É já um facto histórico: pela primeira vez, mais de 200 publicações da área da saúde publicaram um editorial conjunto para alertar os líderes mundiais para a situação catastrófica do planeta, os quais se irão reunir em Glasgow para a Conferência Geral das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP26) em Novembro próximo. E este grito de alerta conjunto tem já em consideração o 6º relatório publicado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas que concluiu que o planeta está a aquecer mais e a um ritmo sem precedentes. No cerne da questão está incluído o facto de que se muitos governos enfrentaram a ameaça da pandemia da Covid-19 com um financiamento sem precedentes, por que motivo não assumem de uma vez que a crise ambiental exige uma resposta de emergência semelhante?
POR HELENA OLIVEIRA

Pela primeira vez na história, mais de 220 publicações da área médica e científica, de geografias diversas, acordaram na publicação de um editorial conjunto com a pretensão de o mesmo ser lido na Assembleia Geral da ONU, com início a 21 de Setembro e que será a última reunião a preceder a Conferência Geral das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas – a COP26 – que terá lugar em Novembro, em Glasgow, na Escócia. O objectivo? Um grito de alerta dirigido aos líderes mundiais sobre o tempo que se escoa para fazer face à catástrofe climática que, independentemente de todos os dados científicos ignorados por muitos, tem vindo a ser crescentemente testemunhada um pouco por todo o mundo através de eventos climáticos extremos que afectam as populações, a biodiversidade, o equilíbrio do planeta e a saúde de todos nós. 

A iniciativa partiu da UK Health Alliance on Climate Change (UKHACC) que considera este momento crucial para exortar todos os países a apresentarem planos climáticos reforçados e mais ambiciosos para honrar os objectivos do Acordo de Paris e tendo em consideração o mais recente relatório publicado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), que contou com a mais abrangente análise sobre o clima desde 2014, e para a qual contribuíram mais de 230 cientistas, de 66 nacionalidades e com base em cerca de 14 mil estudos publicados.  Num ano de Covid-19 e de conferências ambientais cruciais, o editorial adverte que a maior ameaça à saúde pública global no futuro é o fracasso contínuo dos líderes mundiais em tomar medidas adequadas para manter o aumento da temperatura global abaixo de 1,5°C e para restaurar a natureza. Como comenta Richard Smith, Presidente da UKHACC, e um dos co-autores do editorial, “os profissionais de saúde há muito que se preocupam com os danos para a saúde decorrentes das alterações climáticas, mas as nossas vozes não têm sido ouvidas no debate global. Esta publicação conjunta sem precedentes espelha a nossa preocupação conjunta e como queremos fazer parte da acção sobre as alterações climáticas”.

Tal como se pode ler no website da UKHACC – que reúne médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde que tentam encontrar respostas às alterações climáticas com vista a proteger e a promover a saúde pública – o editorial adverte que embora os objectivos recentes para reduzir as emissões e conservar a natureza sejam bem-vindos, os mesmos não são de todo suficientes nem sequer compatíveis com planos credíveis a curto e a longo prazo para se conter esta ameaça global. Desta forma, os governos são instados a intervir para transformar sociedades e economias, apoiando, por exemplo, a reformulação dos sistemas de transporte, das cidades, da produção e da distribuição de alimentos, dos mercados de investimentos financeiros e dos sistemas de saúde. De acordo com a UK Health Alliance, tais investimentos produzirão enormes benefícios positivos, incluindo empregos de alta qualidade, redução da poluição atmosférica, aumento da actividade física e melhoria da habitação e da dieta alimentar. “Uma melhor qualidade do ar, por si só, permitiria obter benefícios para a saúde que facilmente compensariam os custos globais da redução de emissões”, exemplificam. Estas medidas poderão também melhorar os determinantes sociais e económicos da saúde, cujo mau estado pode ter tornado as populações mais vulneráveis à pandemia de Covid-19. 

Numa declaração sobre a iniciativa em curso, o director-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou que “a pandemia de Covid-19 vai acabar, mas não há vacina para a crise climática. O relatório do IPCC mostra que cada fracção de um grau mais quente põe em perigo a nossa saúde e o nosso futuro. Da mesma forma, cada acção tomada para limitar as emissões e o aquecimento aproxima-nos de um futuro mais saudável e seguro”.

A verdade é que há décadas que os profissionais e as revistas de saúde alertam para os graves e crescentes impactos das alterações climáticas e da destruição da natureza na saúde. A mortalidade relacionada com o calor, os impactos na saúde dos eventos climáticos destrutivos e a degradação generalizada dos ecossistemas essenciais para a saúde humana são apenas alguns dos fenómenos a que estamos a assistir devido a um clima em mudança constante e alarmante. Adicionalmente e como também sabemos, estas profundas alterações no clima afectam desproporcionalmente os mais vulneráveis, incluindo crianças e idosos, minorias étnicas, comunidades mais pobres e pessoas com condições de saúde mais frágeis.

O editorial defende igualmente o que há muito tem sido sustentado: o facto de que uma acção global suficiente só pode ser alcançada se os países de elevado rendimento fizerem muito mais do que têm vindo a fazer para apoiar o resto do mundo e para reduzir o seu próprio consumo. Os países desenvolvidos devem comprometer-se (outra vez!) a aumentar o financiamento climático. Se o seu extraordinário compromisso de fornecer 100 mil milhões de dólares por ano for cumprido, esta acção terá um duplo enfoque na mitigação e adaptação, incluindo a melhoria da resiliência dos sistemas de saúde. O editorial defende igualmente que este montante deve ser fornecido sob a forma de subsídios, em vez de empréstimos, e deve ser acompanhado pelo perdão de grandes dívidas, que constrangem a acção de inúmeros países de baixos rendimentos. O financiamento adicional deverá ser mobilizado para compensar as perdas e danos inevitáveis causados pelas consequências da crise ambiental.

Dado que qualquer aumento na temperatura torna o nosso planeta mais inseguro, o recente relatório do IPCC demonstra que até que o mundo atinja a descarbonização (emissões líquidas zero de gases com efeito estufa), o planeta continuará a aquecer. E n medida em que já estamos a assistir a estes impactos a nível mundial e que temos consciência que as consequências da crise ambiental recaem desproporcionalmente sobre os países e comunidades que menos contribuíram para o problema, um cenário de business as usual significaria um desastre para o planeta. Assim, e como é definido neste editorial conjunto, os governos devem aproveitar esta oportunidade para apresentar objectivos climáticos ambiciosos em prol da nossa saúde, para as pessoas em todo o mundo e para as gerações futuras.

Como também declara o Professor Lukoye Atwoli, Editor-chefe do East Africa Medical Journal, e um dos co-autores do editorial, “embora os países de baixo e médio rendimento tenham historicamente contribuído menos para as alterações climáticas, suportam um peso excessivo dos seus efeitos adversos, incluindo na saúde. Por conseguinte, apelamos a contribuições equitativas através das quais os países mais ricos do mundo façam mais para compensar o impacto das suas acções sobre o clima, começando agora e continuando no futuro”.

Equidade deve estar no centro da resposta global

Tal como é escrito no editorial em causa, contribuir com uma quota-parte justa para o esforço global significa que os compromissos de redução de emissões deverão ter em conta o contributo cumulativo e histórico de cada país, acompanhado pela responsabilização das suas actuais emissões e pela sua capacidade de resposta. Os países mais ricos terão de diminuir as emissões mais rapidamente, fazendo reduções até 2030 – e para além das actualmente “em vigor” – como forma de atingir a descarbonização antes de 2050, sendo necessárias metas semelhantes e acções de emergência que contrariem a perda da biodiversidade e a destruição mais vasta do mundo natural.

Para atingir estes objectivos, pode ler-se ainda, os governos devem fazer mudanças fundamentais na forma como as nossas sociedades e economias estão organizadas e como vivemos. A actual estratégia de encorajar os mercados a trocar tecnologias poluentes por tecnologias mais limpas não é suficiente. Os governos devem intervir para apoiar a reformulação dos sistemas de transporte, cidades, produção e distribuição de alimentos, mercados de investimentos financeiros, sistemas de saúde, e muito mais, sendo necessária uma coordenação global para assegurar que a corrida às tecnologias mais limpas não se faça à custa de mais destruição ambiental e exploração humana.

Adicionalmente, recordam, muitos governos enfrentaram a ameaça da pandemia da Covid-19 com um financiamento sem precedentes. A crise ambiental exige uma resposta de emergência semelhante. Será necessário um enorme investimento, para além do que está a ser considerado ou aplicado em qualquer parte do mundo, e esses mesmos investimentos produzirão enormes resultados positivos na economia e em termos de saúde. 

E que principais conclusões se podem retirar do mais recente relatório do IPCC, considerado, por vários analistas, como “demasiado sóbrio”?

Em primeiro lugar o facto de que cada relatório publicado pelo IPCC ou por outras entidades similares demonstrarem que a crise climática actual é muito pior do que se pensava anteriormente e que cada vez temos menos tempo para a travar. Por outro lado, relembrar que este relatório considera o impacto físico das alterações climáticas de forma isolada, apesar da crise climática estar a ser conjugada com uma crise ecológica mais vasta que, por sua vez, irá colocar desafios crescentes à humanidade. Adicionalmente, existe ainda a complexidade da resposta da sociedade às alterações climáticas, pois se projectar os impactos físicos das alterações climáticas é complicado, prever a forma como os nossos sistemas económicos, políticos e sociais irão responder à mesma constitui tarefa ainda mais hercúlea. 

Numa reflexão elaborada pela organização Forum for the Future, é chamada a atenção para um fenómeno que parece persistente em vários domínios da sociedade: o pressuposto de que “más” notícias climáticas causarão desespero – e podem motivar apenas a inércia – tem dominado o movimento ambiental há mais de duas décadas, não sendo contudo claros os motivos subjacentes ao facto de esta ideia ter tanta tracção e na medida em que temos assistido vindo a assistir a muita inacção, por parte de empresas e governos, baseada na complacência. Ou seja, este “nervoso colectivo” sobre a oferta de más notícias significa que há décadas que temos vindo a suavizar os riscos potenciais das alterações climáticas, o que talvez explique a razão para que governos, investidores e CEOs tenham vindo a prosseguir as suas vidas “como habitualmente”. Ou seja, o que parece gerar pânico não tem uma resposta adequada à gravidade e urgência da situação em que o planeta se encontra e as “wake-up calls”não têm vindo a despertar suficientemente as principais instituições que há muito já deveriam ter aberto bem os olhos face a esta catástrofe iminente. 

Outro problema reside no facto de se continuar a insistir de que “ainda há tempo”, o que minimiza as experiências de uma lista sempre crescente de comunidades já devastadas por inundações, incêndios e degelos. Ou seja, quando dizemos ‘ainda há tempo’, estamos a oferecer uma licença aos governos e a outras entidades para pensarem que “por isso não tenho de agir agora…”.

A verdade é que como alerta o próprio IPCC no seu mais recente relatório, algumas das alterações climáticas são já “irreversíveis” e dentro de duas décadas é provável que as temperaturas aumentem mais de 1,5 graus Celsius — acima do limite da temperatura global definido no acordo climático de Paris, o qual parece ter sido metido em muitas gavetas pertencentes aos 195 países que, em 2015, o aprovaram consensualmente. Em resposta a este alerta, o secretário-geral da ONU, António Guterres, considerou que este “é um código vermelho para a humanidade”. 

E parece que a nossa única esperança para estabilizar o aumento da temperatura global algures perto de 1,5°C terá de ser feita através de uma transformação radical da sociedade.

Neste cenário, torna-se claro que tanto as empresas como os governos irão enfrentar desafios em ambas as direcções, não só os que provêm de um clima cada vez mais volátil, mas também de uma sociedade em rápida mudança. E quanto mais o planeta aquecer, maior serão as perturbaçãose mais difícil será para qualquer empresa adaptar-se às mesmas. É certo que as cadeias de abastecimento se tornarão pouco fiáveis, os mercados mais instáveis e que a instabilidade política aumentará. Mas e se nada disto é bom para os negócios, a inacção sobre o clima tornará as coisas muito, muito piores.

Por outro lado, é urgente reconhecer que a realização dos objectivos climáticos e a crucial descarbonização (net zero, na expressão adoptada na língua inglesa), exigirá um enfoque nas transições da maioria dos sistemas, ou seja, não apenas do sistema energético, mas também nos sistemas de produção e consumo e nos sistemas económicos subjacentes.

Ainda de acordo com o Forum for the Future, estas transições não serão bem-sucedidas a menos que se abordem tanto os desafios sociais como ambientais. É necessária uma transição profunda para a criação de um futuro justo e regenerativo e que seja equitativo em termos de custos e benefícios associados à rápida transição para uma economia net-zero. Tal exigirá um olhar sério sobre a forma como a rápida escala do sector das energias renováveis pode conduzir a resultados sociais e ambientais positivos, exigirá uma mudança radical no nosso enquadramento da agricultura e também na forma como pensamos a terra. Esta transição precisa também de reconhecer que uma acção climática ambiciosa pode trazer resultados positivos em sistemas como a saúde e a nutrição. E, criticamente, precisa de se concentrar em medidas de adaptação, bem como de mitigação, abordando questões de justiça climática para além da redução do carbono.

Mas para o fazermos eficazmente, há que enfrentar definitivamente esta emergência que não está a ser suficientemente considerada como uma emergência e enfrentar a escala dos muitos desafios que se avizinham.

Editora Executiva