O primado da ciência pela técnica mete-se ainda pelas artes clássicas, com a realidade aumentada, visitas mais espectaculares e uma vista mais desafogada para a nossa própria humanidade. Talvez um dia possamos ver tudo, mas seremos ainda humanos?
POR PEDRO COTRIM

Em 1999 o número de seres humanos chegou aos seis mil milhões. Não se podia estar ao telefone e usar a internet ao mesmo tempo e ainda se olhava para quem tinha acesso em casa a essa coisa esquisita que era a world wide web como um privilegiado. Tinha-se medo do papão do Y2K que não veio a dar em nada.

O Blackberry tinha sido apresentado no começo do ano e havia apenas um punhado de utilizadores em todo o mundo. Acordávamos com o despertador, tomávamos o pequeno-almoço enquanto ouvíamos as notícias e íamos para o trabalho. Comprávamos o jornal para ler no autocarro ou no comboio. No escritório tínhamos fax, fotocopiadoras, telefone de secretária e um computador matacão com torre, jamais um portátil.

Quem percebia de informática começava a ouvir música à borla por via do Napster, já víamos os preços em escudos e euros mas nunca víramos os euros e a Hungria, a Polónia e a República Checa juntavam-se à NATO. Por aqui demos as mãos por Timor e vimos a entrega formal de Macau à China. A Ponte Vasco da Gama ainda era a ponte «nova», a zona da expo do ano anterior ainda era conhecida como «zona da expo», o que se mantém até aos dias de hoje e daqui a uns séculos se manterá e dará material para estudos de toponímia, os clubes de vídeo alugavam cassetes de VHS e filmes em DVD, era impossível fazer uma pausa no telejornal para ver mais tarde e as coisas tinham horas para se verem a horas.

Viam-se pessoas a ler nos transportes e nas esplanadas. As cidades portuguesas ainda não conheciam o turismo em massa, apesar de Portugal já ser um país muito visitado. Os compromissos entre amigos eram mantidos e a palavra tinha grande valor.

O Dubai era um deserto, os arranha-céus migravam da América para a Ásia e a Amália deixava-nos em Outubro. Em Agosto uma formidável auto-estrada de fabrico lunar percorreu a Europa desde a Irlanda à Turquia. Quem viu, viu, quem não viu vê da próxima. Havia muitos carros sem catalisador e o trânsito era sempre um pandemónio.

Doze anos depois a população mundial chegou aos sete mil milhões e o mundo percebe horrorizado o que é um tsunami quando o Japão é varrido em Março pelas águas.

A maior parte dos cidadãos portugueses usa o Facebook e mesmo os mais velhos estão rendidos à internet. «Vê na internet» torna-se numa espécie de senha para qualquer finalidade, sendo a contra-senha a informação que se procura. As cidades portuguesas estão trendy, tudo é hype, os anglicismos abrem brechas no idioma e o Verão estende-se até Outubro, com o de 2011 a entrar para os anais como o mais quente desde que há registos.

Em Portugal ficamos petrificados com o AO90 e lamentamos não ter lutado mais contra ele em devida altura. A tragédia abate-se sobre as escolas no ano lectivo a iniciar em Setembro com a obrigação de os alunos grafarem de forma incorrecta muitos vocábulos de uso corrente, perdendo-se fonética e etimologia. Escreve-se pior, pensa-se menos mas mais rapidamente e querem-se os conteúdos para ontem. A era da informação está a todo o vapor. Surgem notícias de fonte duvidosa e por vezes tudo parece endemoninhado.

Muitos cidadãos têm smartphones. Há rede móvel, há olhos colados ao ecrã, há pessoas sentadas nas esplanadas a fazer deslizar imagens com os dedos e a imprensa conhece dias difíceis. Os escudos são uma memória longínqua e mesmo os que juraram fazer sempre a conversão para saberem a quantas andavam já não sabem o valor de um centavo. Os cidadãos nascidos em 1993 estão a entrar para a universidade e a conduzir carros nas ruas. É tudo muito rápido. Não há carros eléctricos e o trânsito é um pandemónio.

Entramos agora no mês que fecha 2021 e daqui a dois anos contaremos 8 mil milhões de humanos. Uma pandemia assusta o mundo há quase dois anos. Aprendemos mais grego nestes vinte e um meses meses que desde 1143, com excepção dos engenheiros que sempre conheceram lindamente o alfabeto e a raiz grega de muitos vocábulos. E a engenharia continua essencial em muitas artes, como sempre. Os cidadãos cuidam estar nas mãos dos governos, mas verdadeiramente é a engenharia a fazer rodar o mundo, desde a medicina aos foguetões, passando pelos computadores pelas vacinas nossas de cada dia. O primado da ciência pela técnica mete-se ainda pelas artes clássicas, com a realidade aumentada, visitas mais espectaculares e uma vista mais desafogada para a nossa própria humanidade. Talvez um dia possamos ver tudo, mas seremos ainda humanos?

Há múltiplas formas de chegar a um cidadão e os algoritmos perdem mão humana. Tudo se torna tecnológico. As notificações fazem bip bip como se um enxame de cem sputniks nos acompanhasse em contínuo. Os tempos de pensamento tornam-se mais breves e exige-se que num conteúdo esteja tudo espremido num vocabulário pronto a comer. A tecnologia instrumentaliza-nos quando deveria suceder o contrário, mas a grande questão, mesmo para os mais resistentes à mudança, será certamente: «Está disposto a abdicar do que tem agora e voltar aos rudimentos de 1999, quando afirma que tudo era bom?» É que nem o velho mais velho do Restelo dirá que sim.

Pedro Cotrim

Editor