Num encontro improvável, as perspectivas económica e humana sobre a crise e o desemprego em Portugal sentaram-se à mesa, e conversaram. Para o Governador do Banco de Portugal, “não se pode encarar o desemprego em Portugal sem questionar a qualidade e a vitalidade do tecido empresarial”. Para o Patriarca de Lisboa, “o trabalho é hoje uma questão de sobrevivência”, mas sem “uma perspectivação antropológica da crise, não se chega a lado nenhum que à humanidade interesse”
POR GABRIELA COSTA

O encerramento da conferência “O Trabalho e o Emprego em Portugal” constituiu uma oportunidade de reflexão em nada fácil, que colocou em perspectiva as dimensões económica e humana da crise global e do actual estado do mundo capitalista em que Portugal se move, reunindo a análise – à primeira vista antagónica, mas afinal complementar – do Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, e do Governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, de uma visão humanista e outra economicista sobre o flagelo do desemprego e os desafios do mercado de trabalho.

Tomemos como ponto de partida que os efeitos do desemprego ultrapassam em muito os factores económicos, surtindo repercussões negativas profundas no desenvolvimento humano, para o qual o trabalho é fundamental.

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Pronunciando-se em nome “das preocupações do Governador face ao futuro do País e dos portugueses” sobre uma temática que “não faz parte” das competências do Banco de Portugal, Carlos Costa sublinha que estamos diante de um problema que, “temos de ter consciência, se coloca quer do lado da oferta quer do da procura. É necessário olhar para o que se passa do lado da criação de postos de trabalho”. E, diz, desse lado, o das empresas, “a economia está sujeita a quatro factores, uns cuja dinâmica está em fase de exaustão, outros que são operativos e vão continuar a sê-lo para a criação de emprego”.

Um primeiro factor, que está em fase de exaustão, tem a ver com o facto de termos desenvolvido uma estrutura produtiva determinada por um desequilíbrio da procura, alimentado pelo endividamento. E “quando chegou o momento do endividamento, este impôs uma contracção da procura e, como consequência, a contracção da oferta de trabalho” em várias áreas, como a construção, obras públicas e serviços, explica Carlos Costa. “Temos de ter consciência de que esses postos de trabalho foram perdidos”. E que em alguns casos não vão ser recuperados, até porque “pertenciam a sectores onde já estamos sobredotados”, diz, como o das infra-estruturas “e mesmo o da habitação”.

O segundo ajustamento que está em curso, “mas que felizmente não tem a dimensão que teria, graças à dinâmica do sector exportador”, é um ajustamento cíclico, aponta: devido à crise internacional, a procura sofre um impacto cíclico. Só que este impacto, no caso português, não pode ser enumerado “como ponto principal de explicação para a actual situação: primeiro, porque as empresas portuguesas foram capazes de aumentar quotas de mercado num período de contracção da procura (e de estagnação da procura externa); segundo, porque o ajustamento da procura doméstica foi determinado por factores estruturais, e não por factores cíclicos”, esquematiza.

Somam-se a estas tendências dois outros factores “que estão operantes”, e que se relacionam com a globalização com a transformação tecnológica. Relativamente ao primeiro, se a globalização “tem imposto às empresas portuguesas ganhos de produtividade”, certo é que “as empresas que estão neste momento no sector exportador só conseguirão criar postos de trabalho se crescerem, porque face à dimensão que têm hoje, a tendência será para que se destruam postos de trabalho”, explica o Governador do Banco de Portugal, explicitando que, neste contexto, o termo destruir deve ser entendido no sentido de aumentar a produtividade e introduzir novos equipamentos.

Existe uma polarização extrema do mercado de trabalho a nível de qualificações, e “há no meio um deserto onde se gera o desemprego” – Carlos Costa

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Finalmente, o último factor a que a economia está actualmente sujeita é “o fenómeno que se está a gerar de automação de actividades e de funções intermédias na cadeia de valor”. Trata-se de uma tendência “muito mais profunda, que obriga a economia portuguesa a assumi-la tendo em conta a adaptação à economia internacional e também que é uma pequena economia”, esclarece Carlos Costa.

E que obriga a que se olhe para o mercado de trabalho. O qual se divide hoje, essencialmente, “entre actividades pouco qualificadas e muito qualificadas”. Isto porque as actividades intermédias, “que implicavam algum conteúdo cognitivo, estão cada vez mais a ser tomadas pela automação, conclui. E têm de se retirar duas consequências desta realidade: por um lado, existe uma polarização extrema do mercado de trabalho a nível de qualificações, e por outro, “há no meio um vazio, um deserto onde se vai gerar desemprego e desclassificação”. Com “muitas implicações do ponto de vista social e de coesão”, pois tal facto “significa uma forte pressão sobre a classe media”, considera ainda.

Na opinião do Governador, “vamos ter um problema de requalificação na zona intermédia”. Devemos por isso “antecipar, dento do nosso sistema de formação e do nosso modelo de especialização, esta própria tendência”. De resto, Portugal é uma economia de serviços, recorda Carlos Costa, logo há muitas áreas que nunca serão totalmente automatizadas, como “os chamados serviços que têm conteúdo emocional, onde a presença humana é fundamental”. É o caso típico do turismo, embora como em qualquer outro sector, “uma parte será também abrangida por este processo de automação”, conclui.

“Quando morre uma empresa morre muito mais”
Para o Governador do Banco de Portugal, a primeira questão que se coloca a quem pensa o problema do emprego é como é que se criam postos de trabalho no sector empresarial transaccionável, para absorver as pessoas que estão neste momento no desemprego e as que vão entrar no mercado de trabalho. Em segundo lugar, há que perceber como é que “nos vamos posicionar no panorama de especialização internacional para fugir da zona de automação”, que será aquela onde vamos ter necessidade de nos ajustarmos.

Tudo isto coloca uma questão fundamental: “não se pode encarar o desemprego em Portugal sem nos questionarmos sobre a qualidade e a vitalidade do tecido empresarial”. Portanto, “temos que o dizer, o problema coloca-se do lado do potencial de emprego, mas também se coloca do lado da absorção desse potencial de emprego”, alerta Carlos Costa.

Sobre o potencial de emprego, o Governador salienta apenas “o desencontro nítido de percepções entre os fornecedores de formação, os formandos e os compradores de formação”, considerando que esse desencontro “é uma demonstração de ineficácia daquilo a que chamamos o sistema nacional de inovação (isto é, investigação, educação e formação profissional), e da relação destes três pólos com o sector empresarial”.

Quanto à capacidade de absorção de emprego, para Carlos Costa é preciso ter consciência de que temos, rapidamente, de aproveitar a capacidade instalada, onde ela existe de forma sobrevalorizada (hoje “muito mais no sector dos serviços do que no dos bens transaccionáveis”, diz).

Outra resolução urgente requer-se para a questão “da viabilização das empresas que são economicamente viáveis, mas que estão debaixo de um stress financeiro” (desde que sejam efectivamente viáveis), defende o Governador. No seu entender, esta questão é muito importante, na medida em que Portugal não tem “esquemas rápidos de resolução de problemas sobre stress financeiro de empresas que são economicamente viáveis”.

“A dimensão humana do trabalho nem sempre é tratada devidamente nas empresas” – D. Manuel Clemente

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E porque não? Por que “as empresas têm vários credores que dificilmente se entendem, têm um credor público que dificilmente coopera, têm credores que tentam sair do processo sem contribuir para a solução”, explica. Sucede que “simultaneamente todo este processo leva tanto tempo, que quando se encontra a solução já o doente está em fase terminal”. O tema é extremamente importante nesta fase de recuperação que estamos a iniciar, na perspectiva do Governador do Banco de Portugal, na medida em que “quando morre uma empresa morre muito mais do que uma empresa: perde-se todo um do capital social acumulado”.

O segundo ponto vital para a absorção de emprego, na análise de Carlos Costa diz respeito à necessidade de “as empresas que estão hoje a operar e bem (merecem um elogio) se reorganizarem para o futuro”. Contextualizando:as empresas portuguesas não têm dimensão suficiente, estão debaixo de um grande stress financeiro, como já referido, e padecem de organização. Vivem dentro de “um polígono vicioso” que, na visão do Governador, inclui falta de separação entre a propriedade e a gestão; falta de formação profissional; falta de dimensão (porque não têm capital para crescer e precisam de reforçar a sua capacidade de financiamento); em consequência deste último aspecto, falta de organização para terem áreas funcionais adequadas; e, também consequentemente, falta de capacidade para absorver conhecimento.

Neste âmbito, “é fundamental criar condições de absorção de conhecimento e de organização, que levem as empresas a passar para o patamar seguinte”. Estudos internacionais demonstram que em relação aos EUA a diferença de produtividade das empresas europeias, de cerca de um terço, se deve a uma menor qualidade da gestão. E na Europa, Portugal surge como um dos países piores classificados, nota Carlos Costa.

“Não há investimento sem ultrapassar os bloqueios estruturais das empresas”
Outra questão fundamental é o problema de sucessão geracional nas empresas. Segundo o Governador do Banco de Portugal, as empresas portuguesas “que estão hoje a levar este barco ao sucesso são empresas que estão na 2ª ou 3ª geração”. Dado que “não há transposição genética, temos de ser capazes de manter o empreendedorismo e a capacidade de gestão, conservando legitimamente o direito de propriedade”, explana Carlos Costa. E exemplifica: “conheço casos bem sucedidos de empresas na Europa que mantém a sua matriz familiar e conseguem distinguir as duas coisas”. Mas, para tanto, é preciso que os incentivos públicos não favoreçam a não separação destes dois aspectos, conclui.
Por outro lado, “é necessário regenerar o tecido produtivo com novas empresas”. Mas não para substituir as existentes, “que são necessárias”, esclarece Carlos Costa. Para se realizar tamanha obra, é necessário “reorientar todo o sistema nacional de inovação para o tecido empresarial e criar, dessa forma, uma ponte para o empreendedorismo”, explica. A tarefa não é fácil, “pois implica risco”, diz ainda, mas é crucial para o sistema produtivo. “Se não o fizermos não criaremos emprego, e manteremos sempre o problema de estarmos a ‘olhar para o lado’ da questão”.

O mercado de trabalho “padece da contribuição social dependente do Estado” e, face ao custo que as empresas “assumem para manter os postos de trabalho e, desta forma, garantirem o seu rendimento, passam a ter um ónus muito grande no ajustamento dos seus quadros”, bem como “uma grande rigidez”. O que significa que as empresas portuguesas têm muito mais dificuldade em reagir a alterações de mercado do que tem qualquer outra concorrente, por exemplo nórdica, remata o Governador.

Precisamos de reorientar todo o sistema nacional de inovação para o tecido empresarial e criar, dessa forma, uma ponte para o empreendedorismo – Carlos Costa

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Consequentemente, é preciso “repensar os mecanismos de garantia de rendimento e não fazer destes, mecanismos de cristalização de postos de trabalho”. O que traz outra consequência adversa, desenvolve Carlos Costa: “implica, no momento em que se passa um posto de trabalho temporário a posto de trabalho permanente, aceitar o custo adicional de não só favorecer um posto de trabalho para termo incerto mas, sobretudo, uma fonte de rendimento”. O que significa que a tendência das empresas é converter o menos possível postos de trabalho temporários em permanentes”, torna óbvio. Ora, desta forma, não há condições para apostar na formação ou “ver estas pessoas como activos”. O que penaliza bastante as gerações mais jovens, alerta.

E é assim que, se por um lado temos a geração mais qualificada, por outro temos uma geração em perda de qualificação e obsolescência muito rápida, porque acabou por não ancorar num posto de trabalho com perspectivas de estabilidade”. Perante esta realidade, o Governador propõe que se ofereçam perspectivas de estabilidade a quem entrou no mercado, investindo na formação destes jovens para que as empresas possam criar cargos qualificados com uma relação permanente, sem que haja sempre a dificuldade de converter um posto temporário num posto estável. “Garantir estabilidade, permanência e investimento é a única forma de assegurar que o capital humano começa a qualificar-se”, e de evitar que os jovens permaneçam a prazo no desemprego, reduzindo as suas probabilidades futuras, acredita Carlos Costa.

Em conclusão, “olhemos o lado dos desempregados mas olhemos também o lado das empresas”, afirma o Governador do Banco de Portugal. É que “não há postos de trabalho se não houver investimento, e não há investimento se os bloqueios estruturais do nosso tecido empresarial (financeiros, de organização ou de gestão) não forem ultrapassados”. Neste contexto, “uma PME tem de ambicionar a ser muito maior”, defende. Só que estas organizações “auto-condicionam-se por circunstâncias estruturais que têm que ver com o quadro regulamentar e social onde operam”.

A verdade é que “não há criação de emprego a partir do vazio”, disserta ainda Carlos Costa. Este cria-se “a partir dos empresários que temos, das empresas que temos, da capacidade empreendedora que temos”. E, se há algo evidente para o Governador, é que “os agentes económicos reagem muito rapidamente a incentivos, quando estes estão devidamente alinhados”. A evolução das exportações portuguesas demonstra como, a partir desse tipo de incentivos, as empresas “souberam encontrar o mercado e ancorar-se nele. A nossa obrigação agora é fazer com que essas empresas cresçam e se estabilizem nos mercados”.

“Mundo do trabalho deve responder aos problemas sociais”
Depois da profunda análise do Governador do Banco de Portugal aos principais desafios que se colocam às empresas em termos de empregabilidade, na difícil conjuntura socioeconómica que permanece, ainda, em Portugal, D. Manuel Clemente congratula-se com a perspectiva de estabilidade das empresas e o seu esforço para absorver emprego jovem, referidos por Carlos Costa.

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Merecendo uma ovação da plateia presente na conferência promovida pela ACEGE, o Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, sublinhou, na sua perspectiva religiosa, a dimensão humana do trabalho, reconhecendo que esta “nem sempre é tratada devidamente nas empresas”, problema para que as organizações católicas e outras Igrejas vêm chamando a atenção, há várias décadas.

Considerando que o panorama dado pelo Governador, “que tão bem esclareceu” a realidade, nos conduz sempre a esta dimensão humana, D. Manuel Clemente alerta para as consequências na vida social e política desta falta de cuidado. Contrariando resistências à Doutrina Social da Igreja, esta dimensão humana “tem tido agora com o Papa Francisco, uma voz muito sonante e que tem causado alguma admiração”, afirma ainda.

Na perspectiva cristã sobre a economia e a sociedade, “de que vale um homem ganhar o mundo inteiro, se se perder a si próprio?”, lembra o Patriarca. Já no tempo de Paulo VI, “perito em humanidade”, a presença do mundo do trabalho no pensamento da Igreja era encarada “nesse sentido de responder aos problemas sociais, dando “significado a uma realidade vivida e convivida”, esclarece. E, tal como então, hoje para um cristão os campos macro e micro da economia confundem-se”, porquanto “mantemos sempre a perspectiva micro, sobre a pessoa”.

Mas hoje “o trabalho é uma questão de sobrevivência”, lamenta e, como vem alertando o Papa Francisco, nomeadamente na Exortação Apostólica “A Alegria do Evangelho“, “a crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que há uma crise antropológica profunda”, visão que dá primazia à fundamental “dimensão humana do ser”, sublinha D. Manuel Clemente. Ou, por outras palavras, “à dimensão subjectiva do trabalho”, ao invés de valorizar “a criação de novos ídolos, o fetichismo do dinheiro ou a economia sem rosto”, critica, em consonância com Francisco.

“O que está em causa é a redução do valor humano a um factor de produção e de consumo” – D. Manuel Clemente

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Reconhecendo que as afirmações do actual Papa a respeito da crise mundial e do estado do capitalismo e da economia de mercado provocaram alguma agitação, em vários quadrantes, principalmente no campo da economia e das finanças, o Patriarca de Lisboa recorda que as mesmas ideias provocaram também novas reflexões, nomeadamente no seio da Igreja católica – por exemplo, a do Cardeal Reinhard Marx, Arcebispo de Munique, publicada no L’Osservatore Romano. Que, partindo das criticas que se fizeram à visão do Papa Francisco sobre os perigos do capitalismo face à dignidade humana, rejeita uma visão das pessoas enquanto “factores de custo”.

Também para D. Manuel Clemente, “o que está em causa é o consumismo e a redução do valor humano apenas a um factor de produção e de consumo. Ou já nem isso, porque se não se produz, não se pode consumir”. Afinal, e como sublinha na sua reflexão o Cardeal alemão, “que visão da economia e da sociedade é essa, que toma como ponto de partida o capital e que toma as pessoas que trabalham meras condições marginais? Ou seja, factores de custo. Quem reduz a acção económica ao capitalismo estrito não só escolheu o ponto de partida errado, mas engana-se também, a longo prazo, sobre o ponto de vista económico”.

Insistindo que “sem uma perspectivação antropológica da crise, que tome qualquer um dos elementos da cadeia de produção como um ser humano irrepetível, e por isso relacionado e responsabilizável, não se chega a lado nenhum que à humanidade interesse”, o Patriarca elogia, no encerramento da Conferência, o debate com lugar a reflexão humana promovido pela ACEGE, associação a que se junta sempre, “para aprender como hoje aprendi”.