Já dizia o filósofo que errar é humano. E agora são dois psicólogos que, depois de uma pesquisa realizada ao longo de sete anos, garantem que o carácter não é algo tão linear quanto julgamos. Pelo contrário, depende do contexto situacional e do equilíbrio entre recompensas de curto e longo prazo. Strauss-Khan que o diga? Polémico q.b., o presente estudo não julga a moralidade, mas pode ajudar a compreender melhor os nossos erros. E também os dos outros
POR HELENA OLIVEIRA

A dicotomia entre o bem e o mal é tão antiga quanto a própria história da humanidade. E se é comum que todos nós reconheçamos que estes dois conceitos não podem ser definidos simplesmente como preto ou branco, a verdade é que também nos é incutido que aquilo que denominamos como “carácter” consiste num comportamento moral que não sofre alterações ao longo da vida.

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Habituamo-nos a rotular as pessoas como morais ou imorais, como detentoras de bons ou maus caracteres. Mas uma nova pesquisa, feita ao longo de sete anos e com cerca de dois mil indivíduos, lança agora uma nova luz sobre esta dualidade, argumentando que, afinal, o mundo não está povoado apenas de santos e pecadores mas, que na verdade, todos temos o bem e o mal dentro de nós. “Elementar”, poderá considerar o leitor. Mas não linear.

Em “Out of Character: Surprising Truths about the Liar, Cheat, Sinner (and Saint) Lurking in All of Us”, os responsáveis pelo estudo agora publicado em livro, David DeSteno e Piercarlo Valdesolo, argumentam que a visão tradicional que temos do carácter – ilustrada comummente pelo anjinho e diabinho alojados nos nossos ombros e cuja “voz” de um ou de outro escolhemos ouvir – está plenamente errada. Em termos neuronais e para estes dois investigadores, o carácter é um produto em flutuação constante devido a impulsos beligerantes no cérebro, sendo que uma das “facções” se concentra em recompensas de curto prazo e a outra nas de longo curso. Ou seja, em termos muitos gerais, esta guerra não tem necessariamente a ver com os conceitos de bem e de mal, mas sim com a situação ou com o momento em causa.

Obviamente que tal não significa que o carácter não existe ou que é uma mera abstracção. Mas quando nos chocamos quando um político ou uma celebridade comete um erro ou quando nos limitamos a catalogar as pessoas como boas ou más é, para os investigadores, uma má interpretação da forma como todo o sistema funciona.

Aproveitando o alegado mau comportamento do director geral do FMI, o VER, obviamente sem qualquer julgamento, quis mergulhar nesta temática e descobrir se, afinal, existe um vilão e um herói em cada um de nós. E o que a ciência pode revelar sobre o nosso carácter pode ser surpreendente. Para o bem e para o mal.

A ocasião pode fazer o ladrão
Derivado da palavra grega charaktêr, o termo “carácter” foi originalmente utilizado como uma “marca gravada ou sulcada” numa moeda. Mais tarde, foi metaforicamente usado como “marca, impressão ou símbolo na alma”. Ou seja, assim que o carácter fosse “gravado” nas nossas mentes, assumia-se que este era algo fixo e estanque.

Ora, de acordo com os investigadores, a ciência moderna mostra repetidamente que este não é o caso. Como os autores discutem no seu livro, o comportamento moral de toda a gente é muito mais variável do que qualquer um de nós poderia sequer imaginar. “O carácter não é algo que possa simplesmente ser ‘ensinado’ a partir de uma estratégia de fornecimento de regras e de (bons) exemplos”, afirma DeSteno numa entrevista que concedeu à revista Scientific American. E acrescenta que não basta dizer a alguém que deve ser bom, que não deve roubar e assumir que essa pessoa seja capaz de fazer o bem apenas confiando na sua força de vontade.

Para o investigador, a educação moral tem de ter como base um conjunto de competências, e os pais deverão dizer aos seus filhos “não só qual é o objectivo, mas também como lá chegar, ou seja, que ‘partidas’ poderão as suas mentes lhes pregar e que estratégias devem estes utilizar para ‘convencer’ o seu carácter a mover-se na direcção adequada”. É que aqui a questão não é “você é uma boa pessoa no geral?”, mas sim “você é uma boa pessoa neste momento em particular?”.

É este contexto situacional que os autores defendem como uma das suas grandes “certezas”, ou seja, que o nosso comportamento moral é moldado pelo contexto em que nos encontramos em determinado momento.

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Ao longo da última década, o Social Emotions Lab, onde ambos os investigadores trabalham [na Northwestern University] observou de que forma as alterações nos estados emocionais, muitas vezes derivadas de factores extremamente subtis no ambiente de cada um, podem levar pessoas a agir de maneiras nunca por eles esperadas: serem hipócritas, mentirem, enganarem, mas também mostrarem compaixão, simpatia ou orgulho.

De acordo com a sua longa investigação, os cientistas afirmam que ao estudarem os factores que moldam o carácter – que, para a maioria das pessoas, “voam” abaixo do seu radar de consciência – a sua maior descoberta foi, como já mencionado, o facto de a ideia que as pessoas têm sobre o carácter partir de pressupostos errados.

Numa outra entrevista concedida ao USA Today, DeSteno explica o seu ponto de vista. “ A maioria das pessoas percepciona o carácter como algo que é formado durante a infância [aludindo mais uma vez às vozes dos anjinhos e diabinhos que ouvimos e que optamos por seguir] e que, a partir da altura em que o ‘lado’ é escolhido, o carácter está estabelecido e assim continuará para o resto da vida”, diz, acrescentando contudo que este é resultado de um processo muito mais dinâmico e que não é, de todo, fixo.

“Existe uma tensão inerente na mente, tanto ao nível consciente como inconsciente, entre os desejos para objectivos de curto e longo prazo”. Ou seja, para explicar o seu argumento, o investigador pede que não se pense na distinção entre o bem e o mal mas, ao invés, em coisas que “me servem bem no curto prazo ou que me podem servir melhor a longo prazo”. E é no equilíbrio destas duas variáveis que o nosso carácter pode ser afectado, o que significa que cada um de nós pode ter acessos de “mau carácter” mais vezes do que julgaríamos possível.

O estudo do vício e da virtude
Na investigação de DeSteno e Valdesolo, os sujeitos foram colocados em ambientes extremamente controlados. A ideia era conseguirem manipular certas características desses ambientes para perceberem como os indivíduos do estudo reagiriam no que respeita a decisões ou comportamentos. Por exemplo, alterando a quantidade de tempo que lhes era dada para tomar uma decisão ou colocá-los em situações nas quais eles pensariam estar a agir anonimamente, mas em que os investigadores lhes ofereciam algum tipo de tentações para saberem quais as que eram ou não aceites por estes.

Ou seja, em vez de afirmarem “Eu penso que as pessoas são boas porque têm uma tendência inerente para tal”, os investigadores tentaram perceber mediante que condições as pessoas agem de forma virtuosa e sob que condições podem alterar as situações que os levam a ser muito menos virtuosos do que alguma vez tinham antecipado.

Se os autores tivessem esperado mais um ou dois meses para lançar os resultados do seu estudo, poderiam perfeitamente ter incluído o actualmente tão falado Dominique Strauss-Khan nos exemplos que escolheram para ilustrar o seu livro. Mas os que figuram no mesmo dão uma ideia do que os autores querem argumentar. É o caso do ex-governador da Carolina do Sul, Mark Sanford, que o público considerava como extremamente honesto e um verdadeiro homem de família, que se viu envolvido num escândalo sexual e que levou a generalidade das pessoas a apelidarem-no como o “lobo com pele de cordeiro”. Mas e sem fazer quaisquer tipos de juízos de valor, o que os autores pretendem dizer é que um “acto mau” não deverá condenar ninguém ou marcar uma pessoa como detentora de um “carácter deficiente”. É que, de forma similar, pessoas que já foram consideradas como “más” podem agir bem e vice-versa. Para os autores, ninguém está livre de ter altos e baixos e de ter tanto vícios como virtudes. Outros exemplos de personalidades que constam do livro são Tiger Woods, o antigo governador de Nova Iorque, Eliot Spitzer e o actor Mel Gibson. Fora desta categoria encontram-se, obviamente, aqueles com patologias assumidas, de que são exemplo Hitler ou o recentemente abatido Bin Laden.

Quando o contexto situacional se mostra tão importante para o nosso carácter, esteja acima ou abaixo do tal radar de consciência e se fala dos mecanismos de curto e longo prazo, é natural que uma questão aflore à nossa mente: todas estas “provas científicas” parecem reduzir as pessoas, como a própria moralidade, a um mecanismo. Isso significa então que não somos responsáveis pelos nossos actos?

“Não, de todo”, responde categoricamente DeSteno. “O que a nossa investigação mostra é que o carácter não tem somente a ver com a chamada força de vontade, mas  tal não implica que devemos ser absolvidos das responsabilidades que temos para com os outros”, diz. “Ao invés, significa que temos de aceitar que o nosso comportamento moral não é inteiramente dirigido pelas nossas intenções, apesar de poder ser geralmente controlado, desde que percebamos como o sistema funciona na verdade”, acrescenta.

Sem pretenderem ditar moralidade para ninguém – que depende e sempre dependerá da decisão de cada um com base nas suas crenças, filosofia ou religião – o objectivo é dar a conhecer o funcionamento deste “sistema” e, ao faze-lo, aumentar a nossa capacidade de o orientar para a direcção adequada. E isso ajudar-nos-á a compreender melhor o nosso próprio comportamento. E também o dos outros.

Se pretender saber mais sobre esta pesquisa, assista a esta prelecção em:
http://www.youtube.com/watch?v=PODCD7iUem4&feature=relmfu

https://ver.pt/Lists/docLibraryT/Attachments/1208/hp_20110518_SantosEpecadores.jpg

Editora Executiva