As redes fervilham com imagens das cidades amareladas e evocaram-se filmes apocalípticos. Pasmámo-nos com a nossa própria admiração perante o céu de ferrugem e tratámos de evocar o horror que se guerreia agora a menos de 3 mil quilómetros daqui.
POR PEDRO COTRIM

1914

No dia 23 de Novembro, uma reunião extraordinária do Congresso da República autoriza o governo intervir militarmente, da forma tida como necessária, como aliado da Grã-Bretanha. A decisão foi aprovada por unanimidade, convertendo-se no Decreto-lei nº 283 de 24 de Novembro. Com base nas autorizações concedidas pelo Parlamento, o governo decreta a mobilização de uma divisão.

As ambições germânicas no Ultramar Português não eram escondidas, pelo que a entrada na guerra ao lado dos aliados garantiria, no caso da vitória provável, a manutenção das colónias de então. Bernardino Machado, chefe do governo, supôs igualmente que a entrada na guerra ao lado das grandes potências consagraria a jovem república de quatro anos.

1915

A carestia dos alimentos na Primeira República era o pão nosso de cada dia. Revoltas, greves, penúria e inclusivamente assaltos generalizados às padarias do país, conforme sucedeu no dia 3 de Março. Tempos duríssimos vividos há quatro gerações e que muitos ouviram certamente da boca dos próprios avós. Racionamento de arroz, longas filas para o leite e pobreza real na república.

O peso que a preparação dos corpos expedicionários representa para a economia portuguesa torna-se palpável e o governo é autorizado a abrir duas linhas de crédito, no dia 4 de Agosto, para fazer face aos contingentes militares.

1916

Em Janeiro há greves consecutivas nos estabelecimentos de ensino superior devido ao preço inflacionado dos bens de primeira necessidade. Na rua há confrontos entre populares e as forças da ordem que se prolongam pelos meses seguintes.

No dia 28 de Março decreta-se a censura prévia de qualquer publicação enquanto durar o estado de guerra, e ainda em Março são dissolvidas pelo governo várias estruturas de trabalhadores que se manifestam contra a participação de Portugal na guerra.

No dia 20 de Abril ordena-se a censura de toda a correspondência endereçada e recebida do estrangeiro. Há igualmente censura das comunicações telegráficas.

No dia 26 de Outubro decreta-se a regulação do abastecimento de cereais. O propósito do governo é a contenção da subida dos preços dos produtos agrícolas. Os produtores são obrigados a vender a totalidade da sua produção à Manutenção Militar, que, após garantir o suprimento das Forças Armadas, vende o que sobeja a preços muito inflacionados.

No dia 13 de Dezembro é elaborado um fictício Diário do Governo onde se anuncia a demissão da administração do país e se nomeia outra, presidida por Machado Santos. É decretado o estado de sítio e são efectuadas inúmeras detenções.

1917

No dia 30 de Janeiro, parte para França a 1ª Brigada do Corpo expedicionário português sob o comando do Coronel Gomes da Costa, partindo o segundo contingente no dia 23 de Fevereiro.

No dia 4 de Abril de 1917 morre o primeiro soldado português na frente francesa. António Gonçalves Curado, de vinte e dois anos, que figura na fotografia de capa deste artigo.

Entre os dias 19 e 22 de Maio há motins e assaltos a armazéns em Lisboa e no Porto e nos arredores das duas cidades. As consequências internas da conjuntura internacional mostram-se cada vez mais desastrosas, e a crescente agitação social degrada rapidamente a imagem do governo de Afonso Costa, que vê contra si todos os sectores sociais portugueses. No Porto, num destes tumultos, são mortas 22 pessoas.

Em Dezembro ocorre a sublevação de várias unidades militares, e os cadetes, acompanhados de inúmeros civis, obedecem ao Major Sidónio Pais. Norton de Matos, Ministro da Guerra, demite-se, e Afonso Costa é detido quando regressa a Portugal vindo de Paris. A junta revolucionária que toma o poder suspende decretos anteriores sobre o ensino, extingue organismos ministeriais, criando outros, e suspende as proibições à imprensa então em vigor.

1918

No dia 23 de Fevereiro, um decreto do governo Sidonista altera a Lei de Separação entre a Igreja e o Estado, restituindo ao clero parte da intervenção em assuntos de culto. No dia 2 de Março o presidente é visto numa missa na Sé de Lisboa.

No dia 9 de Abril morrem várias centenas de soldados portugueses na batalha de La Lys. Os números variam de acordo com as fontes. O horror da guerra mostra-se na plenitude.

2022

Em meados de Março, a sépia da fotografia do primeiro soldado morto em combate parece igual aos poeirentos céus do Continente. As redes fervilham com imagens das cidades amareladas e evocaram-se filmes apocalípticos. Pasmámo-nos com a nossa própria admiração perante o céu de ferrugem e tratámos de evocar o horror que se guerreia agora a menos de 3 mil quilómetros daqui.

Tem-se dito tudo sobre a nefanda acometida russa. Abre e fecha noticiários, invade-nos quando procuramos outras notícias e dá poucas tréguas aos assuntos dos nossos pensamentos. O horror paralisa-nos e o belíssimo alfabeto cirílico volta a dar-nos os calafrios dos idos de oitenta.

A guerra põe-nos mínguas nos pratos. Sucedeu no passado, como acabámos de ver, e a escassez, atribuída sempre ao «lá longe», pode ter lugar em qualquer parte do mundo. E o preço do pão, do próprio pão, pode chegar a números incomportáveis.

A Rússia e a Ucrânia são responsáveis por 30% do comércio mundial de trigo; 30% das importações europeias de fertilizantes são de origem russa e o país fornece quase 40% do gás natural consumido da EU, bem como mais de 25% do petróleo e quase 50% do carvão.

Esta guerra originou grandes reviravoltas na política europeia, impondo agora maior celeridade nas tendências já existentes em relação à soberania energética e alimentar da união.

Estava já a decorrer um ponto de viragem com o enfraquecimento da UE pelo Brexit e com as tensões com alguns países do Leste, mas desta vez a União Europeia reagiu muito rapidamente e a uma só voz: foram coordenados esforços diplomáticos e decretaram-se sanções contra a Rússia em apoio unânime aos ucranianos, que deve igualmente ser concedido a todos os refugiados independentemente da sua origem. A União Europeia está fortalecida e mostra que pode ser um interlocutor ponderoso num conflito desta magnitude.

Outro ponto de viragem foi a consciência da dependência da UE em relação aos combustíveis fósseis e os riscos que representa, ocorrida após um primeiro alerta suscitado pela crise pandémica em relação a outros produtos importados.

As consequências da dependência energética são muito directas e reflectem-se no preço do combustível. Os dois euros são uma barreira psicológica e monetária difícil de superar. As contas do fornecimento de energia têm promessas de aumentos breves com custos para as famílias. Mas não se trata apenas da gasolina para o nosso carrito, é igualmente o encarecimento da roda de produção devido ao aumento do custo do transporte dos bens alimentares, sendo que o aumento do preço do gás conduz igualmente ao aumento do preço dos fertilizantes azotados sintéticos que dele dependem para o seu fabrico. O preço do trigo está a atingir valores nunca vistos.

A soberania energética e alimentar está a tornar-se uma questão crucial: deverá então produzir-se localmente, libertando a UE o mais rapidamente possível dos combustíveis fósseis através da economia da energia e de fontes renováveis, assim como desenvolver práticas agrícolas sustentadas.

Se o plano de recuperação pós-Covid financiou, de algum modo, as empresas para poderem retomar a sua actividade, agora o desafio é perceber o futuro e orientar a economia para um modelo mais resiliente, que começa com políticas fortes e ambiciosas na economia da energia. A melhor energia é a que não se consome. Deve impulsionar-se a renovação eficiente da habitação, direccionar a produção de automóveis para modelos mais leves e menos poluentes e investir em demais medidas benéficas para o meio ambiente, para o orçamento doméstico e para a independência energética.

Uma política de promoção da economia de energia, particularmente por meio de uma campanha de comunicação e com exemplo do próprio estado, será essencial e paralela aos seus efeitos rápidos: o incentivo ao teletrabalho e ao carpooling, a formação em condução ecológica, uma observação mais atenta aos limites de velocidade e mais algumas medidas eficazes permitiriam reduzir as contas da energia.

As alternativas, representadas pelas energias renováveis, por comportamentos quotidianos mais ecológicos, por uma dieta mais local e menos baseada na carne, podem impulsionar o desenvolvimento territorial e a reformulação da produção, permitindo o controlo dos custos.

Neste estado da economia, apenas os cidadãos com mais posses têm meios para investir em equipamentos que lhes permitirão economizar dinheiro, pois que a utilização de um veículo eléctrico é mais barata que a de um carro a gasolina ou diesel e a sua aquisição permanece inacessível a muitas famílias.

Do mesmo modo, a renovação energética da habitação, modo de reduzir a longo prazo os custos da climatização, está reservada aos cidadãos que dispõem dos meios financeiros para a pagar: apenas os mais abastados podem investir em equipamentos que lhes permitirão economizar.

É portanto necessário auxiliar as famílias de baixos rendimentos, facilitando o uso de transportes públicos e o acesso a uma espécie de «vale-energia» que pode tomar muitas formas. Contudo, é igualmente necessário considerar ferramentas que permitam ajudas na aquisição de uma bicicleta ou de um carro eléctrico e fazer obras em casa de forma eficiente. A Comissão Europeia propôs recentemente aos Estados-membros que os dividendos das grandes empresas de energia possam contribuir para este apoio às famílias: não podia ter sido em altura mais oportuna.

Os cidadãos são convocados pelo estado para actuarem na linha da frente em relação à energia, mas o ónus não pode estar apenas sobre eles. Em alguns países a situação é diferente.

Na Alemanha, os cidadãos têm actuado na revolução verde. Juntamente com os agricultores, são responsáveis por uma grande parte das energias renováveis. Inicialmente limitado a ambientalistas mobilizados contra a energia nuclear, este expediente acabou por contagiar muitas famílias, e o sucesso baseia-se, em parte, na cultura cooperativa do país (um em cada quatro alemães é membro de uma cooperativa) e em projectos financeiramente atraentes de energia renovável. Mais de mil cooperativas de produção de energia foram criadas, com dividendos na fracção de energias renováveis do país. Além da produção de electricidade, este modelo possibilitou o financiamento de projectos locais de eficiência energética ou mesmo o aquecimento de casas em zonas tidas como inviáveis pelos gigantes industriais.

A Dinamarca é outro caso de sucesso. Perante a relutância das empresas de energia, o desenvolvimento da energia eólica tem sido impulsionado quase exclusivamente pelas cooperativas locais, que ainda detinham quase 80% dos projectos em 2013. A Escócia também reconheceu o valor central dos projectos dos cidadãos na sua estratégia nacional. Tornou-se a primeira nação a estabelecer uma meta quantitativa para estes projectos e os objectivos foram atingidos.

O exemplo destes três países mostram que a energia cidadã pode facilmente tornar-se um modelo em grande escala, desde que exista vontade política e um caderno regulatório adequado.

Posto tudo isto, parece ilusório basear o esforço apenas no poder público sem envolver os cidadãos e as empresas. Neste sentido, as iniciativas das empresas, por vezes mais inovadoras que as políticas nacionais, não são um capricho, mas uma necessidade de acelerar a transição em todas as áreas.