Apesar de ainda não termos “saído” da terceira revolução industrial, caracterizada pela electrónica, pelas tecnologias de informação e pela produção automatizada, estamos já a sentir alguns dos efeitos da revolução que se segue. Este será o tema que unirá líderes globais de todos os quadrantes da sociedade em Davos, no habitual encontro promovido pelo Fórum Económico Mundial e que pretende espreitar o futuro e antecipar o que de bom e de mau este poderá trazer
POR
HELENA OLIVEIRA

A frase que reza que o mundo está a mudar a um ritmo avassalador começa a estar estafada. Mas a verdade é que os actuais avanços ou inovações não têm, mesmo, qualquer precedente histórico.

De acordo com muitos observadores, pertencentes a vários domínios do conhecimento, encontramo-nos à beira de uma revolução tecnológica que irá alterar fundamentalmente a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos. Cunhada como a 4ª Revolução Industrial, apesar de estar ainda a acontecer “em cima” da 3ª – a qual teve início algures em meados do século passado e está assente na revolução digital – a “nova” será caracterizada por uma fusão e desvanecimento de fronteiras entre as esferas físicas, digitais e biológicas.

Se ainda é impossível prever todas as formas mediante as quais esta nova revolução se irá desenrolar, existem já algumas certezas: a resposta à mesma deverá ter um carácter integrador e abrangente, envolvendo todos os stakeholderes do mundo político, dos sectores público e privado, do universo académico e da sociedade civil.

E são já visíveis e inequívocos alguns sinais das implicações que esta 4ª Revolução Industrial terá na sociedade como um todo. Em termos de governança global, o equilíbrio do poder entre os estados-nação e a moldura internacional que o geriu ao longo dos últimos 100 anos está a enfraquecer a olhos vistos. A pior crise de refugiados de que há memória desde a II Guerra Mundial consiste “apenas” num poderoso alerta de como a concorrência geoestratégica, a renovação dos regionalismos e o surgimento de novos antagonismos está, também, a causar forte erosão na solidariedade global. Na frente económica, o século XXI começou com uma taxa de crescimento global na ordem dos 5%, o qual permitiu que mais de mil milhões de pessoas tenham escapado à pobreza (extrema) em apenas uma geração. Mas e no período que se seguiu (e segue) à crise financeira global, o “crescimento normal” está previsto rondar os 3%, com consequências negativas consideráveis para a criação de emprego e de inclusão social.

Este é o contexto, muito abreviado, é certo, mediante o qual o Fórum Económico Mundial enquadra a sua agenda para a habitual reunião mundial de líderes que terá lugar em Davos entre 20 e 23 de Janeiro próximo e que terá como tema “chapéu” esta denominada 4ª Revolução Industrial, a qual e basicamente poderá correr ou muito bem ou muito mal.

Numa antevisão das problemáticas que serão discutidas na tão famosa quanto polémica estância suíça, o VER – que todos os anos dedica espaço à cobertura das principais conclusões em conjunto com estudos de comprovada importância apresentados neste encontro – traça as principais implicações que esta nova revolução produzirá nos negócios, nos governos e nas pessoas, avançadas já pelo próprio fundador e presidente executivo do FEM, Klaus Schwab.

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O potencial para o bom e para o mau

“A Primeira Revolução Industrial utilizou a água e a força do vapor para mecanizar a produção; a Segunda usou a energia eléctrica para criar a produção em massa e a Terceira utilizou a electrónica e as tecnologias de informação para automatizar a produção”, escreve Schwab.

A Quarta Revolução Industrial – que está a ser construída “em cima” da Terceira – e que se definirá por uma espécie de sobreposição das esferas físicas, digitais e biológicas, distingue-se sobremaneira das anteriores no que respeita à velocidade, à dimensão e ao impacto nos sistemas, na medida em que a sua evolução está a acontecer a um ritmo exponencial e não linear. Em paralelo, a disrupção de quase todas as indústrias é também uma das suas características, bem como o seu potencial para transformar, por inteiro, os sistemas de produção, de gestão e de governança.

No que podem ser consideradas como boas notícias e à semelhança do que aconteceu nas revoluções anteriores, a 4ª Revolução Industrial tem o potencial para aumentar os níveis de rendimento globais e melhorar a qualidade de vida de muitas populações nos quatro cantos do mundo. A revolução tecnológica – que serviu e continua a servir, em particular, as necessidades dos consumidores que a ela têm acesso – permitiu a emergência de novos produtos e serviços que aumentam a eficácia e o prazer que retiramos das nossas vidas profissionais e pessoais.

No futuro, e segundo o presidente do FEM, a inovação tecnológica irá conduzir também a um “milagre” no que ao lado da oferta diz respeito, com ganhos de longo prazo em termos de eficiência e produtividade. Os custos dos transportes e das comunicações irão diminuir, a logística e as cadeias de fornecimento globais serão mais eficazes e os custos das transacções comerciais serão igualmente reduzidos: em suma, é expectável que todas estas vantagens dêem origem a novos mercados e estimulem o crescimento económico.

Mas – a palavra inevitável – como tantos outros analistas já previram, esta nova revolução poderá gerar também uma maior desigualdade (a qual tem-se vindo a acentuar nos últimos anos), em particular no que diz respeito ao seu enorme potencial disruptor nos mercados laborais. À medida que a automatização se for disseminando ao longo de toda a economia, a substituição dos trabalhadores de carne e osso por máquinas irá exacerbar, ainda mais, o fosso existente entre os rendimentos do capital e os rendimentos do trabalho. Por seu turno, os optimistas esperam ainda que esta substituição de trabalhadores pela tecnologia possa, no seu conjunto e como aconteceu nas revoluções anteriores, resultar em empregos mais seguros e recompensadores. Todavia, Klaus Schwab acredita que, no futuro, será o talento, mais do que o capital, a representar o factor crítico da produção. O que resultará num mercado de trabalho crescentemente dividido entre “baixas competências/baixos salários” e “competências elevadas/salários elevados”.

Adicionalmente e para além de constituir uma das mais críticas preocupações económicas, a desigualdade representa(rá) a maior das complexidades associadas à 4ª Revolução Industrial. Os maiores beneficiários da inovação tendem a ser, sem surpresa, os fornecedores de capital físico e intelectual – inovadores, accionistas e investidores – o que explica o aumento do fosso da riqueza entre os que dependem do capital e os demais que dependem do trabalho. A tecnologia é, para o presidente do FEM, uma das principais razões que explicam a estagnação dos salários – e até a sua diminuição – para a maioria da população em países de rendimentos elevados. O aumento da procura de trabalhadores com competências elevadas versus a queda no que aos de baixas competências diz respeito, resulta num mercado de trabalho de “extremos”, em que pouco ou nada resta no “meio”.

Esta realidade ajuda também a explicar por que razão são tantos os trabalhadores que se sentem desiludidos e receosos no que respeita à estagnação dos seus rendimentos e ao dos seus filhos, bem como o facto de as classes médias, um pouco por todo o mundo, estarem a sentir na pele doses crescentes de insatisfação e injustiça.

Por outro lado, o descontentamento pode também ser estimulado pela omnipresença das tecnologias digitais e das dinâmicas de partilha de informação tipificadas pelos media sociais. Actualmente, mais de 30% da população global utiliza as plataformas de media sociais para se conectar, aprender e partilhar informação. E se, num mundo ideal, estas interacções ofereceriam a oportunidade há muito desejada para uma compreensão “muticultural” e para a coesão social, a verdade é que também podem criar – e como estamos já a testemunhar – a propagação de expectativas irrealistas do que representa o sucesso para um indivíduo ou um grupo em particular, em conjunto com uma facilitação e disseminação de ideologias extremistas.

Os principais impactos no mundo dos negócios

07012016_QuartaRevolucao2O presidente do FEM afirma que, nas muitas discussões que tem com líderes de negócio globais e executivos seniores, existe uma tremenda dificuldade em se antecipar os efeitos que a aceleração da inovação, em conjunto com a velocidade da disrupção, trará ao ambiente empresarial. A única certeza que manifestam é a de que os impactos serão tremendos.

No geral, existem quatro efeitos por excelência que a 4ª Revolução Industrial irá gerar no mundo dos negócios: no que respeita às expectativas dos consumidores, à melhoria dos produtos, à inovação colaborativa e às formas organizacionais.

Sejam consumidores ou empresas, os clientes estão, de forma crescente, no epicentro da economia, o que significa que “tudo” está relacionado com a melhoria das formas mediante as quais serão servidos. E também cada vez mais, os produtos e os serviços físicos podem ser melhorados com funcionalidades digitais que aumentam o seu valor. As novas tecnologias tornam os activos mais duráveis e resilientes, enquanto os dados e o analytics estão a transformar a forma como os mesmos são preservados. Um mundo de experiências de clientes, serviços com base em dados e performance de activos através de analytics exigirá novas formas de colaboração, em particular devido à velocidade em que a inovação e a disrupção estão a surgir. E a emergência de plataformas globais e de novos modelos de negócios significa igualmente que o talento, a cultura e as formas organizacionais terão de ser significativamente repensadas.

O impacto nos governos e nos cidadãos

07012016_QuartaRevolucao33À medida que os mundos físicos, digitais e biológicos continuarem a convergir, as novas tecnologias e plataformas permitirão, de forma crescente, que os cidadãos se envolvam mais com os seus governos, manifestem as suas opiniões, coordenem os seus esforços e até que evitem a supervisão por parte das autoridades públicas. Em simultâneo, os governos terão ao seu dispor novos poderes tecnológicos para aumentarem o seu controlo sobre as populações, com base nos sistemas de vigilância omnipresentes e na capacidade de controlo das infra-estruturas digitais. Mas também parece certo que estes mesmos governos enfrentarão pressões crescentes no sentido de alterarem as suas abordagens actuais no que respeita ao envolvimento público e às decisões políticas, na medida em que o seu papel principal de condução de políticas será reduzido graças às novas fontes de concorrência e à redistribuição e descentralização de poder possibilitados pelas novas tecnologias.

Contudo e seja qual for o caso, será a capacidade dos sistemas governamentais e das autoridades públicas para se adaptarem a estes novos tempos que ditará a sua sobrevivência. Se conseguirem provar que estão dispostos a abraçar um mundo de mudanças disruptivas, sujeitando as suas estruturas a níveis de transparência e eficácia para que consigam manter a sua vantagem competitiva, resistirão. Caso contrário, enfrentarão, decerto, graves distúrbios.

Adicionalmente, a 4ª Revolução Industrial terá um impacto profundo na natureza das seguranças nacionais e internacionais, que afectarão tanto a probabilidade como a natureza dos conflitos. A história da guerra e da segurança internacional, afirma Schwab, é também a história da inovação tecnológica. Os conflitos modernos que afectam alguns estados são crescentemente “híbridos” e a distinção entre guerra e paz, combatentes ou não combatentes e até entre violência e não-violência – basta pensarmos nas ciberguerras – tornar-se-á crescentemente difusa.

Em paralelo, e à medida que este processo ganha terreno e que novas tecnologias como armas biológicas ou autónomas se tornarem mais fáceis de usar, indivíduos ou pequenos grupos de pessoas terão o poder de causar danos massificados e irreparáveis. Certo é que estas novas vulnerabilidades conduzirão a novos medos mas, e em simultâneo, os avanços na tecnologia criarão também o potencial para reduzir a escala e/ou o impacto da violência, através do desenvolvimento de novos modos de protecção, por exemplo, ou de uma maior precisão nos ataques aos seus alvos.

Os impactos nas pessoas

07012016_QuartaRevolucao4Como escreve Klaus Schwab, a 4ª Revolução Industrial irá alterar não só o que fazemos, mas também aquilo que somos. Ira afectar a nossa identidade e todas as questões que a ela se associam: a forma como encaramos a nossa privacidade, os nossos padrões de consumo, o tempo que dedicaremos ao trabalho e ao lazer, em conjunto com a forma como iremos desenvolver as nossas carreiras, cultivar as nossas competências, conhecer e relacionarmo-nos com outras pessoas e “fazer crescer”esses mesmos relacionamentos. Schwab alerta para as alterações que já estão a acontecer, por exemplo, no que respeita à saúde e ao aparecimento de um “eu quantificado” e que, mais cedo do que julgamos possível, poder dar origem a uma longevidade inimaginável, com desafios igualmente críticos.

Mas se a lista de alterações no que respeita ao que faremos ou ao que seremos parece ser infindável, há que questionar – como faz o próprio presidente do FEM, confesso entusiasta das tecnologias – se a integração inevitável da tecnologia nas nossas vidas não diminuirá algumas das “essências” que caracterizam a nossa humanidade, nomeadamente no que respeita a sentimentos como a compaixão ou a cooperação. O relacionamento que temos com os nossos smartphones é já um exemplo clássico: todos sabemos que o facto de estarmos constante e continuamente “ ligados” pode privar-nos de um dos mais importantes activos da nossa vida; o tempo para pararmos, reflectirmos e nos envolvermos em conversas com propósito e face-a-face.

A questão da privacidade – ou da sua ausência – é também já uma preocupação corrente e um dos maiores desafios individuais colocados pelas novas tecnologias. E os debates sobre questões fundamentais como a perda de controlo relativamente aos nossos dados, por exemplo, tenderão a intensificar-se. De forma similar, as revoluções que estão em curso na área da biotecnologia e da Inteligência Artificial, e que estão já a redefinir o que significa “ser humano”, na medida em que afectam a nossa esperança de vida, a saúde, a cognição e muitas das nossas capacidades, irão obrigar-nos a redefinir também as nossas fronteiras éticas e morais.

Que estamos à beira de um admirável mundo novo não é novidade. Resta saber se o mesmo trará mais benefícios do que malefícios.

FONTE: The Fourth Industrial Revolution: what it means and how to respond

Editora Executiva