Duas realizadoras norte-americanas seguiram, ao longo de quatro anos, as vidas de quatro crianças numa favela de Calcutá, todas elas membros de uma ONG, liderada por um advogado que acredita que é na capacitação dos mais novos que reside a oportunidade de estes escaparem ao futuro que lhe está predestinado… Uma história de determinação, premiada no Sundance Festival
POR HELENA OLIVEIRA

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Amlan Ganguly começou a sua carreira como aprendiz de um dos mais reputados advogados criminais de Calcutá, na Índia. Mas cedo se desiludiu com um sistema legal que oferecia muito pouca justiça aos pobres, sem capacidade financeira para se defenderem ou para resistirem aos longos processos legais. Em 1999, e em conjunto com alguns amigos, resolveu criar uma organização sem fins lucrativos – a Prayasam – sedeada bem no coração de uma das incontáveis favelas que proliferam na paisagem indiana. O princípio subjacente à criação da ONG em causa assentava na capacitação dos mais novos para participar nas decisões e factores que poderiam afectar as suas vidas futuras. E, em 2006, pelo reconhecimento das suas ideias sobre educação, Amlan viria a tornar um Ashoka Fellow, ou membro da talvez mais conhecida associação de empreendedores sociais do mundo.

Há cinco anos, a realizadora de documentários Nicole Newnham e a médica e directora do Programa de “Bioética no Cinema” do Stanford University Center, Maren Grainger-Monsen, procuravam , um pouco por todo o mundo, histórias sobre agentes de grande mudança. O seu objectivo era ousado: encontrar pessoas que estivessem a tentar lidar com os gigantescos problemas da saúde global, problemas esses tão grandes que seriam quase impossíveis de resolver, mas tão maus que seria um pecado ignorar. Com uma lista alargada de possíveis temas, elencaram a poliomielite, o trabalho infantil, os direitos das raparigas ou as doenças causadas por águas contaminadas. O conceito original consistia em fazerem pequenos filmes, cada um deles dedicado a uma temática específica. E foi em 2007, quando conheceram Amlan Ganguly, que tudo mudou e que a nova aventura começou.

Como explica Grainger-Monsen, “enquanto estudante de medicina e, mais tarde, já como interna, tive a oportunidade de ter acesso a vários programas de saúde global que, na sua maioria, não passavam de remendos rápidos – ou era a oferta de um dispositivo médico ou arranjar uma equipa de médicos que voasse para determinado sítio para ajudar durante uma semana”. Para a médica, que tem na realização de filmes um hobby, não só este tipo de iniciativas possuí um impacto muito limitado, como podem até destabilizar o sistema de saúde existente. “Quando vimos o que Amlan estava a fazer com as crianças na Índia, de imediato nos apercebemos que era algo completamente diferente e verdadeiramente sustentável”, afirma.

Apesar de Amlan não ser, de todo, um director executivo típico, tem uma vantagem adicional: a sua câmara são as ruas. E quem trabalha numa favela, não precisa de ir mais longe para encontrar histórias de vida riquíssimas, apesar de os seus donos serem muito pobres. Mas a sua missão não é retirar as crianças e jovens com quem lida diariamente das ruas sujas e sombrias de Calcutá, mas antes algo ainda mais difícil. Amlan dedica-se, de alma e coração, a mudar o nível de aspiração (que começa e, geralmente, se mantém no zero) das pessoas com quem se envolve. Ou, de uma forma mais simples, o antigo advogado ensina as crianças a acreditar que é possível serem elas a fazer a diferença nas comunidades onde vivem ou, como o próprio afirma, “se conseguirem mudar a vossa mentalidade, também conseguem mudar o ambiente que vos rodeia”. E a premissa funciona. Assim que estas crianças se vêem a si mesmas como agentes da mudança, são elas que realizam acções que nem as grandes ONG se podem orgulhar de fazer, como por exemplo a transformação de um aterro de lixo num parque infantil, dando às raparigas o direito de brincar, processo que sob o olhar atento das lentes das duas co-realizadoras foi gradualmente filmado até estar terminado.

Depois de uma semana a viver em conjunto com Amlan e a sua equipa da Praysam, as realizadoras resolveram alterar de raiz os seus projectos iniciais. E ambição e um plano longo de produção começaram por ser as duas primeiras grandes mudanças: documentar, durante quatro anos, a mudança, a vários níveis, nas vidas de várias crianças e das suas famílias em Calcutá.

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Câmaras. Acção. Transformação.
“Acreditámos que o que faria sentido para tornar a história honesta e real – para que o documentário fosse muito mais do que um simples e fugaz olhar sobre determinada temática – seria seguir as mesmas pessoas durante alguns anos”, afirma Nicole Newnham, acrescentando uma verdade óbvia: se a ideia é imprimir uma mudança real na pobreza, não é possível esquecer que tudo leva tempo e, em particular, na temática em causa. E foi esse o processo que as realizadoras quiseram partilhar com os espectadores. “O modelo de Amlan é holístico, pois encoraja as comunidades a procurar a mudança em níveis múltiplos”, sublinha. E dá exemplos concretos: se quer ver mudanças nas doenças provocadas por águas contaminadas, há que encontrar forma de se arranjar água potável; se pretender acabar com o casamento infantil, há que oferecer uma empowerment em termos de educação às raparigas (e também e sobretudo aos pais); e se a ideia é ajudar as famílias a conseguir oferecer educação às suas filhas, é necessário que estas possam ter acesso a oportunidades económicas. Ou seja, todos estes passos estão inter-relacionados e não é possível saltar nenhum caso se pretenda chegar a qualquer lado. “Quisemos que o nosso filme mostrasse estas inter-relações e que demonstrasse o quão poderoso, apesar de lento, este método para diminuir a pobreza pode ser, o que exigia mantermo-nos agarrados à história e aos personagens à medida que os seus cenários interiores e exteriores se iam alterando”, sublinha Newnham.

Entrar na vida de crianças, em conjunto com a das suas famílias, e retratar a pobreza que se vive nas favelas, não foi tarefa fácil. Mais a mais, porque quando as realizadoras deram início ao seu projecto, o filme “Quem quer ser milionário” tinha acabado de estrear, o qual, apesar de ter ganho vários Óscares e ter apaixonado o mundo inteiro, não agradou a vários milhões de indianos que vivem na pobreza. Todavia e contando com a ajuda de dois realizadores indianos, Newnham e Grainger-Monsen conseguiram convencer os “actores reais” que a ideia não era retratar a sua pobreza, mas sim os diferentes estágios que, através do trabalho da ONG, lhes permitiria sair dela. Adicionalmente, foi feito um workshop de produção cinematográfica com as crianças e as suas famílias, o que lhes permitiu aprender e compreender o processo e o propósito das filmagens, aumentando substancialmente o grau de confiança no trabalho das realizadoras e também a parceria que acabou por se estabelecer entre “filmadores e filmados” (as próprias personagens acabaram por contribuir com várias cenas filmadas por elas próprias”.

Um outro aspecto pouco comum neste projecto foi o facto de, para além de um retrato intimista das vidas dos personagens, a equipa ter conseguido criar uma ferramenta tecnológica que ajudou estas crianças a levarem mais longe a sua vontade de se transformarem em jovens agentes da mudança. Um dos projectos de Amlan e da sua equipa da Praysam consistiu no mapeamento da comunidade como parte da sua luta para arranjar água potável – com base na recolha de dados sobre quão má era a situação da água em várias comunidades vizinhas e registá-los num mapa. A equipa de Newnham e Grainger-Monsen considerou ser pertinente adicionar alguma tecnologia a este projecto em particular e, em conjunto com os miúdos, desenvolveram o Map Your World, um projecto multiplataforma que permite às crianças utilizarem tecnologia móvel para melhorar a saúde das comunidades em que vivem. As duas realizadoras levaram Amlan a um laboratório de media em S. Francisco para o desenvolvimento do projecto. Neste momento, as crianças da Praysam estão já a trabalhar com a tecnologia em causa e a abrir caminho para que outros, no mundo inteiro, sigam as suas pegadas.

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Os revolucionários optimistas
Ano 2009
Shika e Salim, de 12 anos, são “melhores amigos” que vivem num bairro onde toda a gente tem de se levantar às quatro da madrugada, andar três quilómetros e carregar com recipientes cheios de água que vão buscar a uma outra favela para terem água potável nas suas casas.

Priyanka tem 15 anos e é a líder de um grupo de dança fundado por Amlam para manter as raparigas da favela na escola e de as dissuadir dos casamentos precoces impostos pelas famílias.

Kajal é uma rapariga de 12 anos que vive no interior de um campo de construção de tijolos, onde carrega os tijolos e sonha ser costureira. Depois de Amlam ter conseguido construir uma escola provisória dentro do campo, Kajal tem oportunidade de, pela primeira vez na sua vida, aprender e fazer ouvir a sua própria voz. Mas quando a sua mãe fica doente, ela e Amlan têm de arranjar um equilíbrio entre o seu desejo de aprender e de fazer a diferença e a sua necessidade de sobrevivência.

Ano 2013
Salim foi, desde tenra idade, um membro precoce do Dakabuko, um grupo de empowerment dirigido por um grupo de jovens na sua favela. Parte da inspiração para o seu trabalho de melhorar o acesso à água potável na sua comunidade deveu-se a uma doença de estômago que o manteve hospitalizado durante mais de um mês quando tinha 10 anos. Salim e a sua família são muçulmanos que se mudaram para uma favela de Calcutá à procura de melhores oportunidades. Nos quatro anos que durou o filme agora terminado, foi explorado o custo de não se ter acesso a água potável e os esforços de ambos os miúdos para colocarem um ponto final nesta situação. Depois da recolha de dados e de terem realizado um mapa com a indicação de todos os bairros que não têm acesso a água limpa, Salim e Shika tentam convencer o comité municipal a colocar uma torneira de água no seu bairro. Salim, em especial, transformou-se num dos líderes da Praysam com enfoque no acesso à água potável. Há dois anos, Salim foi convidado a contar a sua história no Parlamento Indiano, em Deli. O ano passado foi um dos oradores no fórum mundial organizado pela Skoll Foundation, em Oxfam, Inglaterra. Salim quer ser advogado.

Sikha juntou-se à Praysan há quatro anos por sugestão do seu melhor amigo, Salim. Desde então, tornou-se uma das vozes mais poderosas da sua comunidade na defesa dos direitos das raparigas. A sua “área de especialidade” centra-se na dissuasão das suas pares em se casarem precocemente, ao mesmo tempo que exorta a direitos iguais para as raparigas. Ajudou muitas meninas a poderem jogar futebol fora do campo da comunidade e a juntarem-se a rapazes em brincadeiras e jogos nos quais, anteriormente, as raparigas não podiam fazer parte. Foi a mais jovem participante a ser convidada para falar no National Girl Child Day, organizado pelo Ministério para o Desenvolvimento das Mulheres e Crianças em Nova Deli. E ali partilhou as suas experiências e os problemas enfrentados pelas raparigas, especialmente no que respeita ao casamento infantil e sobre as estratégias inovadoras que tem vindo a implementar na sua comunidade. É igualmente uma estrela do hóquei em campo. Com uma irmã fugida de casa e obrigada a casar ainda criança, os pais apoiam incondicionalmente a sua educação e sonhos. A Fundação Bill & Melinda Gates nomeou-a como “Heroína das Vacinas”(devido ao trabalho incansável que fez na sua comunidade alertando para a vacinação). Sikha realizou recentemente o seu primeiro filme e quer vir a ser ou advogada ou jornalista.

Pryanka tinha 15 anos quando as filmagens do documentário tiveram início. Enquanto líder do grupo de dança Allhadi, recebia uma pequena bolsa monetária. Membro da Praysan desde os oito anos de idade, era uma das grandes esperanças de Amlan na quebra do ciclo do casamento infantil e na aposta de uma carreira na dança. Mas e como o filme mostra, Priyanka não foi capaz de evitar o seu destino, optando pelo casamento devido a um conjunto de abusos que sofria em casa. Este ano, Pryanka deu à luz uma menina, mantendo a difícil esperança de voltar a ser professora de dança. Mas continuará a lutar para que a sua filha não tenha um destino semelhante ao seu.

Kajal é apenas uma das nove milhões de crianças indianas que vive e trabalha no interior de um campo de tijolos. Na altura em que começaram as gravações do filme, Kajal tinha penas 12 anos, mas já passava muitas horas diárias ao sol a carregar tijolos à cabeça e nunca tinha assistido a nenhuma aula na escola. Não conseguia perceber nem letreiros nem símbolos e não sabia contar as poucas moedas que lhe davam para pagar o seu trabalho. Durante as filmagens, a sua mãe adoeceu e Kajal tornou-se na única fonte de rendimento da família. Agora com 16 anos, Kajal conta com a ajuda e persistência de Amlan para continuar com a sua educação, apesar do seu trabalho a tempo inteiro a carregar tijolos no mesmo campo onde, há duas gerações, também a sua avó trabalhava. Kajal desenvolveu, ao longo deste tempo, um interesse particular pela fotografia e é ela a responsável por ilustrar, com as fotografias que tira, as publicações realizadas pela Prayasam.

Amlan, Shika e Samil, Priyanka e Kajal são as personagens principais do documentário The Revolutionary Optimists: How far would you go to change your world?, vencedor de um prémio do Sundance Institute, uma organização sem fins lucrativos, apadrinhada por Robert Redford e que tem como principal missão a narrativa de histórias de coragem dos muitos que tentam mudar o mundo.

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