Poder pode, mas apenas se existirem abordagens multilaterais, cooperação e lideranças de qualidade que reconheçam a existência de bem públicos comuns que pertencem a toda a Humanidade e que devem ser preservados por todos. Esta foi a mensagem principal deixada pelo ex-presidente da Comissão Europeia que, numa conferência online promovida pela AESE, centrou o seu discurso na “má fama” da globalização e nas formas possíveis de lhe conferir valores mais humanistas, essenciais para enfrentar as crises que assolam o planeta
POR HELENA OLIVEIRA

Poderemos ter uma globalização baseada em valores? Pode a globalização ser uma força para o bem? Pode a globalização ser moldada de forma a respeitar os valores do humanismo?

Quem o questiona, e à laia de introdução, é Durão Barroso, na conferência online promovida pela AESE Business School que juntou, para além do homem que esteve ao leme da Comissão Europeia ao longo de 10 anos, um Nobel da Economia e um Cardeal (v. artigos nesta edição) para discutir o impacto que a globalização e a evolução tecnológica têm tido na construção de um Novo Humanismo em várias dimensões da sociedade.

À discussão, e como salientou, o actual presidente não-executivo do banco Goldman Sachs International quis trazer a vasta experiência que coleccionou ao longo da sua carreira política, em particular a sua perspectiva europeia, sublinhando a enorme necessidade – ainda mais pronunciada depois do aparecimento da Covid-19 – de “uma liderança de qualidade” a par de “uma abordagem multilateral”.

Começando por afirmar que “a globalização não tem boa fama” e que tem vindo a ser atacada tanto pela extrema-direita como pela extrema-esquerda considera, contudo, que os desafios mais recentes e observados tanto na Europa, como na América ou na Ásia – nomeadamente o aumento das políticas identitárias, nacionalistas e populistas – servem como “uma espécie de defesa”. É que, para muitas pessoas, diz, “a globalização tem vindo a ser considerada como uma espécie de capitalismo que não respeita alguns valores, nomeadamente os da identidade nacional ou os valores sociais”. E avança que tal como aconteceu com a crise financeira de 2008, a pandemia que estamos a viver acelerou e intensificou algumas tendências que já existiam antes, não só as relacionadas com as tensões geopolíticas – cujos principais protagonistas são os Estados Unidos e a China – mas também tendo em conta os nichos de relocalização das cadeias de valor, “porque as pessoas têm medo, e este é, geralmente, um factor que ajuda as sociedades a fecharem-se, a procurarem proteger-se e a reagir contra o que vem de fora”.

Referindo-se também à tecnologia, Durão Barroso aponta-lhe alguma ambivalência, enumerando os seus amplos progressos e as suas grandes promessas, acreditando que a mesma poderá originar um futuro promissor, apesar dos vários riscos que também acarreta. Todavia, é na “fluidez do conceito de humanidade” que pretende centrar as suas ideias.

Afirmando que, por vezes, “as fronteiras entre o que é humano e o que é animal, em termos técnicos, não é muito clara, na medida em que existem ideologias que apresentam o homem como uma espécie de animal”,a Durão Barroso interessa, sobretudo, focar-se nas qualidades irredutíveis e essenciais do ser humano, fazendo, em simultâneo, a ponte para os tais progressos tecnológicos anteriormente referidos: a ideia, que não é ficção científica – “de que num futuro não muito distante, teremos humanos híbridos, com a implantação, no seu corpo, de dispositivos tecnológicos”, poderá levar, segundo vários especialistas da área, a que “os humanos não sejam inteiramente humanos e que até algumas emoções e raciocínios poderão vir a ser tecnológicos”, o que, “e a partir de uma perspectiva humanista, pode realmente transformar-se num problema”, alerta.

Voltando à globalização, também ela crescentemente considerada como um problema, o ex-presidente da Comissão Europeia recorda os anos complexos da crise financeira – afirmando ter orgulho nas mais de 40 medidas para regular o sector financeiro que foram lançadas durante a sua comissão – e sublinha que para encontrar o equilíbrio certo em tempos de crise, “é necessário um trabalho nacional, mas também global”.

E defende, tendo em conta o modelo da economia social de mercado – conceito com origem na Alemanha do pós-guerra, seguido essencialmente por pessoas pertencentes à ala da democracia cristã, como Konard Adenauer, na Alemanha, ou Robert Schuman, em França – a existência de “economias de mercado com vocação social”, as quais podem contribuir, pois permanecem actuais, para a construção de economias abertas, mas com uma forte componente social que coloca, antes de mais, o ser humano no seu centro. Paralelamente, enuncia a “religião dos Estados e a religião dos mercados como dois deuses que não devemos venerar” e apresenta a mesma economia social de mercado como a que “evita o radicalismo das posições extremas ou do que é muitas vezes denominado como liberalismo selvagem”. Ou seja, reforça a importância dos valores sociais como pilares de um globalismo que deve tender para o bem, promovendo, em simultâneo um maior humanismo. Mas como podemos ganhar este mesmo globalismo?

A urgência da abordagem multilateral e de lideranças de qualidade

Num mundo multipolar, onde existem poderes e agendas concorrentes, bem como abordagens diferente no que respeita, em particular, aos direitos humanos, e por muito difícil que tal possa parecer, “a resposta reside na luta por uma abordagem multilateral”, assegura Durão Barroso. E afirma que é imperioso reconhecer que existem bens públicos comuns, que pertencem a toda a humanidade, e que servem para preservar o planeta e o ambiente, para lutar contra as alterações climáticas, para combater o terrorismo internacional e para lidar com as pandemias. Ou seja, e por muitas diferenças que existam em termos de regimes políticos, “percebemos que devemos cooperar, exactamente porque existem esses mesmos bens públicos”, defende.

A seu ver, esta ideia de cooperação internacional é extremamente importante e a melhor forma de a colocar em prática é através “do diálogo, do envolvimento com aqueles com quem discordamos, tentando encapsular esses desacordos, circunscrevendo-os e não deixar que as ideologias políticas contaminem todas as agendas”. E tudo isto porque “o que está em causa é o conceito de humanidade”, reforça.

Citando um personagem dos livros do escritor e filósofo russo Fiódor Dostoiévsky que afirmava “o meu pai amava a humanidade no geral, mas odiava cada individuo em particular”, Durão Barroso questiona, mais uma vez, o que devemos entender por “humanidade”, conceito que a seu ver é demasiado generalista. “Podemos ter um conceito de humanidade no qual abordemos as preocupações de cada um dos seres humanos em particular?”, questiona, afirmando ainda não concordar de todo com as palavras utilizadas pela ex-primeira ministra britânica, Theresa May, quando no seu discurso após o referendo do Brexit afirmou que “se acredita que é um cidadão do mundo, então é um cidadão de lugar nenhum”. Porque “sou português, patriota, mas sou também um cidadão europeu, acredito que temos sempre de ter em atenção o outro”, sendo completamente errado “colocar os Estados e as nações acima das pessoas”, acrescenta ainda.

“E é por isso que temos de trabalhar em conjunto, o que parece uma ideia simples, mas muito difícil de implementar”, dando o exemplo de que, neste combate para enfrentar a crise provocada pela pandemia, é necessário apoiar significativamente os países em desenvolvimento. “Se chagarmos a uma vacina, temos de assegurar que a mesma não ficará só disponível para os países ricos, mas para todos os países do mundo”, frisa, acrescentando que esta ideia não é um conceito abstracto e que é imperioso ter uma globalização que funcione para toda a gente. Se tal é possível, não sabe. “Porque o futuro depende de decisões que ainda não foram tomadas e porque essas mesmas decisões dependem da liderança”, a questão mais crítica coloca-se exactamente na “qualidade” dessa mesma liderança. E esse é o debate que tem de ser feito.

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