Na cadeia de valor da inovação, Portugal tem um perfil ‘desperdiçador’ que revela falta de capacidade para transformar o seu potencial em resultados concretos com impacto económico-social. Em entrevista, o director geral da COTEC Portugal, Daniel Bessa, traça o retrato de um sistema que se debate com a ineficácia e fraca produtividade, e aponta o caminho: “melhorar processos e adoptar uma atitude de rigor e exigência”
POR GABRIELA COSTA

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Perante o desempenho de Portugal na generalidade dos rankings de inovação, que se caracteriza por piorar à medida que avançamos de montante para jusante na “cadeia de valor da inovação”, o professor e director geral da COTEC Portugal defende que o sistema português de inovação precisa de superar o problema de eficiência e de produtividade com que se debate. Frontal, Daniel Bessa diz que aprendeu a valorizar “mais do que o programa, a capacidade de execução de quem tem de o implementar”, o que obriga muitas vezes “a ter também alguma capacidade para enfrentar interesses instalados”.

Hoje “não há comunicação que nos valha se não puder ser suportada por resultados concretos”, e não é o reconhecimento do “carácter estratégico” do empreendedorismo ou da inovação que vai contribuir para criar emprego em Portugal nos próximos anos, alerta. Até porque “estratégico é algo feito com tempo e perseverança, para que possa produzir resultados a médio e a longo prazo”, esclarece.

Quanto à necessidade de reforçar a ligação entre meio académico (concretamente Universidades, nas suas competências de I&D) e meio empresarial, para consolidar projectos inovadores de uma forma sustentável, o director geral da COTEC Portugal acredita que a maior batalha será conseguir o empenho “de todos para que se crie um sistema de informação consistente, de base quantitativa, que nos ajude a saber do que é que estamos a falar: quantas patentes e quanto valor criado pelas mesmas; quanto valor criado através de contratos de cedência de tecnologia não proprietária; quantas empresas criadas e com que capitais; quantos postos de trabalho criados e com que salários médios; quantas vendas efectuadas; quanto valor acrescentado. E remata:  “sem esta informação presente de forma inteiramente transparente, para mim, não haverá mais casos de sucesso”.

Qual é o estado da inovação em Portugal, de acordo com a opinião do Painel de Líderes que integra o Barómetro de Inovação da COTEC Portugal e na sua visão enquanto especialista em boas práticas de gestão?
A última iteração do Painel de Líderes que integra o Barómetro de Inovação da COTEC Portugal ocorreu no final de 2011 (repetiremos o exercício agora, no final de 2012). A classificação atribuída foi de 4,16 numa escala de 1 a 7 – um suficiente muito fraquinho. Nove dos dezoito respondentes atribuíram uma classificação de 5, na já referida escala de 1 a 7, tendo a média ficado abaixo desta moda “avassaladora” pelo facto de todos os respondentes que dela se afastaram terem atribuído classificações inferiores, de 4, 3 e mesmo 2 (esta, num único caso).

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© COTEC Portugal
Daniel Bessa, director geral da
COTEC Portugal
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Segundo a avaliação da COTEC, Portugal tem um perfil ‘desperdiçador’ que revela falta de capacidade para transformar o potencial de inovação em resultados concretos com impacto económico-social. Não obstante, a inovação portuguesa tem talento e originalidade. O que falta então, para se tornar competitiva?
O desempenho de Portugal na generalidade dos rankings de inovação caracteriza-se, de facto, por piorar à medida que avançamos de montante para jusante no que poderíamos considerar uma “cadeia de valor da inovação”: pontuamos melhor em matéria de condições e de recursos de que dispomos, e que afectamos à inovação, do que nos resultados que conseguimos, nomeadamente na frente económica (número e qualidade dos empregos criados; salário médio dos novos empregos criados; intensidade tecnológica das exportações de mercadorias; intensidade em conhecimento das exportações de serviços, para referir apenas alguns dos mais importantes).

Ou seja: o sistema português de inovação debate-se com um problema de eficiência e de produtividade, que teremos de superar, melhorando a nossa forma de trabalhar (os nossos processos), e enquadrando tudo isso com uma atitude geral de maior rigor, e de maior exigência.

A nível de apoios estatais, que leitura faz do Programa Estratégico Mais Empreendedorismo, Mais Inovação (que, como já sublinhou, estabelece um elevado nível de sinergia com as iniciativas do sector privado, mas peca pela ausência de um plano de acção concreto), e do Sistema de Incentivos Fiscais à Inovação e Desenvolvimento Empresarial (que se mantém, alargando os benefícios às PME)? Que importância tem a manutenção dos apoios financeiros do QREN à inovação e I&D, para o crescimento da inovação em Portugal?
Se alguma coisa caracteriza a situação do nosso País, nos últimos tempos, nomeadamente em matéria de finanças públicas, é a redução do volume de recursos afectos a múltiplas funções do Estado. É o caso do SIFIDE, onde se observou algum recuo no que chegou a ser um dos sistemas de incentivos à I&D empresarial mais generosos do mundo (embora me seja grato mencionar a tendência para uma discriminação positiva das PME e das start-ups, procurando “abrigá-las” o mais possível face a esta tendência de recuo).

A mesma falta de recursos condiciona o mais recente destes programas, o “+E, +I”, em que, de qualquer modo, me permito assinalar a abordagem integrada do processo de inovação e empreendedorismo, e a procura de uma complementaridade acrescida entre as iniciativas do sector público e do sector privado neste domínio. Tanto quanto sei, o QREN, nomeadamente na vertente de apoio financeiro à inovação empresarial, será, de todos estes programas, o menos afectado pelas restrições financeiras a que comecei por aludir.

Na sua opinião, em que medida é o desenvolvimento deste sector (Inovação e Empreendedorismo) estratégico para a geração de emprego no País, nomeadamente entre os jovens (geração atingida por uma taxa de desemprego superior a 35%)?
Estratégico significa que é muito importante. Significa também, normalmente, que é algo que tem de ser feito com tempo, de forma planeada e com perseverança, para que possa produzir resultados a médio e a longo prazo. Em que é que esta atenção acrescida pelo empreendedorismo e pela inovação, e o reconhecimento do seu carácter estratégico, vão contribuir para criar emprego em Portugal nos próximos um, dois, três anos? Muito pouco.

Portugal reúne alguns centros de excelência e incubadoras que são casos de sucesso. Que necessidade existe, na sua perspectiva, de reforçar a ligação entre meio académico (concretamente Universidades, nas suas competências de I&D) e meio empresarial, para a consolidação de projectos inovadores de uma forma sustentável? Que políticas públicas de incentivo deveriam existir, para que tal aconteça?
A batalha maior em que, nesta matéria, julgo que todos teremos de nos empenhar é que se crie um sistema de informação consistente, de base quantitativa, que nos ajude a saber de que é que estamos a falar: quantas patentes (nacionais, europeias, triádicas); quanto valor criado com essas patentes (seja por venda seja por licenciamento); quanto valor criado através de contratos de cedência de tecnologia não proprietária; quantas empresas criadas e com que capitais, próprios e alheios; quantos postos de trabalho criados e com que salários médios; quantas vendas efectuadas, nomeadamente em mercados externos; quanto valor acrescentado; com que rentabilidade e com que solidez financeira, etc., etc.

Portugal tem uma máquina fiscal e um sistema judicial deficientes, dois dos factores determinantes para a localização de investimentos .
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Com estes números na frente (para Universidades, para Institutos Politécnicos, para incubadoras, para parques de ciência e de tecnologia, etc., etc.), poderei começar a discutir desempenhos, e a pronunciar-me sobre casos de sucesso. Sem esta informação presente, de forma inteiramente transparente, para mim, não haverá mais casos de sucesso.

Trata-se, se preferirmos, de uma indústria. E nenhuma indústria poderá almejar qualquer tipo de reconhecimento público se ela própria não se organizar no sentido de produzir uma informação pública consistente e credível sobre as actividades que desenvolve.

As actuais condições macroeconómicas são muito desfavoráveis ao empreendedorismo, que tem custos elevados relativamente à produtividade. Mesmo num contexto de agravamento dos impostos, dificuldade na obtenção de crédito e retracção do consumo, acredita que a crise, se encarada como uma oportunidade, pode funcionar como catalisador de novos negócios para novos mercados?
Dizer que a crise tem uma componente de oportunidade é um lugar comum. É também uma verdade. Em matéria de mercado, as empresas que se orientam para os mercados externos parecem estar em condições mais favoráveis do que as que se encontram inteiramente dependentes dos mercados internos – verdadeiramente “o lugar do morto”, sobretudo em actividades muito dependentes do gasto público, ou muito dependentes do consumo mais discricionário (automóveis e outros bens de consumo duradouro, por exemplo), ou em áreas em que se observará um downsizing muito expressivo (construção e obras públicas, por exemplo).

Há também a questão do financiamento, que pode prejudicar empresas com mercado, e rentáveis – bastando, para o efeito, que não se apresentem com balanços suficientemente sólidos. Dito isto, sei “de ciência certa” que há muitas empresas portuguesas que estão a crescer, e a crescer bem, de todos os pontos de vista – residindo a nossa única esperança em que se alargue, muito, o número e a dimensão destas empresas.

Quais são as consequências mais visíveis da austeridade no processo de inovação no nosso País? Concorda que as políticas de austeridade são hoje o principal constrangimento ao desenvolvimento da inovação, nomeadamente porque “estão a sufocar os centros de formação de saber”?
A consequência mais visível é a escassez de meios financeiros. O que espero, nestas condições, é que esses meios financeiros passem a ser melhor geridos: por exemplo, em matéria de investigação aplicada, acharei sempre melhor que se financie a procura (das empresas, que se dirigirão aos centros de I&D, solicitando serviços sempre mais próximos do mercado e da criação de valor) do que se financie directamente a oferta (atribuindo o dinheiro aos centros de I&D, muitas vezes para actividades muito longe do mercado e da efectiva criação de valor económico).

No que se refere aos “centros de formação de saber”, acredito que muitos deles, antes de se deixarem “sufocar”, saberão encontrar novas áreas de actividade e de obtenção de receitas, e novos clientes. Nada disto que acabei de expor se aplica, como é evidente, aos centros de investigação de carácter mais fundamental, onde, num país como Portugal, o financiamento público directo das actividades continuará a ser determinante.

Para se tornar atractivo aos olhos dos investidores estrangeiros, Portugal tem de evoluir, criando uma máquina fiscal eficiente e um sistema judicial eficaz. Quais são as condicionantes, por um lado, e as ferramentas possíveis, por outro, para valorizar o País como destino para novos negócios?
Como afirma, e bem, tanto a máquina fiscal como o sistema judicial são hoje dois dos factores mais importantes em matéria de localização de investimentos – e em que, infelizmente, Portugal apresenta um desempenho bastante deficiente. Habituei-me, nestas matérias, a ser um utilizador regular dos rankings de competitividade elaborados por instituições como, por exemplo, o World Economic Forum – se virmos o que aí se diz sobre Portugal, e sobre a nossa competitividade enquanto país capaz de atrair investimento, está lá tudo, podendo perfeitamente constituir a base de um programa de Governo nestas matérias (refiro-me a matérias económicas, e não a matérias sociais, ou políticas e de cidadania, onde haverá certamente muitos outro aspectos a considerar).

Com o decorrer do tempo, aprendi a valorizar também, mais do que o programa, a capacidade de execução de quem tem de o implementar, obrigando, as mais das vezes, a ter também alguma capacidade de enfrentar interesses instalados – veja-se, por exemplo, a dificuldade com que depara a implementação de uma reforma sobre um assunto apesar de tudo tão circunscrito, como é o caso do mapa judiciário.

Houve tempos em que apostámos muito na área da comunicação. Hoje, penso que não há comunicação que nos valha se não puder ser suportada por resultados concretos, que evidenciem uma efectiva capacidade de concretização, em domínios escolhidos de forma quase cirúrgica: não tanto pela sua dimensão, ou pela sua vastidão, mas pelo obstáculo que efectivamente constituem ao bom funcionamento de tudo o resto. Tudo o que se relacione com Administração Pública, em particular com o Fisco e com os Tribunais, reveste-se, deste ponto de vista, da maior importância.