A atividade “Retaliação: narrativas que fazem a diferença” pretendeu familiarizar os membros do Fórum de Ética da Católica Porto Business School com metodologias narrativas que abrem espaços seguros para discussão de questões éticas, aumentam a sensibilidade ética e podem contribuir para prevenir conflitos. Para além disso, abriu também espaço à reflexão sobre os significados associados ao tema em debate – a retaliação -, cuja complexidade e delicadeza exigem uma abordagem inovadora e criativa
POR HELENA GONÇALVES e SUSANA MAGALHÃES

A interrogação relativa à legitimidade do conhecimento exige a reflexão sobre práticas e rotinas, termos e conceitos, que fundamente a modificação ou a consolidação de modos de ser e de agir. Esta prática reflexiva implica uma dinâmica em espiral que se inicia com a Atenção/Criatividade, passando pela Representação e permitindo a Afiliação/Reconciliação1 entre os vários membros das organizações. A narrativa requer abertura à mudança, curiosidade, capacidade de avançar e de recuar no fio do enredo de modo a apreender o sentido da história no seu todo.

Através da prática de leitura atenta (close reading) de textos literários e de narrativas reais, é possível promover a interpretação, a representação e a imaginação necessárias à Relação, entendida como o pilar do pensamento ético. Por outro lado, as narrativas literárias e reais, com as suas categorias de Tempo, Espaço, Voz, Personagens e Enredo, permitem-nos ensaiar modos de integrar e de interpretar tais categorias no âmbito de diferentes contextos profissionais. As normas e os protocolos focados na construção de um ambiente ético nas organizações carecem de releituras que lhes permitam ganhar corpo na rotina profissional.

Em resumo, diríamos que as atividades com recurso a ferramentas e metodologias narrativas servem dois propósitos:

  • Repensar práticas e termos, consciencializando-nos do modo como atos e palavras modelam o comportamento ético;
  • Criar clareiras de criatividade que respondam à necessidade urgente e persistente de humanizarmos o tempo e o espaço nos lugares de Relação.

A última sessão do Fórum de Ética da Católica Porto Business School foi dinamizada com base neste tipo de recursos narrativos. Pela sua inovação e importância, partilhamos aqui o modo como esta sessão decorreu, para potenciar reflexão adicional a todos os Membros, mas também para partilha com a comunidade.

A atividade “Retaliação: narrativas que fazem a diferença” pretendeu familiarizar os membros do Fórum com metodologias narrativas que abrem espaços seguros para discussão de questões éticas, aumentam a sensibilidade ética e podem contribuir para prevenir conflitos. Para além disso, abriu também espaço à reflexão sobre os significados associados ao tema em debate – a retaliação -, cuja complexidade e delicadeza exigem uma abordagem inovadora e criativa.

A recente Lei 93/2021 sobre proteção de denunciantes, que exige a criação ou adaptação de canais de denúncia internos (whistleblowing) em organizações com 50 ou mais trabalhadores, fez emergir, definitivamente, o tema da retaliação, não só como um assunto de compliance mas sobretudo como um assunto da área da ética das organizações. E porquê?

Na verdade, não basta implementar um eficiente canal de denúncias, mesmo que em completa conformidade regulamentar. É preciso algo muito mais difícil, é preciso (saber) identificar o risco de retaliação, ao que acresce agora, por via legal, o risco de denúncia externa, caso o denunciante considere que há, entre outros, risco de retaliação interna. E há, comprovadamente, um enorme risco de retaliação interna! A retaliação foi, e continua a ser, uma fonte de preocupação, a nível global, mesmo em organizações com sistemas eficientes de gestão e reporte do desempenho ético.

E o que é a retaliação? De acordo com a referida lei, é o ato ou omissão (incluindo ameaças e tentativas) que, direta ou indiretamente, ocorrendo em contexto profissional e motivado por uma denúncia interna, externa ou divulgação pública, cause ou possa causar ao denunciante, de modo injustificado, danos patrimoniais ou não patrimoniais.

E qual a extensão e as formas de retaliação?

No estudo trienal “Ethics at Work2” do IBE, efetuado em 2021 a 13 países, incluindo Portugal, 43% dos trabalhadores afirmaram já ter sentido retaliação, sendo que os mais jovens e os que tem cargos de gestão sentiram-se ainda mais afetados, cerca de 10 p.p. acima em ambas as categorias.

No Global Business Ethics Survey3, os valores são ainda mais alarmantes, com crescimento do valor médio global de 41% em 2015 para 61% em 2020.

Numa análise funcional, verificou-se que a retaliação, nos EUA, afetou 80% dos gestores de topo e intermédios, 60% dos supervisores e 40% dos não gestores.

Em 20203, os atos de retaliação mais frequentemente experienciados por quem denunciou foram: ser intencionalmente ignorado por colegas (25%) e por supervisores (22%); atribuição de trabalho adverso (23%); avaliação do desempenho baixa (21%); insultos por supervisores ou gestores (18%) e por colegas (18%); exclusão de participação em decisões e/ou atividades laborais (16%). Num outro estudo baseado em entrevistas em profundidade a 72 ex-denunciantes4, destaca-se alguns efeitos “traumáticos e traiçoeiros” das denúncias: marginalização (78%), contra-acusações (76%), assédio (60%) e desvalorização (60%), designadamente com avaliações de desempenho mais baixas e negação de promoções.

Mas é sabido que cada um pode percecionar, testemunhar ou sentir retaliação de formas muito diferentes, independentemente de a denunciar ou não, e que a segurança psicológica5 em ambientes de trabalho híbrido terá que ser, agora, repensada.

É, por isso, crucial ir mais fundo, dar a conhecer o que se passa na nossa interioridade, promover a experiência de narrar e ser escutado, sentindo que as narrativas contam. Nesta sessão, o processo narrativo começou com a seleção individual de imagens sobre retaliação, seguida da partilha voluntária quer da imagem escolhida quer da sua interpretação. Trata-se de um movimento introspetivo que desagua num momento de partilha capaz de promover outras reflexões, que poderão certamente ter impacto no ambiente ético das organizações. De modo a ilustrar este processo, partilhamos algumas imagens legendadas que foram propostas.

 

ESPIRAL IRREGULAR (em movimento): sabemos onde começa, desconhecemos que rumo leva, o que arrasta consigo, que dimensão pode tomar, quando termina e que estragos deixa.

 

 

TRAVESSIA DO DESERTO: o deserto, geralmente associado ao vazio, ao isolamento e à solidão, é também um local de travessia, de passagem e de transformação (superação).

 

 

 

 

LIBERTAÇÃO: depois da denúncia segura da retaliação, a libertaçã.

 

 

 

Há propostas de imagens que ficaram sem legenda, pelo que convidamos os nossos leitores a ser coautores desta atividade, escrevendo as legendas em falta para alguma das seguintes imagens ou para outra que queiram sugerir (enviar para: [email protected])

Buraco negro / Prisão psicológica
  • Abismo
  • Camisa de forças
  • Cavaleiro branco, cavalo branco e mancha vermelha
  • Espiral
  • Exílio
  • Inferno
  • Pessoa isolada que atravessa um rio gelado
  • Porta que bate com toda a força
  • Sombra
  • Teia de aranha
  • Vórtice
  • ?

  1. Rita Charon. 2005. Narrative medicine: attention, representation, affiliation. Narrative 13, no. 3, pp. 261–70.
  2. Explore the Detail | Institute of Business Ethics – IBE
  3. 2021 Global Business Ethics Survey – Ethics and Compliance Initiative
  4. Diagnosing Retaliation: The Traumatizing and Insidious Effects of Whistleblowing (whistleblowersblog.org)
  5. What Psychological Safety Looks Like in a Hybrid Workplace (hbr.org)
Helena Gonçalves

Helena Gonçalves é coordenadora do Fórum de Ética da Católica Porto Business School

Susana Magalhães

Responsável pela Unidade de Conduta Responsável em Investigação do i3S - Instituto de Investigação e Inovação em Saúde