Que fundamentos de liderança são necessários para que a empresa seja vivida como uma comunidade de pessoas? Incentivar a individualidade, promover a confiança, desenvolver os talentos, pensar como “nós” e não como “eu”, sem dúvida. Mas e sobretudo, ter em mente que o futuro de qualquer organização só pode ser assegurado por todas as pessoas que a integram
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Chegou finalmente a era em que deixou de ser politicamente correcto rotular os empregados de uma empresa como meros recursos ou activos. De forma crescente, a organização contemporânea está a aprender a conferir valor adicional a todos os que com ela interagem, assumindo o velho ditado de que a “união pode mesmo fazer a força”. Fazendo eco destes pressupostos, Fátima Carioca, Dean da AESE, alertou para a necessidade de se negar, de uma vez por todas, as abordagens colectivistas e utilitaristas no seio das empresas, com Alexandre Relvas, da Logoplaste, a eleger o princípio da “garantia de futuro” como central a uma organização que se reveja enquanto bem social e comunidade de pessoas. Já o responsável do Deutsche Bank em Portugal, Bernardo Meyrelles, acredita que a melhor forma de amar o próximo é conhecê-lo, propondo assim que se “vistam as roupas e se calcem os sapatos” do outro. A terminar, a proposta de Roberto Martinez, director da Fundação MásFamilia: transformar as políticas de conciliação em ferramentas de gestão, que permitam harmonizar as várias dimensões da vida profissional e pessoal.

Não deixar que ninguém se sinta anónimo

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© Arlindo Homem – Fátima Carioca

Dividindo a sua apresentação nos três factores que compõem o painel em causa – pessoas, comunidade e liderança -, a Dean da AESE – Escola de Direcção e Negócios, Fátima Carioca, chamou a atenção para a riqueza da expressão “comunidade de pessoas”, as quais são colocadas no centro e como foco da organização.

Esta centralidade implica a negação da individualidade nas empresas, bem como outras abordagens colectivistas, consideradas nocivas por anularem ou diluírem a inteligência, a iniciativa e a liberdade individual no interior do colectivo, em conjunto também com a negação utilitarista da pessoa enquanto mão-de-obra, recurso ou simples posto de trabalho. Na verdade e se pararmos um minuto para pensar, as abordagens colectivistas – em que cada um se perde numa massa anónima – e as utilitaristas – em que o colaborador é tratado como mão-de-obra e o cliente como mera “facturação”, por exemplo, continuam a subsistir em muitas organizações, seguindo a lógica “o que ele me dá em troca e vice-versa”. Ora, e como defende a responsável pela AESE, e citando o cardeal Van Tuan, “Deus só sabe contar até 1, [na medida em que] cada pessoa é única aos Seus olhos”. Assim, não deixar “que ninguém na empresa se sinta anónimo” pode resumir a importância de se cultivar a individualidade e os talentos próprios de cada um.

Prosseguindo com o significado do termo “comunidade”, que vem de comungar, de aquilo que é comum ou partilhado por todos, Fátima Carioca afirma que, na empresa, este conceito significa partilhar o que é valioso no seu interior. E, tal como acontece em todas as organizações humanas, o vínculo com a “comunidade empresa” estabelece-se quando “a pessoa se sente útil e que faz falta”, quando estabelece uma relação emotiva – “sentindo-se querida” e quando é “contribuinte” para a missão da mesma. Ou, em suma, quando “as pessoas sentem que são a peça para uma obra”.

Defendendo que a atitude do líder nunca é neutra – “ou é boa ou é má, ou ajuda ou destrói”, Fátima Carioca sublinhou ainda dois fundamentos de liderança: o primeiro prende-se com o facto de a (boa) relação de um líder com cada uma das “suas” pessoas dever assentar na confiança. Parafraseando Raul Diniz, um dos professores mais acarinhados da AESE, a confiança é “tealogal”: é fé, esperança e caridade. Fé [que tem a mesma raiz que confiança] significa confiar em si mesmo, ultrapassando a inércia e ousando, mas também confiar nos outros, nos seus talentos, dar crédito às suas ideias e palavras – sejam eles colaboradores, clientes, fornecedores. Mas confiança é também esperança: é projectar-se, à empresa e aos outros no futuro, é ter visão e “confiar que lá chegarei com estas pessoas”. E confiança é também caridade – ou amor. “Ao entregar-te esta tarefa, confio em ti” – “que maior prova de amor existe do que esta?”, questiona a responsável da AESE.

Por último, e sobre o segundo fundamento da liderança que sublinhou – a relação do líder com a comunidade de pessoas – foi através das palavras de Francisco que Fátima Carioca o definiu: “quando os líderes dos diferentes sectores me pedem um conselho, a minha resposta é sempre a mesma – ‘diálogo, diálogo, diálogo’”, afirmou o Papa num discurso proferido no Brasil, a um conjunto de dirigentes, no qual assegurou que o diálogo é a única forma de uma pessoa, uma família, uma empresa ou a sociedade poderem crescer. Mas é também manter uma atitude aberta, disponível e sem preconceitos, a qual Francisco denomina como “humildade social”. Em suma, ou se aposta no diálogo, na cultura do encontro, ou todos perdemos.

Nota: Para ouvir a intervenção na íntegra de Fátima Carioca, clique aqui.

“A liderança não é uma actividade separada nem superior ao funcionamento da empresa”

© Arlindo Homem - Alexandre Relvas
© Arlindo Homem – Alexandre Relvas

Tendo presente a realidade empresarial actual, Alexandre Relvas enumerou alguns “princípios gerais de liderança” por si considerados.

No que respeita aos valores, não os há relativos, ou seja, “os valores pessoais e profissionais são os mesmos” e é fundamental que os líderes sejam reconhecidos pelo seu elevado sentido ético e força moral. Mas e infelizmente, afirma também, “a honestidade, o sentido de compromisso, a verdade, entre outros valores fundamentais, são muitas vezes relativizados”.

Enquanto comunidade de pessoas, e para o CEO da Logoplaste, são os objectivos, as motivações e uma cultura comum, em conjunto com um sentido colaborativo, que a definem. E nesta perspectiva da empresa como comunidade, “tem de se agir e pensar sempre como ‘nós’ e não como ‘eu’, respeitando os outros como queremos ser respeitados”, sublinhou. Adicionalmente, Alexandre Relvas acredita fortemente na “liderança pelo exemplo” e que as organizações são, tendencialmente, aquilo que são os seus líderes.

Em consonância com os vários oradores que deram voz a este congresso, o responsável da Logoplaste nega igualmente a velha visão das pessoas enquanto recursos humanos ou activos, meramente utilizáveis em função dos objectivos da empresa. Ao invés, perspectiva a empresa como um bem social, sendo fundamental ter em conta, e de forma equilibrada, o interesse de todos os stakeholders, não podendo este interesse prevalecer privilegiando uns em detrimento de outros, pelo menos de forma sistemática.

“A liderança não é uma actividade separada nem superior ao funcionamento da empresa”, sublinhou. E, a um líder, pede-se também que seja realizador e empreendedor, sendo a criação de valor fruto de inteligência, optimismo e convicção, em conjunto com o risco, mesmo cometendo erros, os quais devem ser assumidos. Para o responsável da Logoplaste, “é necessário ter em conta que o sucesso continuado – do líder e da empresa que dirige – só é possível em resultado de muito trabalho, cujo esforço e exigência têm de ser permanentes”, e manter em mente que os resultados de hoje não garantem o amanhã.

A ideia de “garantir o futuro” é transversal a todo o discurso de Alexandre Relvas, elegendo este princípio como fundamental ao objectivo de uma empresa enquanto bem social e comunidade de pessoas. Garantir o futuro como valor fundamental, tendo em conta os interesses dos stakeholders, e fazê-lo em condições de competitividade, sem que a visão de longo prazo perca terreno relativamente ao imediatismo, é igualmente imprescindível. Mas garantir este futuro depende, como realçou, de múltiplos factores, como a satisfação dos clientes, em resultado da qualidade, da capacidade de inovação ou da diferenciação face à concorrência, da rentabilidade e do equilíbrio financeiro, da qualidade da rede de fornecedores – “quem compete hoje não são empresas, mas sim ofertas”, frisou – sem esquecer a responsabilidade social e ambiental. Mas e acima de tudo, “o futuro de qualquer empresa é determinado pelas pessoas que a integram”.

“Todos somos responsáveis por todos” é igualmente um princípio decisivo enumerado por Relvas. “Esta valorização das pessoas enquanto comunidade é naturalmente decorrente dos valores que aqui hoje partilhamos, mas é também fruto de uma necessidade crescente, em particular se tivermos em conta duas realidades: a base da competitividade das empresas é cada vez mais o conhecimento – uma empresa não é o que faz, mas o que sabe – e, na medida em que a dimensão também importa, quanto maior é a empresa, maior é a sua dependência de cada um dos que nela trabalham”, assegurou, acrescentando ainda: “o valor de cada pessoa e a consciência de que se trabalha para o ‘todo’ são absolutamente decisivos”.

Nota: Para ouvir a intervenção na íntegra de Alexandre Relvas, clique aqui.

É imperioso “calçar os sapatos dos outros”

© Arlindo Homem - Bernardo Meyrelles
© Arlindo Homem – Bernardo Meyrelles

Tal como os seus parceiros de painel, Bernardo Meyrelles elegeu quatro “características universais” que os líderes devem ter presentes nos caminhos difíceis que, obrigatoriamente, trilham. Para o responsável em Portugal pelo Deutsche Bank, um bom líder tem de saber identificar plenamente o alvo a atingir no caminho proposto; definir a estratégia e os objectivos para a alcançar; mobilizar as pessoas, e as equipas, na expansão dessa mesma estratégia, conferindo os “alimentos e os mantimentos” necessários para a percorrer e, por último, visto que é quem “conduz”, dar o exemplo.

Todavia, identifica, em simultâneo, os conflitos que podem surgir ao se encetar este caminho. O primeiro está relacionado com a criação da riqueza e sua distribuição: apesar de considerar que a criação de lucro é o principal objectivo das empresas, a ética tem de acompanhar, forçosamente, a forma como esse lucro é gerado e distribuído; o segundo coloca em dicotomia a questão ‘meritocracia versus igualdade’: para Bernardo Meyrelles, não existe verdadeira viabilidade numa empresa se esta tiver em mente apenas a igualdade, sem se privilegiar o mérito; a dualidade entre complacência e responsabilidade foi igualmente referida enquanto conflito usual na gestão de uma empresa, ou seja, perdoar e ser complacente com uma falha é obrigatório – na medida em que, enquanto humanos, todos falhamos -, mas isso não significa que quem as comete não deva ser responsabilizado; por último, o presidente do Deutsche Bank em Portugal refere o binómio esforço/satisfação, afirmando não concordar com aqueles que consideram que uma empresa que exige elevados níveis de esforço, acompanhados por momentos inevitáveis de stress e tensão, não possa ser considerada como “satisfatória”. Pelo contrário, Meyrelles assegura, convicto, que quanto maior é a tensão, maior é o regozijo no final, quando se atingem, com sucesso, os objectivos propostos.

Quanto ao equilíbrio no bom tratamento de todos os stakeholders, Bernardo Meyrelles faz também eco do que os demais oradores defenderam: têm que ser colocados todos na mesma balança, não havendo lugar à sobreposição de uns em detrimento de outros.

O responsável do Deutsche Bank elegeu ainda uma política de “cuidados continuados” – a qual denomina de 5 Cs – que qualquer empresa tem de ter em conta. Cuidar, com carinho dos colaboradores, dos clientes, do capital (accionistas), dos reguladores – em que o C, neste caso, é para controlo e, por último, mas não menos importante, da comunidade. “Uma empresa é, sem dúvida, uma comunidade, mas está inserida numa comunidade ainda maior, e essa tem que estar em alinhamento com os valores com que nos regulamos no nosso dia-a-dia. Uma organização que não cuide destes 5 Cs não é uma organização sustentável e estará, a longo prazo, condenada”, afirmou ainda.

Por último, Bernardo Meyrelles deu ainda o exemplo de uma iniciativa interna do Deutsche Bank, a qual convida a “calçar os sapatos dos outros”, e que consiste num bootcamp “onde nos propomos a desempenhar as tarefas dos outros”, explicou. E acrescentou: “a melhor forma de amar o próximo é conhecê-lo. É tentar perceber as suas dificuldades, vestir as suas roupas e calçar os seus sapatos”. É, em suma, explorar o outro lado da barricada.

Nota: Para ouvir a intervenção na íntegra de Bernardo Meyrelles, clique aqui.

© Arlindo Homem - Roberto Martinez
© Arlindo Homem – Roberto Martinez

“O objectivo agora é tratar cada pessoa de acordo com as suas diferenças”

Roberto Martinez é director da Fundação MásFamilia, uma ONG dedicada à certificação de empresas no que respeita a políticas de conciliação entre a vida profissional e familiar. Afirmando que “não somos nós que somos importantes, mas sim a nossa missão”, o responsável explicou que a iniciativa “empresas familiarmente responsáveis” [efr], teve origem em Espanha – onde, como é natural, tem o maior número de empresas certificadas -, estando, contudo, igualmente presente em mais de 20 países, com mais de 500 entidades certificadas, reunindo organizações de dimensão variada, desde multinacionais a pequenas empresas.

A presença da ONG em Portugal é recente, tendo sido estabelecida, em Maio último, uma parceria com a ACEGE, a qual passa a promover a iniciativa “efr” junto das empresas portuguesas, estabelecendo-se como “co-emissora” da certificação.

No entanto, a definição, por parte da Fundação MásFamilia, de conciliação, não é propriamente a mesma a que estamos habituados a tomar como correcta – e que tem como base o conceito work-life balance. Como referiu Martinez, a Fundação entende a “conciliação” como “uma rede transversal, uma ferramenta de gestão” ou, em suma, como algo que permite ter uma vida multidimensional. “Não gosto da ideia de termos de equilibrar o trabalho e a vida porque, para mim, trabalho é vida e a vida (também) é trabalho”, defendeu.

Esta “forma de gestão” terá efeitos e benefícios, tanto no interior das organizações (em termos de reputação, engagement, atracção e retenção de talentos) como no seu exterior (no que respeita à responsabilidade social, à família, às esferas da educação e da saúde, etc.).

No que respeita, em particular, à certificação em causa, o director da Fundação explica ainda alguns constrangimentos que tem vindo a encontrar nos países onde tem chegado, tais como Portugal, Peru ou o Equador, por exemplo: “encontramos legislação básica e tudo o resto é feito de forma informal, paternalista”, afirma, acrescentando que “o que fazemos é apresentar um modelo de gestão, com indicadores, métricas, objectivos, planos de acção, entre outros, que podem ser especificamente aplicados nas empresas e intrínsecos às suas políticas de conciliação”.

De acordo com o responsável, a iniciativa efr introduz a “profissionalização da conciliação”, reduzindo muitíssimo a informalidade das medidas, e incorporando-a no próprio discurso da empresa.

Considerando ainda que, até aqui, se deu prioridade a um ciclo no qual a ideia central era tratar todos por igual, “o objectivo agora é tratar cada pessoa de acordo com as suas diferenças”. E é através desta diferenciação que a Fundação Másfamilia acredita ser possível dar origem a melhores empresas.

Nota: Para ouvir a intervenção na íntegra de Bernardo Martinez, clique aqui

Valores, Ética e Responsabilidade