É no Dubai que a International Communications Union, um organismo agora pertencente às Nações Unidas, está a discutir, à porta fechada, o futuro da Internet. O facto tem dado que falar nos media e são muitos os que acusam que, desta “reunião secreta”, poderá sair o fim da Internet tal como a conhecemos. A encabeçar o movimento está Vinton Cerf, o “pai” da mesma, que alerta para a abolição da liberdade de expressão e para o aumento da censura por parte dos países que a querem controlar internamente
POR HELENA OLIVEIRA

Para a manutenção de uma Internet livre e aberta
2 de Dezembro de 2012

Quando, em 1973, eu e os meus colegas propusemos a tecnologia que estaria subjacente à internet, defendemos a existência de um standard aberto para conectar redes de computadores entre si. E esta proposta não era somente filosófica, mas também prática.

Os nossos protocolos foram concebidos para que as redes da Internet fossem não-proprietárias e inter-operáveis. O que impedia os “bloqueios” e permitia contributos diversos provenientes de inúmeras fontes. Esta abertura constitui o motivo devido ao qual a Internet cria tanto valor na actualidade. Porque não tem fronteiras e porque pertence a toda a gente, tem sido responsável por gerar liberdades sem precedentes a milhares de milhões de pessoas em todo o mundo; a liberdade para criar e inovar, para organizar e influenciar, para falar e ser ouvido.

Todavia, uma reunião à porta fechada, com representantes governamentais de todo o mundo, irá ter lugar no Dubai e a regulação da Internet está na sua agenda. A União Internacional para as Telecomunicações [ITU, na sigla em inglês] reunir-se-á, de 3 a 14 de Dezembro, para rever um tratado com décadas de existência, no qual apenas os governos deverão ter voto activo. Algumas das propostas poderão permitir aos governos justificar a censura na liberdade de expressão ou até o corte do acesso à Internet nos seus países.

Apesar de as minhas preocupações poderem ser lidas na CNN.com, não estou sozinho. Até agora, um número superior a 1000 organizações, pertencentes a cerca de 160 países, e em conjunto com centenas de milhares de utilizadores de Internet, estão a bater-se por uma Internet livre e aberta (…).
Vinton Cerf

O que o leitor acabou de ler é, em simultâneo, um blog post e um apelo à assinatura de uma petição para manter a Internet livre e aberta, apelo este feito pelo denominado “pai” da dita e em resposta a um debate sem precedentes sobre a forma como a Internet é governada globalmente. No Dubai e ao longo de 12 dias, a conferência da International TeleCommunications Union (ITU), uma organização com 147 anos de existência e que pertence agora às Nações Unidas, irá colocar em extremos opostos os países em desenvolvimento que procuram ganhar alguma coisa com modelos de receitas para a Internet, em conjunto com os regimes autoritários que pretendem ter mais controlo sobre a mesma versus os decisores políticos dos Estados Unidos, a esmagadora maioria de utilizadores da web e as empresas de internet privada que preferem manter o status quo até agora prevalecente.

Como notícia a Reuters e apesar de a maioria das propostas mais delicadas permanecerem no segredo dos deuses, algumas fugas de informação já fizeram saber que a Rússia pretende bater-se por regras que permitam aos países, individualmente, moldar os conteúdos e a estrutura da Internet no interior das suas fronteiras, ao mesmo tempo que um conjunto de países árabes defende a identificação universal dos utilizadores da Internet. Por outro lado, alguns países em desenvolvimento e empresas de telecomunicações pretendem que os fornecedores de conteúdos paguem pela transmissão da Internet.

De uma forma geral, os 193 países participantes nesta conferência parecem ansiosos para fazer passar a ideia, e consagrá-la, de que seria esta agência das Nações Unidas, e não as empresas privadas ou os grupos sem fins lucrativos, que deveria governar a Internet. Em defesa dos seus argumentos, proclamam que um novo regime é necessário para lidar com o aumento do cibercrime e com outros efeitos perniciosos por ela possibilitados.

Como seria de esperar, os Estados Unidos uniram-se em força contra estas propostas, o mesmo acontecendo com a própria União Europeia que, na pessoa da comissária para as questões digitais, Neelie Kroes, enviou um tweet no qual se pode ler: “se não está estragada, não vale a pena consertá-la”. A maioria das propostas iniciais gerou uma verdadeira fúria por parte dos defensores da liberdade de expressão e dos direitos humanos, levando mesmo a resoluções imediatas tanto por parte do Congresso norte-americano, como do Parlamento Europeu, no sentido de se manter o actual sistema descentralizado de governo da Internet.

Mas qual o papel da ITU nesta contenda? Actualmente, este organismo é responsável pelas redes de telecomunicações e sobre as alocações de radiofrequência e os reguladores de todo o mundo que o apoiam pretendem renegociar um tratado que conta já com várias décadas de vida, mas cujo enfoque é nas telecomunicações básicas e não na Internet. Desta forma, alguns membros da ITU estão a tentar estender o âmbito do tratado em causa para incluir a regulação da Internet. Cada um dos 193 membros dos países representados pode votar, independentemente do seu registo em termos de direitos fundamentais e uma maioria simples é suficiente para que se efective a mudança. Uma outra crítica que é feita à conferência global promovida pela ITU consiste no facto de as negociações serem feitas, na sua esmagadora maioria, pelos governos correspondentes, com um acesso muito limitado por parte da sociedade civil e também de outros observadores independentes. Uma alteração desta natureza poderá abrir caminho a implicações demasiado perigosas para o futuro da Internet e, consequentemente, para o futuro de todos nós ou, no mínimo, para um terço de habitantes do mundo que possui acesso à Internet. Pelo menos assim parece.

Mais ainda, e como alerta a Reuters, se uma maioria dos países representados na ITU aprovar o domínio da Internet por parte das Nações Unidas, em conjunto com regras onerosas, estará aberto caminho para uma batalha nos países ocidentais no sentido de o tratado ser ou não ratificado. Na verdade, dúzias de países, incluindo a China, a Rússia e alguns países árabes já restringem o acesso à internet no interior das suas fronteiras. Se esta ideia for para a frente, estes governos terão nas mãos a legitimidade que lhes faltava para censurar conteúdos e o próprio acesso dos seus concidadãos à web.

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A internet e a liberdade de expressão
Não é surpreendente o facto de ser Vinton Cerf – o homem que, em conjunto com Bob Kahn, desenvolveu os protocolos e a estrutura da internet, bem como o primeiro sistema comercial de emails -, o rosto desta petição mundial para a manutenção de uma Internet livre. O actual Chief Internet Evangelist da Google tem contado, para além da sua própria reputação, com o apoio de poderosos meios de comunicação, de que são exemplo o The New York Times ou a CNN, para promover o contágio da sua indignação face aos propósitos da ITU. Em editoriais ou em blocos noticiosos especiais, Cerf tem-se multiplicado em argumentos e alertas sobre aquilo que considera ser um verdadeiro crime “contra a liberdade de expressão e contra outros tipos de liberdades consagradas na Declaração Universal dos Direitos Humanos”, como reporta a CNN, estabelecendo até uma comparação com a restrição do direito de imprimir livros, imposta por “príncipes e padres” alguns anos passados sobre a criação de Gutenberg.

De acordo com o próprio Cerf, dos 72 países estudados pela Open Net Initiative, 42 já filtram e censuram conteúdos na Internet (face a apenas quatro que o faziam em 2002), excluindo-se ainda, deste conjunto de países, “ofensores em série” como a Coreia do Norte e Cuba. Para o pai da Internet, estes governos estão a aproveitar a reunião de porta fechada da ITU para irem ainda mais longe no que respeita às suas agendas de repressão. “Acostumados a controlar os media, estes governos temem perder o controlo que exercem com a continuação de uma internet livre. Estão preocupados com a disseminação de ideias indesejáveis e têm medo que as pessoas possam usar a internet para criticar os seus governos”, escreve Cerf.

São vários os regimes autoritários que têm vindo a propor banir o anonimato na web, o que facilita a identificação e consequente prisão de dissidentes. Outros reivindicam a transferência de responsabilidades do sistema do sector privado que gere os domínios e os endereços de internet para as próprias Nações Unidas. E existem ainda outras propostas que vão no sentido de se exigir que qualquer fornecedor de conteúdos de internet, seja ele pequeno ou grande, tenha de pagar novas taxas para chegar a pessoas fora das suas fronteiras.

As vozes que se têm manifestado contra o posicionamento desta cimeira não defendem, contudo, o fim da ITU. Aquela que é agora uma agência especializada das Nações Unidas, foi estabelecida, em 1865, como a International Telegraph Union e é reconhecido o seu trabalho no que respeita à gestão global do espectro de rádio e das redes de telefone wireless. Todavia, e mais uma vez, o que as vozes discordantes clamam é o facto de esta agência intergovernamental constituir o “sítio” errado para tomar decisões sobre o futuro da Internet. Como apenas os governos têm o direito de voto na mesma, há que ter em atenção que muitos destes governos não apoiam uma internet livre e aberta, e que os engenheiros informáticos, as empresas e as pessoas que “construíram” a web, em conjunto com todos aqueles que a utilizam diariamente,  não têm qualquer direito de voto na questão.

No total, mais de 1000 organizações, pertencentes a mais de 160 países, demonstraram a sua preocupação face aos resultados que poderão sair desta reunião à porta fechada a ter lugar no Dubai. E os seus argumentos são similares: enquanto alguns governos argumentam que a Internet precisa de novas regras globais para acelerar a sua implantação no mundo em desenvolvimento, os opositores argumentam que a abordagem actual, assente no mercado, é a que melhor posicionada está para a manutenção do crescimento exponencial da net. Para além de as interrupções do serviço serem cada vez mais raras, estima-se que, dentro de poucos anos, a Internet possa servir quatro mil milhões de utilizadores, o que representa mais de metade da população mundial. E se a Net foi criada sob a égide da interoperabilidade, e se permite um conjunto diferente e abrangente de modelos de negócios, não parece de todo necessário submetê-la a um sistema de controlo estatal, mais a mais porque tal iria criar novos custos e interferir “com o seu orgânico e rápido crescimento, o qual temos vindo a presenciar desde a sua emergência comercial nos anos de 1990”, escreve a CNN. Mas e afinal o que defende a ITU?

Fenómeno global exige respostas globais
“Do Dubai, o que eu espero, a nível pessoal, é que sejam aprovados alguns princípios que legitimem o facto de o ciberespaço constituir um fenómeno global que apenas pode conter respostas igualmente globais”. A citação é de Hamadoun Touré, secretário-geral da ITU, um antigo engenheiro de satélites nascido no Mali, mas educado na Rússia. O homem forte da ITU tem respondido às críticas globais afirmando que “é importante recordar que quando se fala da liberdade da Internet, a maioria das pessoas no mundo não tem sequer acesso à mesma”. Numa entrevista que concedeu à Reuters, Touré acrescenta ainda que a Internet “é privilégio do mundo rico” e que a ITU pretende alterar essa situação. “Constitui nosso objectivo global assegurar que cada cidadão possa ligar-se à internet, seja em que circunstância for e que para tal é necessário chegar a um consenso independentemente da visão ideológica de cada membro da ITU”, sublinha ainda.

E, em resposta às criticas que a ITU tem sido alvo no que respeita à sua falta de transparência, o site acabou por começar a publicar algum material sobre a sua conferência internacional e a convidar o público em geral a comentar sobre as alterações nas regulações internacionais para as telecomunicações, também em discussão na cimeira. Irónico é também o facto de a própria ITU ter colocado anúncios pagos na Google – afinal, a empresa que mais teria a perder caso os propósitos da ITU fossem legitimados – para aparecer, no seu motor de busca, “colada” à WCIT – a World Conference on International Communications – que decorrerá em simultâneo com a cimeira em causa e cuja última edição teve lugar em 1988.

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Na WCIT, está também em agenda a discussão sobre as ITRs – International Telecommunications Regulations – que cobrem áreas tão dispares como a melhoria do acesso à internet por parte da população idosa ou de pessoas com deficiência, a melhoria da cibersegurança e, a mais controversa, a discussão do modelo económico “o emissor paga” no que respeita à divulgação de conteúdos. Assim, e no meio de vários temas, o tratado acima mencionado constitui o último round de uma batalha longa e duradoura que coloca em campos de batalha opostos o lobby da internet e as empresas de telecomunicações.

Forçada ou não, a verdade é que a ITU já veio assegurar, nos últimos dias, que nenhuma proposta irá passar sem a existência de um consenso e que a organização NÃO pretende ter o domínio sobre a internet. E a outra verdade é que, forçada ou não, todas as reuniões que têm tido lugar desde 3 de Dezembro último, têm sido transmitidas pela internet, têm sido igualmente transcritas e todos os dias é realizada uma conferência de imprensa. É que depois de tão fortemente acusada de não ter transparência, parece estar a tentar redimir-se de tal.

Toda esta polémica poderá não passar somente disso mesmo: de uma polémica. Resta saber como se comportarão países como a Rússia, a China e os restantes 40 países que querem ter uma Internet devidamente “controlada”. E que continuarão a lutar até que tal aconteça.

Editora Executiva