Sendo verdade que existem outros problemas sociais que, por razões emocionais, ou até de proximidade, nos são mais caros e para os quais estamos mais sensibilizados, não podemos aceitar que uma sociedade distinga cidadãos, em que uns merecem segundas oportunidades e outros não, em que uns merecem ser ajudados e outros não. E depende de todos mudar esta realidade
POR DUARTE FONSECA

Todo o Homem é maior que o seu erro. Foi esta frase que alguns dos fundadores da Associação RESHAPE ouviram em 2009 e que deu o mote para aquilo que hoje desenvolvemos, acreditamos, e tentamos implementar em Portugal. Se acreditamos verdadeiramente que todos podemos ser maiores que o nosso passado, que os nossos erros, então, não podemos aceitar, enquanto sociedade ter um sistema prisional como aquele que temos atualmente. Um sistema que se estima (não existem dados publicados e estudos feitos) que 6 em cada 10 pessoas que saem da prisão voltam a cometer crimes. Só este dado representa anualmente um custo para os cofres do estado de 140 Milhões de Euros sem retorno. O problema não é gastar-se muito, o problema é gastar-se muito sem resultados.

Sendo verdade que existem outros problemas sociais que, por razões emocionais, ou até de proximidade, nos são mais caros e para os quais estamos mais sensibilizados, não podemos aceitar que uma sociedade distinga cidadãos, em que uns merecem segundas oportunidades e outros não, em que uns merecem ser ajudados e outros não. Não poucas vezes, julgamos que a melhor maneira de proteger a sociedade e garantir a segurança, é encarcerar, o mais longe possível da “vista”, e isolados das comunidades, garantindo assim a segurança. Acontece, que essa aparência de segurança não é mais do que varrer o pó para debaixo do tapete, ele continua lá, e quando levantamos o tapete (e em Portugal ninguém fica preso para sempre) o pó que lá estava, transformou-se num pequeno monstro de cotão. 

A melhor segurança para a sociedade é a reinserção, pessoas dignas e que contribuem para a sociedade. A RESHAPE tem já vários casos de sucesso, que hoje são pais de família, trabalham, pagam impostos, criam poupanças para quando acontecem imprevistos, em resumo, estão inseridos e são cidadãos de plenos direitos e deveres. A reinserção e a segurança são dois lados da mesma moeda. Um não vive sem o outro, mas insistimos enquanto sociedade que a Segurança se resume a fechar as portas à chave.

A RESHAPE acredita e trabalha diariamente para transformar as prisões, para que deixem de ser escolas de crime para passarem a ser escolas de vida, de sonhos e de oportunidades. Acreditamos que é preciso redesenhar as prisões, deixarmos de ter grandes instituições, para passarmos a ter Casas de Detenção, de pequena dimensão, inseridas nas comunidades e na vida quotidiana da cidade (assim como temos escolas, esquadras, serviços do estado, restaurantes e cafés). Para chegarmos a esta visão que a associação tem, trabalhamos em duas grandes áreas.

A área de Advocacy, onde pretendemos sensibilizar a sociedade e influenciar políticas públicas. Porque a reinserção não acontece sem uma comunidade forte, onde as empresas não olham para o currículo criminal, mas para o potencial da pessoa e onde nós, em geral, não julgamos. Nesta área dou apenas o exemplo do evento anual que fazemos, o Prison Insights, onde de forma informal damos a conhecer o potencial que existe e todo o trabalho que está por fazer. É um evento de comunidade, onde empresas, associações, fundações, pessoas que estiveram presas, governo, e profissionais do setor, se juntam, para criar pontes, redes e mais impacto. Sabemos hoje de vários projetos que tiveram o seu início a seguir ao Prison Insights por contactos e ideias que aí foram gerados.

Na área de Apoio Social, aquela pela qual acabamos por ser mais conhecidos, temos diversos serviços, pois não queremos esperar que o sistema se transforme e seja perfeito, para ajudar quem mais precisa. Nas prisões, estou convencido por toda a minha experiência, encontramos os mais pobres dos mais pobres da nossa sociedade. Gente desprovida de qualquer apoio social (inclusive pelo estado social, pois são cidadãos de segunda), sozinhas no mundo, sem qualquer sonho (talvez a maior pobreza de todas, não existir a capacidade de vislumbrar qualquer possibilidade de futuro positivo, ou de acreditar que a vida poderá dar a volta), gente sem Esperança e sem Amor. 

E arrisco-me a dizer, a culpa é nossa, de todos. Nesta área, temos três grandes intervenções. 

  • A Academia Reshape, implementada em 4 estabelecimentos prisionais em Portugal por uma equipa de voluntários, comprometidos, um programa de desenvolvimento de competências sociais, mas acima de tudo, um programa onde relações sociais positivas são criadas, onde a Esperança pode voltar a ganhar espaço.
  • O Gabinete Reshape, é um apoio individualizado que começa a ser dado a todas as pessoas que queiram e que estão a seis meses do final da pena e que continua depois em liberdade até à plena reinserção e autonomia.
  • E por fim, a Reshape Ceramics, a “jóia da companhia” (pelo menos a julgar pela divulgação e notoriedade). A Reshape Ceramics  é um negócio social que com dois locais de produção (um dentro da prisão e outro fora da prisão) emprega pessoas que estão ou estiveram presas, e que cria oportunidades de reinserção concretas. Contudo, o maior feito da Reshape Ceramics é ser uma bandeira, é mostrar às empresas o valor inestimável, económico e social, que reside abandonado nas nossas prisões e mostrar às pessoas (clientes) o talento e capacidade que existe. Muitas vezes tive a reação a peças da Reshape Ceramics, “mas isto foram mesmo eles que fizeram?”, como se se tratasse de pessoas sem capacidades, e tudo por um estigma criado e um preconceito que temos muto provavelmente que vem dos filmes, séries e documentários (tipicamente americanos).

Assim, se me é permitido lançar algum desafio este Natal, para além do óbvio de vos desafiar a comprarem presentes de impacto com a Reshape Ceramics, é que este Natal possam usar algum do vosso tempo a pensar (a rezar) naqueles que estão presos, abandonados, fechados numa cela (que devido às greves típicas e recorrentes desta altura do ano pode chegar às 22 horas diárias na cela). Pensem no que em geral todos sofremos durante os confinamentos no conforto das nossas casas, e agora imaginem-se 6, 7 ou 10 anos assim. A seguir se puderem, peguem nessa reflexão, nessa oração, nesse pensamento, e arregacem as mangas, porque Depende de Todos mudar esta realidade.

Duarte Fonseca

Nasceu na cidade do Porto, onde se formou em Terapia Ocupacional e trabalhou durante um ano numa prisão. Trabalhou durante quatro anos na Beta-i como consultor de inovação e durante três anos na Associação Just a Change. É atualmente Diretor Executivo da RESHAPE, uma associação que cofundou em 2015, que tem como missão garantir a reinserção digna de todas as pessoas que estão ou estiveram presas e que promove o negócio social Reshape Ceramics. Faz parte da comunidade Global Shapers do World Economic Forum desde 2019.