Foi atleta de competição, engenheiro e professor e considera-se, meio a sério, meio a brincar, um “gestor amador”, não porque lhe falte experiência, mas porque considera que a transição da academia para a vida empresarial foi um passo tardio, apesar de não estar minimamente arrependido por o ter dado. No mais recente almoço-debate da ACEGE, João Bento falou dos períodos mais marcantes da sua vida, do seu quadro de valores e dos desafios éticos e morais que acompanham a vida nas empresas. Só não falou… dos CTT
POR HELENA OLIVEIRA

João Bento, actual CEO dos CTT, foi o mais recente convidado do almoço-debate realizado pela ACEGE, Associação Cristã de Empresários e Gestores. Mas, e na medida em que se encontra há pouco tempo nos CTT – há sensivelmente cinco meses – o engenheiro, professor e gestor optou por não falar da sua recente trajectória enquanto CEO, tendo-se obrigado a “fazer um exercício de reflexão” para partilhar o caminho que trilhou até aos seus 58 anos de vida.

Casado, com dois filhos e um neto recente, João Bento apresentou-se como um homem de família, feliz e com sorte, que gosta muito de trabalhar, que é ateu e que leva muito a sério também os seus períodos de lazer. E, em termos cronológicos, sublinha três fases importantes da sua vida: a altura em que praticou judo de competição, o seu percurso académico enquanto professor no Instituto Superior Técnico (IST), onde se sagrou como professor catedrático em 2000 e, por fim, a sua vida de gestor que, meio a sério, meio a brincar, afirma ser de “amadorismo”, visto que mudou da academia para a gestão de empresas numa fase “adiantada”, apesar de considerar que tomou a “decisão certa”.

Estes três marcos na vida de João Bento marcaram-no profundamente e fazem dele o que é hoje, tanto na sua vida pessoal como na de gestor, assegura.

Elegendo como primeiro grande desafio da sua vida o facto de ter sido obrigado a interromper o seu percurso enquanto desportista de competição, por via de um acidente desportivo que contribuiu para colocar um ponto final nesta curta carreira, aos 19 anos, João Bento afirma que, pela primeira vez, percebeu a necessidade de “traçar objectivos a prazo, lutar por eles, ‘trabalhar’ na ambição – pois não basta ser ambicioso, há que saber ter ambição -, desenvolver a perseverança, o espírito de sacrifício e o espírito de equipa”. E toda esta aprendizagem havia de o acompanhar nas demais avenidas da vida, em conjunto com a ideia de que, tendo sido campeão muitas vezes, a sua passagem pelo judo também lhe transmitiu uma grande lição de vida: a de saber perder, algo que considera ser muito benéfico, apesar de também ter aprendido a ganhar.

Ainda cronologicamente, o actual CEO dos CTT recordou a sua vida académica, sublinhando que “tem mais anos de funcionário público, como professor, do que de gestor”, com a vocação encontrada no IST, onde no 4º ano foi tarefeiro num centro de investigação, no 5º foi monitor, considerando “natural concorrer a professor assistente” quando finalizou o curso. Sendo a sua formação em Engenharia de Estruturas, área onde fez mestrado, quando foi para Inglaterra para fazer o seu doutoramento, no Imperial College, em Londres, descobriu um mundo novo que o havia fazer mudar de vida. Contactando com algumas pessoas que estavam a trabalhar em aplicações, surgiu assim, e na altura, algo que era ainda “bizarro”: a Inteligência Artificial. Assim, e depois de um ano a estudar Ciências da Computação, reorientou os seus interesses e acabaria por vir a ser o primeiro professor catedrático nesta área, a qual se iniciou no Técnico alguns anos mais tarde. Considerando-se um “académico completo”, no sentido que gostava muito de ensinar, de publicar, de “doutorar” e apesar de se sentir muito realizado, considerou, algum tempo mais tarde, que deveria desenvolver alguma actividade de consultoria.

E foi a fazer um projecto na Brisa e, seguidamente, convidado para desenvolver a Brisatel, a holding para a área de telecomunicações e novas tecnologias da Brisa, que João Bento acabaria por se juntar à empresa, onde foi membro executivo do conselho de administração durante 11 anos, tendo esta experiência marcado a sua experiência profissional futura de 30 anos em cargos executivos e não-executivos em grandes empresas cotadas em Portugal e no Brasil, sobretudo nos sectores das infra-estruturas e energia. Assim, e ao nomear-se como “gestor amador”, João Bento fica muito aquém do trabalho que desenvolveu na Brisa, tempo que recorda como a altura “em que fizemos de tudo”, desde as áreas de “operações, inovação, desenvolvimento de negócio, diversificação, internacionalização”, tendo sido igualmente ao longo deste período que afirma ter aprendido o seu “primeiro ensinamento empírico” que transformou “em doutrina”e que é “o mérito de trabalhar em equipa”. Como afirma, “é incalculável o valor de uma equipa que se respeita o suficiente para se poder discutir, às vezes muito a sério e até roçando a zanga, com a consciência plena de que é assim que se tomam decisões”, acrescentando que “contestar, desafiar, contrariar os colegas”, tudo isso aprendeu empiricamente e com um valor incalculável, afirmando uma vez mais que “não tendo tido formação para ser gestor, foi ali [na Brisa] que muito aprendi com todas as pessoas lideradas pelo Vasco Mello”.

O passo seguinte na carreira de gestor de João Bento foi um desafio inesperado: a ida para a EFACEC, onde foi membro do conselho de administração e CEO, qualificando a experiência como “diferente” e a primeira vez em que teve a responsabilidade de liderar uma grande empresa. “Foram cinco anos dos quais me orgulho muito e onde ganhei endurance e uma capacidade para relativizar problemas, algo que me iria acompanhar para sempre”, admite.

Ao sair da EFACEC, João Bento pensou em tirar um ano de sabática, porque se sentia cansado e com necessidade de reflectir, mas a sabática não duraria mais do que uma semana. Desafiado por Manuel Champalimaud a juntar-se-ia à Gestmin, considerando que tal passo era uma oportunidade para fazer a diferença, num Grupo que estava em reestruturação e que, com 55 anos, seria ali que, assim pensava, teria a sua última fase da vida enquanto executivo. O que não aconteceu pois, em meados deste ano, tomou a decisão de se afastar do Grupo e assumiu o cargo de presidente da Comissão Executiva dos CTT.

Educação, família e quadro de valores

Depois da sua experiência como atleta de alta competição, João Bento confere igualmente uma enorme importância ao tempo em que foi engenheiro e académico. Considerando que esta fase da sua vida lhe conferiu uma enorme “disponibilidade para olhar para os problemas com optimismo e naturalidade” e que, afinal, “um problema é apenas uma coisa desconhecida para a qual é necessário encontrar uma solução”, João Bento confessou também uma certa “obsessão para o rigor” – o que faz sentido, diz, numa mente mais científica, como diz -, dando importância extrema também ao hábito de avaliar e de ser avaliado. Reconhecendo que um académico é avaliado objectivamente toda a vida, sente-se uma pessoa exigente consigo mesmo, o que lhe confere legitimidade para ser igualmente exigente com os outros.

Sendo o único, na sua geração familiar, a frequentar sempre o ensino público, considera que este facto também o marcou, bem como a educação católica que teve. E mesmo depois de já ter confessado que é ateu, é no quadro moral dos cristãos que se revê, legado dos seus pais, da escola e do que aprendeu na catequese. Do seu quadro moral de valores, sublinha o “primado da justiça”, o “escrutínio constante sobre o que se passa ou uma espécie de juízo recorrente sobre as nossas acções”, diz, com motivações que não estão relacionadas com o temor a Deus, apesar de as ter tido anteriormente. O antigo académico e actual gestor elege ainda um “quadro genérico de fraternidade”, ou seja, “ a noção de que o bem comum é mais importante que o bem individual”, algo que não define nem como partilha nem como caridade, mas com a certeza de que é necessário saber, com frequência, se o que mais nos convém também convém aos outros mesmo que, por vezes, se tenha de fazer sacrifícios.

Reafirmando a sua racionalidade e o facto de nunca ter deixado de ser cientista na sua maneira de pensar e, com isso, a convicção de que não há vida eterna, olha para a família como o centro da vida, pois é nela que encontra a gratificação e a “continuação”, apesar de considerar as diferenças existentes neste “propósito” comparativamente aos que têm fé. E, apesar de ter a noção de que a diferença é enorme, considera que “o que mais se aproxima da vida eterna é a construção de memórias”. Ou seja, apesar de não gerir a sua maneira de ser e os seus actos porque deseja conquistar a eternidade ou porque está preocupado com o juízo final, o “seu” juízo final gera preocupações no que respeita “à memória do que cá fica”. Para si, a vida não se eterniza mas prolonga-se, deixando cá os filhos, os amigos e as obras no sentido mais amplo daquilo que se faz, afirmando ter portanto esse “proxy da eternidade como algo que me obriga a escrutinar aquilo que faço”.

E é também neste sentido que sublinha o traço que, a seu ver, o mais marca enquanto gestor, que é a liderança pelo exemplo. “Porque acredito que não posso exigir a ninguém algo que eu não possa fazer e, sobretudo, porque não posso ser contrário àquilo que faço”. Afirmando igualmente que não se envergonha de dizer que o trabalho “é o aspecto mais importante do nosso quotidiano, é o que mais marca o ritmo da nossa vida e alimenta a vontade de fazer coisas, de deixar marca, de gerar algum reconhecimento”, o actual CEO dos CTT considera que seria uma pessoa diferente se não gostasse tanto de fazer o que faz e o que fez, “quer na vida académica, quer nesta vida de gestão”. Todavia, é igualmente acérrimo defensor do lazer – jogando golfe, “mal, mas aproveitando dai retirar algum benefício como gestor, porque me confere uma enorme humildade”, e passando grande parte do seu tempo livre a fazer bricolagem, jardim, tendo construído a sua própria oficina e “fazendo de tudo um pouco”. O seu mais recente hobby, cuja paixão remonta aos 11 anos de idade, mas que na altura foi interrompida, é o de tocar guitarra. Há dois anos que o faz, sozinho, mas tendo também uma aula por semana e porque “o lazer é muito importante para equilibrar as várias dificuldades da vida”.

Os dilemas éticos dos nossos tempos

A terminar a sua intervenção, João Bento elencou ainda aqueles que, para si, se constituem como os principais dilemas no ambiente da gestão da actualidade.

O primeiro é a quem se deve lealdade. “É à empresa, ao conjunto dos seus stakeholders, à sua função social?”, questiona, afirmando que este tipo de conflito não surge sempre de forma explícita, mas que quando paramos para pensar, sabemos que muitas vezes há que tomar decisões que favorecem mais um lado do que o outro. “Este conflito”, diz ainda, não pode ser resolvido de uma forma binária, “mas considero ser muito importante ter-se consciência dele para podermos equilibrar as soluções que procuramos à luz de uma conjugação de interesses”. Ou seja, e acrescenta, quando estamos perante um dilema desta natureza, as duas partes terão de convergir para uma solução que seja a menos má para ambas. “A quem devemos lealdade e como a devemos priorizar é, portanto, um tema a que temos de estar atentos”, diz.

O outro, e que lhe parece óbvio, é saber qual é o objectivo último de um gestor de empresas. Será criar valor accionista, seguindo a Escola de Chicago? Ou será criar valor social, o qual é multidimensional? É assegurar a sustentabilidade da empresa, e no seu sentido mais lato, que ela continue a evoluir a par do meio que a envolve? Acreditando que na actualidade não existe uma resposta completamente certa para esta questão, João Bento defende que, a seu ver, o que mais sentido faz é criar valor para o accionista, sim, mas com filtros ESG, tendo em conta o impacto ambiental, social e de governança, e a sustentabilidade económica, é claro.

Uma outra questão importante é como conjugar o interesse da empresa com os impactos das decisões que são tomadas, em particular os impactos sobre as pessoas. Neste caso em particular, voltamos ao dilema clássico, que é o de salvar a empresa ou defender os interesses que temos de defender e nomeadamente saber o que representa despedir ou reduzir pessoas. Prejudica-se a empresa para não prejudicar as suas pessoas ou prejudica-se as pessoas para não prejudicar a empresa? Para o gestor, a resposta é, obviamente, nenhuma das duas. É, sim, preciso “ter um quadro e uma estrutura moral que permita conjugar todas estas coisas e ser capaz de gerir os conflitos, minimizando os impactos, que são mais importantes ainda quando estes têm uma dimensão moral”.

Ou seja e em suma, quando existe um dilema ético ou moral, o mais importante não é ter um manual de procedimentos, porque não há regras universais para os resolver. “O que interessa verdadeiramente é ter um quadro moral sólido, de princípios inabaláveis, em conjunto com linhas vermelhas que não podemos ultrapassar”. E, conclui, “não basta ter confiança no nosso quadro de valores, mas é preciso mobilizá-lo de forma explícita, em particular quando estamos perante uma situação de conflito”. Algo que, concede, a fé e a vivência religiosa ajudam a que aconteça mas que, a seu ver, não é condição indispensável para fazer o que está certo.

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