da famosa máxima errare humanum est. Agora imagine um computador, dotado de uma técnica de Inteligência Artificial, denominada “deep learning” – ou seja, redes de neurónios artificiais biologicamente inspiradas nas nossas células cerebrais – e que lhe dará um diagnóstico com zero por cento de erros. Se tivesse de escolher, escolheria o humano ou a máquina?

Este cenário não é futurista e está já a ser utilizado pela Enlitic, uma das muitas startups que está a aplicar a inteligência artificial, no geral, e o deep learning no particular, na medicina, e serve de exemplo das inúmeras mudanças às quais, mais cedo ou mais tarde, governos, empresas e, mais importante que tudo, todos nós, teremos de nos adaptar.

[quote_center]Será a revolução das máquinas assim tão diferente das que a precederam?[/quote_center]

No seguimento do trabalho que o VER tem vindo a desenvolver no que respeita aos desafios da nova era das máquinas inteligentes e sem nos determos em cenários apocalípticos – apesar de serem muitos aqueles que os defendem – consideramos de importância fulcral continuarmos a alertar para as mudanças sem retorno que estão já a ocorrer, mas cuja celeridade e imprevisibilidade marcarão fortemente a próxima década. O mundo do trabalho – e não só – vai mudar, sem dúvida, e ninguém sabe ao certo quanto. Mas entre os profetas da desgraça que defendem que a ascensão das máquinas inteligentes irá provocar o desemprego em massa e os que preconizam que esta é apenas “mais” uma revolução que, à semelhança das outras irá destruir alguns empregos, mas também criar outros tantos, vai ainda uma grande distância. Talvez a “virtude” esteja exactamente no meio dos extremos, mas nada se perde em se reflectir sobre o assunto.

Destruição ou redefinição do trabalho?

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Em Junho último, a revista The Economist publicou um excelente especial sobre Inteligência Artificial, intitulado “The return of the machinery question”, no qual enquadra as principais promessas, as possíveis disrupções e alguns dos diferentes temores que esta nova era implica para toda a sociedade tal como a conhecemos. Desde a ideia utópica de que a tecnologia fará tudo por nós, deixando-nos livres para “fazermos o que bem entendemos”, passando pelas necessidades de reestruturação dos sistemas de educação e formação para a vida, em conjunto com a necessária reformulação dos currículos académicos e competências “fulcrais” para nos adaptarmos a uma nova realidade inegável, até às inúmeras questões éticas que muitos pretendem não ver e, é claro, não esquecendo o seu talvez mais falado impacto, o futuro do trabalho, são vários os estudos e livros publicados sobre este assunto em particular e citados pela revista britânica que foram já analisados pelo VER (v. artigos relacionados no final deste texto). Mas e como esta é uma matéria por demais sumarenta, uma das questões analisada no especial da revista em causa – se esta é, ou não, uma “revolução” com impactos completamente diferentes das que a precederam – despertou a nossa atenção. E, tal como em todas as revoluções – ou disrupções, termo que é agora mais usado – são várias as formas de as percepcionar.

Um dos estudos mais citados quando se fala do futuro do trabalho – ou, mais precisamente, do “trabalho sem futuro” profetizado por alguns, foi realizado em 2013 por dois investigadores da Universidade de Oxford: intitulado “The Future of Employment: How Susceptible Are Jobs to Computerisation?”, este ensaio vaticinava que 47% do total de empregos existentes nos Estados Unidos seriam ameaçados pela automação nas próximas duas décadas (v. O futuro e as máquinas que vão devorar o nosso trabalho), conclusão realizada depois de analisada a “probabilidade de computorização” de 702 ocupações existentes na actualidade. Entre as profissões que maior “perigo” de serem tomadas pelas máquinas estão, contam-se as que estão relacionadas com a logística e os transportes (um bom exemplo, e muito recente, é o serviço de entrega de encomendas da Amazon com drones, o qual está já a ser testado), com os serviços de apoio aos escritórios (como recepcionistas e os profissionais da segurança – porque serão facilmente substituídos por máquinas) -, em conjunto com muitos trabalhadores das áreas de vendas e serviços (como os operadores de caixa seja em supermercados ou nos bancos, por exemplo), os operadores de telemarketing e os contabilistas.

[quote_center]A previsão de que a automatização fará do trabalho humano uma redundância não é inovadora[/quote_center]

Adicionalmente, os economistas estão igualmente preocupados com a denominada “polarização de empregos”, ou seja, com os trabalhadores que não pertencem nem ao “topo” da hierarquia laboral, nem às bases, mas sim aqueles que exercem funções ou têm competências intermédias. Adicionalmente, e de acordo com o Fórum Económico Mundial, 65% das crianças que estão, no presente, a iniciar a sua vida escolar, acabarão por inaugurar a sua vida laboral em tipos de trabalho inteiramente novos e que ainda não existem hoje mas, e mais cedo do que isso, e já em 2020, mais de um terço das competências que hoje consideramos importantes, tornar-se-ão obsoletas. E, para alguns dos insiders da área da Inteligência Artificial, como é o caso de Sebastian Thrun, professor de Stanford citado pelo Economist, “estamos apenas a ver a ponta do iceberg”, na medida em que grande parte dos trabalhos existentes na actualidade poderão ser decompostos em tarefas rotineiras, as quais poderão, quase na sua totalidade, ser cumpridas por robots.

E é talvez neste ponto em particular que esta nova era se diferencia das que a precederam. Como se pode ler no especial mencionado, nas anteriores vagas de automação, os trabalhadores tinham como opção passar de uma tarefa rotineira em determinada indústria – entretanto adjudicada a máquinas – para uma outra função rotineira numa outra indústria. O problema é que agora, “as mesmas técnicas de ‘big data’ que permitem às empresas melhorar as suas operações de marketing e serviço ao cliente conferem-lhes, em simultâneo, a matéria-prima para treinar os sistemas de ‘máquinas que aprendem’ [de que é exemplo o “deep learning” acima mencionado] para cumprirem as tarefas de um número cada vez maior de pessoas. E mesmo as denominadas profissões criativas – como o jornalismo, por exemplo – estão já, em algumas áreas, como a escrita de relatórios de mercado ou resumos de jornadas desportivas – a ser automatizadas.

[quote_center]A redefinição de tarefas é o cenário defendido pelos optimistas que não acreditam que a ascensão das máquinas inteligentes provocará mais desemprego[/quote_center]

Mas e como sublinha a revista Economist, a previsão de que a automatização fará do trabalho humano uma redundância, não é de toda inovadora, tendo sido uma constante ao longo da Revolução Industrial, em particular por parte dos trabalhadores da área têxtil que muito protestaram contra as máquinas e os motores a vapor, clamando que estas iriam destruir as suas vidas. O mesmo aconteceu quando os computadores começaram a povoar os escritórios e várias estruturas automatizadas começaram a ser usadas nas fábricas, ou na construção, entre outros exemplos similares. Mas a diferença reside no facto de que estas tecnologias “passadas” acabaram sempre por criar mais trabalhos do que aqueles que foram destruídos, pois e de acordo com o economista do MIT David Autor, também citado pelo Economist, “automatizar uma tarefa, para que a mesma possa ser realizada de forma mais rápida e/ou mais barata, aumentou, por seu turno, as exigências para que os trabalhadores humanos pudessem exercer outras tarefas não passíveis de serem automatizadas”. E, até agora, não existem dados suficientes que contradigam o mesmo resultado no futuro próximo.

Um bom exemplo, e não assim tão longínquo, prende-se com o surgimento das ATM que, na altura, despertou o temor de despedimentos em massa dos bancários, na medida em que estas começaram a realizar muitas das tarefas rotineiras dos humanos. O que acabou por acontecer não foi uma vaga de despedimentos no sector da banca, mas sim uma reformulação e redefinição da própria profissão, permitindo libertar os trabalhadores, por exemplo, para a área de vendas e de apoio mais personalizado aos clientes, algo que as máquinas não conseguem (ainda, é certo) fazer.

Esta redefinição ou reformulação de tarefas é o cenário defendido pelos optimistas que não acreditam que a ascensão das máquinas inteligentes provocará mais desemprego – ou desemprego em massa, como vaticinam os mais pessimistas -, sendo que o mesmo é apoiado por vários exemplos mais ou menos recentes, como a massificação dos computadores, entre vários outros. Um outro exemplo fornecido é o da automação das compras – o comércio electrónico – que, em conjunto com as “recomendações digitais e personalização”, não retirou trabalho aos vendedores de lojas (uma das profissões considerada em “perigo” no estudo elaborado pelos cientistas de Oxford já mencionado), antes tem vindo a encorajar as pessoas a comprarem mais, gerando um aumento dos níveis de emprego no sector do retalho.

Se alguns empregos/tarefas irão desaparecer? Sem dúvida. Mas o que é verdadeiramente difícil de prever não são as áreas em que a presença dos humanos deixará de ser necessária, mas que tipos de novas funções esta revolução tecnológica irá criar que sejam de performance obrigatória (e exclusiva) para a nossa espécie.

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Proibida a entrada de máquinas estranhas ao serviço

Nesta provável “luta” por empregos entre humanos e robots, parece existir alguma unanimidade entre os especialistas no que respeita às competências que serão fulcrais para garantir que o nosso trabalho não seja usurpado por máquinas. A criatividade, a aptidão para bem cooperar e para trabalhar “multidisciplinarmente”, a empatia, a capacidade para bem comunicar e, em particular, a predisposição para se aprender continuamente estão entre as características “humanas” que mais valorizadas serão no futuro próximo, na medida em que o inegável progresso nas áreas da automação e da Inteligência Artificial ainda não as conseguiu “incorporar” nas máquinas. Adicionalmente, existe uma nova forma de se percepcionar os dias vindouros: a de que o futuro não será caracterizado por uma competição entre pessoas e máquinas, mas sim por pessoas que as utilizarão de forma eficiente e cujo trabalho será muito mais interessante e recompensador. Importante é também o facto de que, e por muito que as máquinas evoluam e se tornem inteligentes, existirão sempre trabalhos que só poderão ser realizados por humanos, sendo exactamente estes aqueles que exigem maiores doses de empatia e de interacção social, como por exemplo os cuidados de saúde.

[quote_center]O futuro não será caracterizado por uma competição entre pessoas e máquinas, mas sim por pessoas que as utilizarão de forma eficiente[/quote_center]

Steven van Belleghem, especialista em marketing digital e autor de “When digital becomes human: the transformation of customer relationships” (considerado um dos melhores livros sobre esta mesma temática em 2015), aborda bem a questão das interacções humanas que são indispensáveis em várias áreas e assegura que 73% das pessoas continuam a eleger o contacto humano como imprescindível com qualquer que seja a empresa que estejam a lidar e mesmo que os canais digitais das mesmas funcionem na perfeição. E, apesar do seu livro se centrar em particular nas relações entre empresas e clientes, os exemplos que oferece de características que só os humanos possuem e que os robots só muito dificilmente poderão algum dia “imitar”, servem bem para ilustrar o cenário laboral em muitas das suas dimensões.

Por exemplo, o facto de os robots serem programados para irem ao encontro de determinadas expectativas é inegável. Mas inegável também é a certeza de que os humanos, se quiserem, podem sempre exceder essas mesmas expectativas e, só por isso, fazerem toda a diferença: a espontaneidade e a tomada de iniciativa, por exemplo, muito dificilmente serão comportamentos que a inteligência artificial algum dia poderá recriar.

A personalização, uma das grandes “competências” dos computadores à qual estamos habituados e rendidos, é também um dos exemplos escolhidos por Van Belleghem para traçar uma fronteira bem demarcada entre robots e humanos. E se esta personalização é extremamente importante nas relações com os clientes, apenas os humanos conseguem torná-la verdadeiramente “pessoal”. Um empregado de um restaurante que consiga acalmar uma criança que está aos berros com caretas ou sorrisos, um vendedor de carros que partilhe com o comprador a alegria deste face à sua nova aquisição ou a senhora do café que oferece um bombom num dia em que a tristeza está estampada na cara de um cliente são pequenos, mas valiosos, actos de empatia – e simpatia – simplesmente insubstituíveis. E também é sabido que a capacidade para gerar empatia é crucial para estabelecer uma forte relação emocional com os consumidores.

[quote_center]Por muito que as máquinas evoluam e se tornem inteligentes, existirão sempre trabalhos que só poderão ser realizados por humanos[/quote_center]

Também no que respeita às já mencionadas tarefas rotineiras – nas quais os robots são, e serão cada vez mais, imbatíveis – existe a limitação óbvia de se ir para além das mesmas. Ou seja, por muito boa que uma máquina seja a desempenhar determinada tarefa, ela nunca poderá “inovar” ou “pensar fora da caixa”, algo que é comum – e desejável – nos humanos. O autor de “When digital becomes human” dá um outro exemplo: uma máquina poderá facilmente desenhar, planear e construir um bloco de apartamentos, mas a criação de um novo conceito de vida para um determinado bairro exigirá sempre a competência, visão e criatividade de um arquitecto de carne e osso.

A percepção e compreensão dos contextos sociais e culturais é outra área na qual os humanos sempre excederão os computadores. Rob Miller, investigador e professor no MIT , explica bem esta competência tão exclusivamente humana num artigo publicado na revista Fast Company: “as pessoas estão constantemente a inventar novas gírias, a comentar os últimos vídeos virais eos mais recentes filmes, ou a participar em conjunto num qualquer fenómeno cultural. E isso será algo que nenhum algoritmo poderá algum dia fazer”, afirma. Mas o que é mais interessante no pensamento deste investigador do MIT é exactamente a forma como antevê a disrupção de que tanto se fala: uma revolução “crowd computing” que faça dos trabalhadores e das máquinas colegas e não concorrentes. Sem ir tão longe quanto os defensores do “transhumanismo” – o movimento cultural e intelectual que acredita que podemos e devemos “melhorar” a condição humana através da utilização de tecnologias avançadas e cujo expoente máximo reside numa espécie de fusão homem-máquina – Miller considera que a relação entre humanos e máquinas pode ser eficazmente simbiótica, em particular se soubermos retirar o melhor dos proveitos de ambas as “inteligências”.

A lista de traços exclusivos à inteligência humana é, obviamente longa, e com significados e prioridades diferentes para cada especialista que a pretende elencar. Mas existem particularmente três qualidades humanas que, para muitos dos observadores desta área, nunca poderão vir a ser a substituídas no ambiente laboral e, consequentemente, na economia do futuro, por mais avançada que se torne a inteligência artificial: a experiência, os valores e a capacidade crítica ou de julgamento.

Em 2015, na MIT Sloan Initiative on Digital Economy, esta temática foi amplamente explorada, em particular devido ao sucesso do livro “The Second Machine Age”, sobre o qual o VER escreveu e que foi considerado, na altura, como um dos livros mais emblemáticos do ano de 2014. Entre um conjunto apaixonante de variadíssimos temas, os autores analisaram também a questão que continua a servir de base para muitos dos trabalhos que se têm feito nesta área: se a tecnologia digital vai complementar ou, ao invés, substituir as capacidades humanas e, no caminho, remover a necessidade de milhares de milhões de empregos.

[quote_center]A relação entre humanos e máquinas pode ser eficazmente simbiótica, em particular se soubermos retirar o melhor dos proveitos de ambas as “inteligências”[/quote_center]

Em discussão acesa na iniciativa promovida pela MIT Sloan, foram muitos os participantes que defenderam não ser possível confundir a capacidade de processamento (por mais “astronómica” que a mesma seja) com inteligência. Um ser inteligente tem ao seu dispor o livre arbítrio e a capacidade de escolha. Por sua vez, a capacidade de tomar decisões tem como base um conjunto de informação adquirida que nos confere também a possibilidade de fazermos julgamentos e pensarmos de forma crítica, na medida em que também somos dotados de um sistema de valores.

Todavia, e quando pensamos no que nos diferencia enquanto humanos, enquanto seres vivos que pensam, há que ir ainda mais longe que isto: não é só a inteligência necessária para tomarmos decisões com base no conhecimento que temos tendo em conta um conjunto de critérios e objectivos que nos define enquanto espécie, mas o desejo ou a vontade de escolhermos esses mesmos critérios e objectivos baseados nos valores que adquirimos através da experiência e da empatia, as quais têm origem exactamente na partilha desses valores e experiências com os outros humanos. Ou seja, talvez a melhor forma de não sermos substituídos no trabalho que fazemos pelas máquinas, resida na capacidade de sermos o mais humanos possível.

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