Esta história é sobre violência, engano, incesto, canibalismo, ilusão e contemplação suicida. Qualquer semelhança com o actual estado alquímico da nossa situação política e económica é pura coincidência e maldade
POR NUNO OLIVEIRA

Rapunzel, símbolo da esperança e do renascimento de um povo, nasceu de um cravo ardente e cresceu durante os anos doirados de um reino muuuuito distante chamado Credistão. No Credistão as coisas estavam bem melhores agora que o antigo reino se unira à Santa Aliança dos Povos, cujos principais reinos, Beémelandia, Sconeterra , Croissantânia e Risottopolis, haviam fundado após as décadas sangrentas das guerras sob égide de ditadores temíveis que ainda hoje são conto de terror em todo o mundo civilizado (Nota do autor: Nós por cá, nos tempos a preto-e-branco do Credistão também tivemos um, mas tirando os que saltaram então a fronteira e alguns habitantes de Tapasguay que partilharam momentos delicados entre o seu ditador e o nosso, poucos mais se lembram de tão olvidável criatura. Adiante…)

Rapunzel brincava na sua caminha pronto-a-montar sob a forma de um prático kit protegida pela sua mãe Ilusão e seu pai Saturno. Mas um dia Ilusão distraiu-se e Saturno dedicou-se mais aos irmãos mais velhos de Rapunzel e deixaram a criança desprotegida, tendo sido levada por sua tia Dona Banca, para uma torre bem protegida pelo enganador bosque de taxas atractivas ao investimento imobiliário, espinheiros-da-especulação e acordos com os duques e barões que decidiam sobre a classificação dos lotes de terra e do seu valor de garantia à concessão de empréstimos ao investimento em infra-estruturas, tão necessárias ao reino (Nota do autor: anos mais tarde mostraram para que serviam afinal: para dar maior fluidez e mais rápido andamento a quem de lá haveria de querer sair. Adiante…). Conclusão, Rapunzel vivia na dolência do engano de estar protegida e com o futuro garantido e de que seus pais estavam agora mais interessados em investir em seus sete irmãos, Educação, Justiça, Solidariedade, Arte, Ciência, Cultura e Saúde.

Mas no castelo branco Beneditino onde Saturno reinava, a opulência crescia à medida que no Credistão entravam tesouros e benesses vindas dos abastados reinos da Santa Aliança para nosso desenvolvimento (Nota do Autor: e a taxas de juro tão simpáticas!). Era tanto que se perdia a conta (Nota do autor: mais tarde, as taxas perderam simpatia e do tesouro perdeu-se mesmo a conta. Adiante…) e dava para partir e repartir, distribuindo Saturno riquezas entre os seus mais fiéis súbditos, uns da nobreza, outros da crescente burguesia palaciana, que ajudavam Saturno a desenvolver o Credistão, entre dinheiros do reino partilhados com dinheiros de seus aclamados cavaleiros da Conta Redonda. Entretanto, a Ilusão dedicava-se a organizar as festividades que Saturno exigia para ser novamente aclamado pelos seus súbditos a cada quatro anos (Nota do autor: de vez em quando a coisa variava…).

Assim se mantinha Ilusão a incentivar o povo no sonho do envolvimento com o poder, enquanto Saturno mandava fazer mais um anel que simbolizasse um novo ciclo de governação em prol do desenvolvimento da sua sociedade iluminista, ou seja, de gente particularmente iluminada que apoiava fervorosamente a política de mais e mais e mais infraestruturas, estradas, pavilhões multiusos, estádios, escolas desenhadas por finos estetas e casas, boas e muitas e em terrenos que valiam trinta dinheiros e, depois de um jeitinho, trinta milhões (Nota do autor: muitos desses iluminados surgem mais tarde a dizer que sempre acharam que ter tanta estrada bonita era um disparate e que sempre avisaram que a partilha de dinheiros entre Saturno e seus cavaleiros da Conta Redonda tinha sido calculada a desfavor do tesouro futuro do Credistão. Adiante…).

Mas tanta bonança cria loucura e a loucura leva ao desvario. Os filhos de Saturno tinham crescido desmesuradamente e Ilusão já não os conseguia manter mais sob secreta protecção. Saturno mandou investigar e descobriu que estes sete monstros ainda mamavam dos peitos de sua mãe, convictos de que eram o que de mais importante haveria de haver no reino do Credistão. Perante tal cenário de asco e horror, ao ver as gigantes criaturas, Saturno tremeu e pensou que eles, amamentados indefinidamente pela sua mãe gorda e autista, iriam crescendo mais e mais, o iriam destronar e fundar um novo reino de luzes e clamores, onde Saturno passaria para personagem secundária na redistribuição das benesses e títulos. O poderoso rei, fustigado pela secreta e doentia aflição de que o reino já devia mais do que o valor dos favores da Santa Aliança, perdia o controlo do seu destino e, não tardaria, do seu trono. Mandou então cortar Ilusão em pedaços e, com as suas próprias mãos, esventrou os seus sete filhos um a um e devorou-os, garantindo assim que Educação, Justiça, Solidariedade, Arte, Ciência, Cultura e Saúde jamais seriam mais importantes do que o próprio rei e os seus cavaleiros da Conta Redonda. Saturno limpava os cantos da boca e contemplava os seus anéis de poder, era uma coisa bela, a escolha do povo, sempre e sempre na mesma figura paternal.

Do alto de sua torre, Rapunzel vivia entre sonhos de investimento offshore e os sussurros de sua tia “solte, solte os seus cabelos para eu subir e descer da torre e controlar a actividade empresarial e o fluxo de consumerismo” (Nota do autor: onde está solte, leia antes o equivalente em inglês – spread…). Mas um dia Rapunzel viu a sua torre tremer, aquando da notícia de sua tia D. Banca, que se encontrava famélica e moribunda, teria sido violentada pelos cavaleiros da Conta Redonda, desesperados pela escassez de bonança e aforro que nunca lhes faltara e pela desvalorização galopante de seus quinhões.

Saturno via e revia o tesouro mas já nada havia para repartir. E do outro lado da mesa, a Santa Aliança era agora a Diabólica Trindade, com Credistão sob rédea curta. Sem saber o que fazer, Saturno, num acto de experimentalismo económico, cortou os dedos, para manter os anéis. Mais ainda tremeu Rapunzel quando chegaram as notícias da morte horrível de sua mãe e irmãos, devorados por seu descontrolado pai. Agora ela sabia, que neste reino, quem tem controlo esquarteja a Ilusão e destroça os filhos que se agigantam.

Perante tanta miséria, tristeza e desorientação, Rapunzel entrançou os cabelos, actualizou o seu currículo e mandou-o aos quatro ventos. Após meses sem respostas e sem saber o que fazer à sua vida, a princesa-cravo, filha da Ilusão esquartejada e de um pai canibal e criada no regaço da sua tia, fria calculista e controladora, contemplava agora o abismo em que o seu reino se afundava, mais e mais a cada dia. Atou diligente a sua trança às vigas da torre e subiu à janela de vigia. De pé sobre o parapeito, enchia os pulmões de ar e em sereno sobressalto avaliava a gravidade da sua situação…

Biólogo e CEO da NBI – Natural Business Intelligence