Para um dos mais reputados especialistas em gestão e por mais chocante que pareça, sim. O mais recente livro do reconhecido professor de Stanford, Jeffrey Pfeffer, não só é provocador, como nega tudo o que tem vindo a ser “vendido” como as características cruciais inerentes a uma boa liderança e consequente envolvimento dos trabalhadores. Num livro politicamente nada correcto, Pfeffer acusa a poderosa indústria da liderança de nada fazer para criar bons líderes, simplesmente porque “doura a pílula” e não assume a verdade do que se passa nas elites organizacionais. Um livro cujas receitas, se mal interpretadas, poderão causar uma dolorosa indigestão
POR
HELENA OLIVEIRA

E se de repente tudo o que sabemos, escrevemos e defendemos sobre as características de um bom líder fossem, aparentemente, deitadas no lixo por um dos mais prolixos autores sobre liderança, reconhecido docente de Stanford e professor visitante das maiores escolas de gestão do mundo, como a London Business School, a Singapore Management University, a IESE Business School, Harvard, entre outras?

A resposta não é propriamente fácil, na medida em que o mais recente livro de Jeffrey Pfeffer “Leadership BS: Fixing Workplaces and Carreers One Truth at a Time”, tanto pode ser considerado como um encorajamento para se aceitar uma verdade nua e crua – a de que a liderança inspiracional e autêntica é uma fraude e há que o reconhecer para se partir para uma mudança efectiva da mesma – ou como um incitamento à defesa (apesar de não concordar com ela) de que apenas aqueles que sabem manipular, mentir e procurar satisfazer os seus próprios interesses conseguem vencer nos ambientes tóxicos que, inevitavelmente, são produzidos nas organizações.

Assim, e antes de passarmos ao conteúdo da nova obra de Pfeffer, a sugestão é para que não se tirem conclusões precipitadas da mensagem que o professor de Stanford quer passar. O próprio autor cita, neste livro, os seus críticos, que o acusam de estudar “escorpiões, aranhas e baratas” ou os líderes desagradáveis, em vez dos que são inspiradores e dão origem à maioria das histórias de gestão cor-de-rosa de sucesso, descrevendo-se a si mesmo meramente como um “realista” que não vai em contos de fadas, mas sim como alguém que, através de dados empíricos e científicos, consegue perceber que as organizações são tóxicas por natureza e que os executivos de topo que maior eficácia alcançam não são nem autênticos, nem modestos e muito menos confiáveis.

Feita esta “nota prévia”, passemos ao que de importante pode conter esta obra, a qual faz parte das nomeadas para o Prémio de Melhor Livro de Gestão, anualmente promovido pelo Financial Times e pela McKinsey.

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As falsas premissas e promessas da indústria da liderança

A formação empresarial, nos Estados Unidos, representa um mercado no valor de 70 mil milhões de dólares, dos quais 35% são gastos, especificamente, na melhoria das competências em gestão e liderança. Livros, workshops, conferências, sessões de formação, vídeos de discursos inspiradores, blogs, consultoria “aplicada”, tudo serve para ajudar empregadores e empregados a melhorar a sua performance e, por conseguinte, a das organizações, com o objectivo de cumprirem a sua missão, maximizar os seus lucros e, de preferência, ainda, a dos demais stakeholders.

Este discurso, repetido infinitas vezes, sustenta a rica indústria da liderança e tem vindo, ao longo das últimas décadas, a alimentar uma receita com os ingredientes certos para se definir o líder empresarial bem-sucedido: credível e autêntico, modesto, com os níveis certos de empatia e inteligência emocional e, mais importante que tudo, que sirva os interesses dos outros – em particular e em primeiro lugar os de quem com e para quem trabalha – em detrimento dos seus próprios.

Até aqui nada de novo. O problema é que, de acordo com Jeffrey Pfeffer, independentemente de quão “bons” são os livros – o próprio é autor de 14 -, os discursos dos pretensos especialistas em liderança, as lições fornecidas pelas consultoras ou os próprios cursos ministrados por entidades variadas, nem os líderes estão a ficar “melhores, nem os colaboradores estão mais felizes”. Pelo contrário, são muitos os executivos estão ser despedidos por falharem os seus objectivos e é cada vez maior o número de empregados que afirma sentir-se completamente desmotivado com o trabalho e com a empresa que lhe paga o salário ao final do mês.

E a quê que se deve este fracasso? Para o autor, por três razões por excelência.

A primeira está relacionada com a ausência de uma avaliação real tanto no que diz respeito à formação como à consultoria em liderança. Por exemplo, quando um consultor ou outro “especialista” promove um seminário sobre o tema, como é que sabe se o mesmo é bem-sucedido? Não através do desenvolvimento de métricas rigorosas e subsequente avaliação dos seus resultados na vida dos participantes e das empresas, mas sim perguntando aos que o frequentaram se gostaram ou não do mesmo.

Numa entrevista realizada a Pfeffer pela revista Forbes e intitulada “O que a maior parte das pessoas não sabe sobre liderança”, o autor, que não se cansa de afirmar que o seu trabalho se baseia em dados e não em suposições, cita informações e documentação da consultora McKinsey e do Institute for Corporate Industry que comprovam que a forma mais comum de se avaliar a formação em liderança é através de “folhinhas com carinhas sorridentes”.

No 1º capítulo do seu livro, intitulado “Por que motivo a inspiração e as fábulas causam problemas e não resolvem nada” disponibilizado gratuitamente na Internet (e cuja leitura é vivamente aconselhada), Pfeffer conta uma história que demonstra bem o que, a seu ver, está completamente errado na forma como se interpreta o “ensino” da liderança na actualidade.

29102015_PorDefeitoSao3Em Maio de 2013, e numa sessão de encerramento de um dos seus cursos sobre o poder nas organizações, em Barcelona, Pfeffer foi abordado por um participante que se queixou agressivamente de se ter sentido lesado com os conteúdos programáticos ensinados pelo professor e, em particular, pelo facto de não se ter sentido por ele “inspirado”. Pfeffer respondeu: “se você pretende inspiração, assista a uma peça de teatro, leia um livro inspirador, ouça boa música, vá a um museu de arte ou leia alguns dos grandes tratados sobre religião ou filosofia. Eu sou um cientista social e não um pregador leigo”. O participante, desinibido por umas boas doses de bebida, insistiu: “Não. Enquanto professor de gestão, a sua função é a de me inspirar”. Mais tarde, e em conversa com um estudante de MBA, Pfeffer apenas confirmou as suas dúvidas: “O nosso trabalho esmaga-nos a alma. E é por isso que precisamos de esperança [ou de inspiração]”.

“Se é um líder à procura de uma mudança legítima e eficaz no que respeita ao envolvimento, satisfação e produtividade dos seus colaboradores, ou se é um individuo que procura traçar uma rota para uma carreira de maior sucesso, não é de inspiração que precisa, mas sim de factos, evidências e ideias”, argumenta.

Sublinhando que é altura de enfrentar a verdade e não idealismos inúteis, Pfeffer escreve que a inspiração não só é uma base pobre a partir da qual se pode tentar levar a cabo uma mudança organizacional séria, como é igualmente inútil quando se tenta perceber o que é realmente necessário para se ter sucesso pessoal no interior das organizações.

Ou, e de regresso à inexistência de métricas adequadas à avaliação do que é “vendido” nesta indústria, se as experiências de desenvolvimento em liderança são avaliadas de acordo com o seu valor de entretenimento (gostei e coloco uma carinha feliz), o que as pessoas recebem em troca é, também, entretenimento, acusa, apontando para uma espécie de ciclo vicioso que se perpetua e impede que hajam mudanças significativas nesta área: as pessoas querem coisas erradas [as que reclamam por formação “inspiracional”], os consultores sentem-se felizes aos lhes darem o que elas querem [histórias de sucesso ou “lendas” como as que são personificadas por Mark Zuckerberg, Richard Branson ou Steve Jobs] e, no final, nada funciona. Ou, por outras palavras, o argumento que é sempre central ao livro no que respeita ao fracasso da indústria da liderança deve-se às “recomendações” e “exemplos” que os seus responsáveis propagam e que têm como base o mundo ideal e não o mundo em real. Mas lá chegaremos.

A segunda razão explica ainda melhor por que motivo Pfeffer é tão atacado pelos seus críticos. É que o professor não tem qualquer prurido em afirmar que, nesta indústria, não existem “barreiras à entrada”. Ou seja, quase qualquer pessoa, com ou sem credenciais sérias, pode iniciar um blog, escrever um livro ou desenvolver e ministrar um seminário sobre liderança. Como afirma, “muitos denominados especialistas em liderança nunca estivem numa posição de liderança, ou estiveram, mas falharam ou são defensores de um estilo de liderança que é muito diferente do que aquele que praticaram enquanto foram líderes. Na entrevista à Forbes já citada, Pfeffer recorda um ranking publicado em 2014 pela revista Inc. relativo aos 50 Especialistas em Gestão e Liderança, no qual e nos 20 primeiros lugares, um dos classificados não tinha nenhum grau académico, apenas cinco tinham formação em áreas relevantes e dois tinham doutoramento em Religião. E todos estes “especialistas” se auto-descreviam como “oradores”.

A terceira e última razão para a falácia desta indústria é, talvez, a mais interessante no que ao resto do livro diz respeito, na medida em que consiste num significativo paradoxo, ignorado pela maioria das pessoas: “aquilo que é bom para uma empresa pode não ser bom para o líder e vice-versa”, escreve o autor. E ao Financial Times confessou, depois de ser questionado se o que o mais preocupava era o estado da indústria da liderança ou o estado da própria liderança, que nem um nem o outro lhe tiram o sono. Na verdade, uma das suas mais deprimentes conclusões – e são várias as que o livro enumera – “é a de que os líderes e aqueles que escrevem sobre eles – os primeiros porque são narcisistas focados no seu próprio interesse e os segundos porque tornam a sua pregação mal orientada extremamente popular – irão continuar a sair-se muito bem”. Pelo contrário, o que realmente o preocupa são “os seres humanos que têm carreiras ‘estropiadas’ e percursos ‘descarrilados’ e que trabalham em locais que são, literalmente, expostos a condições tão tóxicas como as dos fumadores passivos”.

Em resumo, e como possibilidades de tornar mais credível e eficaz este poderoso e rentável mercado, Pfeffer oferece algumas soluções como a de se prestar uma maior atenção – e consequente implementação – de métricas e responsabilização nas ofertas das competências em liderança, um rigor muito maior e mais apertado no que respeita às credenciais destes “especialistas” e o reconhecimento de que os interesses dos líderes podem ser – e são, na maioria das vezes – diferentes dos das empresas. O que pode parecer um receituário difícil de interiorizar é, para o professor de Stanford, condição sine qua non para o aumento da qualidade dos líderes. Enquanto a sua qualidade – bem como a das práticas de desenvolvimento em liderança –não for devidamente avaliada, nada mudará. “A indústria da liderança está tão obsessivamente concentrada no normativo – o que os líderes devem fazer e de como as coisas têm de ser – que tem vindo a ignorar, largamente, a pergunta fundamental: o que é realmente verdadeiro e porquê”, sublinha ainda.

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Mitos e fábulas ou porque os líderes que temos não são os que idealizamos

Na esmagadora maioria da literatura sobre liderança e quando se fala sobre as características que um bom líder deve possuir, os ingredientes não têm mudado significativamente. Mas é verdade que, em particular nos últimos anos – e como o VER tem também vindo a dar a conhecer – , alguns traços em particular têm vindo a ser veiculados como aqueles que “fazem” um bom líder, principalmente nas empresas que estão a adoptar estilos de liderança menos hierárquicos e mais colaborativos. Mas e à luz do que escreve Jeffery Pfeffer nesta sua mais recente incursão na escrita, uma coisa é que o idealmente desejamos e outra é o que realmente se observa nos lugares de topo da maioria das grandes empresas. Por outro lado, é também verdade que são vários os autores e estudos que comprovam que existe um “enorme vazio na liderança” e que as organizações no geral não têm o estilo de liderança que é actualmente necessário para satisfazer todos os stakeholders, internos e externos.

E é sobre esta “verdade” que Pfeffer alerta no seu livro. Se a generosidade, a capacidade de inspirar, a confiabilidade, a autenticidade, a modéstia e a liderança de serviço constituem os “nice to have” nas elites de executivos que gerem as empresas, para o professor de Stanford, são muito poucos os líderes, em particular nas grandes organizações, que ostentam estes traços de carácter. Muito pelo contrário. Como exemplifica no livro, a maioria dos mais reconhecidos e admirados CEOs do mundo – como Bill Gates, Steve Jobs ou a mais antiga “lenda” da gestão e ex-CEO da General Electric, Jack Welch – exibem traços e comportamentos narcisistas. “A imodéstia em todas as suas manifestações – o narcisismo, a autopromoção, a ‘auto-glorificação’, o excesso de autoconfiança – ajuda as pessoas a alcançarem posições de liderança [mais do que qualquer outra coisa] e, assim que assumem os seus lugares de topo nas organizações, estas características afectam positivamente a sua capacidade para nelas se manterem, para delas extraírem mais recursos [bons salários] e até constituem uma boa ajuda em alguns, se bem que não em todos, aspectos da sua performance no cargo”, escreve.

O que nos leva a outro paradoxo, citado pela revista Fortune e presente também livro de Pfeffer. “Um estudo que envolveu 392 CEOs ao longo da crise financeira demonstrou que devido ao facto de os narcisistas terem a tendência para olharem sobretudo para o seu umbigo e de ‘sofrerem’ de excesso de confiança, as empresas lideradas por CEOs significativamente narcisistas tiveram uma pior performance no início da mesma. Todavia, e também porque os narcisistas têm uma maior propensão para a acção e para a tomada de risco, o mesmo estudo comprovou que estes mesmos CEOs foram também os mais bem-sucedidos ao longo da recuperação pós-crise”.

Pfeffer insiste também, na entrevista à Forbes, no facto de um dos principais dilemas da liderança residir no facto de que as qualidades e comportamentos que contribuem para que se tenha carreiras de sucesso – para além do narcisismo e seus derivados, a capacidade para prevaricar com competência e sem remorsos, o dom para fingir ou se interpretar papeis de acordo com as circunstâncias (mesmo que sejam “contra” a moral dos protagonistas), entre outras – são, em simultâneo, qualidades e comportamentos que não produzem, necessariamente, bons resultados em grupo ou locais de trabalho saudáveis.

Adicionalmente, quando as grandes empresas estão a recrutar um CEO ou um executivo, a sua preferência recai exactamente nos líderes que demonstram comportamentos narcisistas, imodestos e de “grandiosidade”. O que para Pfeffer consiste numa das maiores barreiras para que se privilegiem líderes que possam criar locais de trabalho bem diferentes – e mais saudáveis – do que é norma nos ambientes organizacionais da actualidade.

Defendendo também que, actualmente, a questão da autenticidade do líder está absolutamente sobrestimada – é uma das características mais facilmente “vendável” na indústria da liderança – Pfeffer afirma que, pelo contrário, “uma das mais importantes competências da liderança reside na capacidade para se fazer teatro”, de se “interpretar o papel do líder, de forma a inspirar confiança e conquistar apoio”, mesmo que a pessoa em causa que está a executar esta performance não se sinta genuinamente confiante ou com o poder que aparenta ter.

Em síntese, a mensagem – por mais politicamente incorrecta que pareça – que Pfeffer pretende transmitir é a de que “seria tudo mais fácil se aceitássemos que os nossos líderes, no geral, não são nem verdadeiros, nem de confiança, nem tampouco modestos ou autênticos, o que é exactamente o oposto das mensagens que são veiculadas pelas histórias populares de liderança motivacional que estamos habituados a ouvir”.

Reconhecer que o principal problema desta indústria ´reside na desconexão entre aquilo que desejamos que os nossos líderes sejam e a forma como os mesmos gerem verdadeiramente as organizações será o primeiro passo para que uma mudança efectiva e eficaz tenha lugar no mundo organizacional.

Apesar de deprimente e pessimista, esta é a visão do autor. E talvez seja melhor enfrentar a realidade, por mais crua e feia que pareça. Um livro difícil que obriga, necessariamente, a questionar o que sabemos, o que queremos e o que pode ser ou não alcançado numa liderança que não se limite a ser ideal, mas genuína.

Editora Executiva

3 COMENTÁRIOS

  1. Helena Oliveira, obrigada pelo exercício de reflexão que propôs ao leitor – sobretudos àqueles que se interessam por estes temas, como é o caso. O livro de Jeffrey Pfeffer – que ainda não li, mas prometo vir a ler – parece-me um verdadeira “pedra no charco”. Excelente contributo de reflexão. Obrigada mais uma vez.

  2. Um líder é aquele que já o é antes de o ser.
    Um líder não se faz na escola, aperfeiçoa-se.
    Se não tens dotes para a musica, nunca serás excelente.
    Os grandes lideres históricos não passaram por nenhuma academia de gestão.
    Deduzo desta simples analise, que os 70 mil milhões de dólares gastos nessa industria, seriam muito mais bem aplicados noutro tipo de formação ou numa verdadeira industria.

  3. Mais uma tentativa de aceitação passiva do neoliberalismo financeiro puro e selvagem.

    Este autor não quis ir mais ao fundo da questão, apenas para defender o seu própio interesse numa certa mentalidade (Universidade de Stanford). O tipo de “líder” (que na realidade é apenas uma pessoa oportunista) descrito, nunca transforma a organização num local de excelência, nem satisfaz nenhuma necessidade básica do consumidor, e muito menos cria algo eterno para a sociedade. Em determinados casos (Bill Gates, Mark Zuckerberg, Richard Branson ou Steve Jobs), o que faz deles campeões em determinados mercados (sistemas operativos informáticos, “redes sociais”, viagens e música e aplicações para telemóveis), é o próprio mercado em que atua e o respetivo tipo de consumidor que o suporta, ou seja, pessoas com personalidade um pouco irracional, frágil e débil, e com um vazio existêncial que só se sente saciado quando adquire bens e serviços fúteis e inúteis, mas que não preenchem esse mesmo vazio existêncial (ninguém come telemóveis, nem cria laços reais, fortes, efetivos e duradouros com uma “rede social”).

    Os casos mencionados apenas funcionam em mercados passageiros da moda criados e fomentados por pessoas oportunistas, que acabam por se auto-canibalizar, e um dia caem. São só aparências.

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