É verdade que o poderiam fazer, caso aumentasse a tributação sobre as suas grandes fortunas. No relatório publicado anualmente pela Oxfam sobre a desigualdade, esta poderá ser uma das mais importantes soluções para diminuir o fosso entre os cada vez mais ricos e os cada vez mais pobres. A pilha de riqueza dos multimilionários não pára de crescer e o número de pobres não pára de aumentar, antes pelo contrário, batendo o recorde dos últimos 25 anos
POR HELENA OLIVEIRA

Para os leitores que vão acompanhando os artigos sobre o relatório da Oxfam que avalia o fosso de desigualdade entre ricos e pobres, os quais o VER tem vindo a publicar anualmente, uma ideia comum a todos persiste: os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Ou seja, o que vai mudando são os valores ganhos pelo 1% dos mais ricos do mundo, cada vez com mais zeros, e o número dilatado de pobres que aumenta igualmente todos os anos. A pobreza no geral aumentou substancialmente, batendo o recorde dos últimos 25 anos.

Com as múltiplas crises que estão a acometer o estado do mundo, dezenas de milhões de novas pessoas entraram para a lista da pobreza, centenas de milhões enfrentam – ou melhor, esforçam-se para enfrentar – os aumentos no custo dos produto básicos e do aquecimento das suas casas mas, e em simultâneo, estas “poli-crises”(termo igualmente utilizado no Relatório de Riscos Globais publicado pelo Fórum Económico Mundial e sobre o qual o VER escreveu a semana passada) estão a dar igualmente origem a uma mão-cheia de vencedores e que já não surpreende: os muito ricos aumentaram novamente a sua inumerável riqueza e os lucros de muitas empresas atingiram valores recordistas, conduzindo a uma verdadeira “explosão” da desigualdade há muito existente e cada vez mais persistente. 

O relatório deste ano da Oxfam intitulado “The Survival of the Richest”, o qual é sempre apresentado na reunião de líderes em Davos, foca-se no aumento da tributação da riqueza do mais ricos como uma solução para diminuir as desigualdades crescentes que os deviam envergonhar. 

O relatório explora como, na história recente, a tributação dos mais ricos já foi muito mais elevada, como este tema é crescentemente popular e cada vez mais falado e, caso existisse um aumento mais justo de impostos sobre a riqueza dos multimilionários, que tal serviria para reduzir não só a desigualdade económica, mas também as desigualdades raciais e de género. O relatório estabelece o quanto os mais ricos devem pagar de impostos, e as formas práticas, experimentadas e testadas, de como os governos podem aumentar essa tributação, que poderia conduzir o mundo para um caminho mais igual, sustentável e livre da pobreza.

Atentemos nos seguintes números:

  • Desde 2020, o 1% dos mais ricos do mundo “capturaram” quase dois terços de toda a nova riqueza – quase duas vezes mais do que os restantes 99% da população mundial;
  • As fortunas multimilionárias estão a aumentar a um ritmo de 2,7 mil milhões de dólares por dia, mesmo quando a inflação ultrapassa os salários de pelo menos 1,7 mil milhões de trabalhadores, mais do que a população da Índia;
  • As empresas alimentares e energéticas mais do que duplicaram os seus lucros em 2022, pagando 257 mil milhões de dólares aos accionistas (ultra-ricos), ao mesmo tempo que mais de 800 milhões de pessoas foram para a cama com fome;
  • Apenas 4 cêntimos em cada dólar de receitas fiscais provêm dos impostos sobre a riqueza, e metade dos multimilionários do mundo vivem em países sem imposto sucessório (imposto sobre as heranças); 
  • Um imposto de até 5% sobre a riqueza dos multimilionários poderia angariar 1,7 biliões de dólares por ano, o suficiente para tirar 2 mil milhões de pessoas da pobreza e financiar um plano global para acabar com a fome.
  • Em 2022, o Banco Mundial anunciou que não seria possível atingir o objectivo de acabar com a pobreza extrema até 2030, e que “o progresso global na redução da pobreza extrema tinha cessado”, alertando igualmente para o facto de estarmos provavelmente a assistir ao maior aumento da desigualdade global e ao maior revés na abordagem da pobreza global desde a Segunda Guerra Mundial.
  • Por seu turno, o FMI prevê que um terço da economia global está ou entrará em recessão em 2023.
  • Pela primeira vez, o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) anunciou que o desenvolvimento humano está a cair em nove de cada 10 países.
  • Nações inteiras enfrentam a falência, com o pagamento da dívida crescentemente fora de controlo. Os países mais pobres estão a gastar quatro vezes mais a pagar dívidas – frequentemente a credores predatórios, ricos e privados – do que em cuidados de saúde.
  • A Oxfam calculou que, nos próximos cinco anos, três quartos dos governos estarão a planear cortes nas despesas, num total de 7,8 biliões de dólares.

Entretanto, a escala da riqueza que está a ser acumulada pelos que estão no topo da pirâmide da riqueza e que já apresentava níveis recorde, acelerou ainda mais. À semelhança dos anos interiores, mas ainda de forma mais marcada, a “poli-crise” global está a contribuir para gerar mais e mais riqueza a uma pequena elite. Nos últimos 10 anos, o 1% mais rico da humanidade capturou mais de metade de todas as novas riquezas a nível global. 

Como o VER também já escreveu, os multimilionários assistiram a ganhos extraordinários durante a pandemia. Uma inundação de dinheiro público injectado na economia pelos países ricos, necessária para apoiar as suas populações, também fez subir os preços dos activos e a riqueza no topo. O que significa que na ausência de uma tributação progressiva, os mais ricos embolsaram fortunas sem precedentes. 

Crise, qual crise?

Os tempos de bonança impulsionados pela crise para os super-ricos vieram juntar-se a muitos anos de fortunas substancialmente crescentes no topo, o que alargou ainda mais o fosso da desigualdade. 

 A actual crise do custo de vida, com os preços dos alimentos e da energia em espiral crescente, está também a gerar ganhos extraordinários para muitos dos que se posicionam no topo dos mais ricos. As empresas dos sectores alimentar e energético estão a registar lucros recordistas, com a distribuição dos mesmos a atingir níveis igualmente recorde para os seus proprietários e accionistas. A exploração dos preços pelas empresas é, e de acordo com  Oxfam, responsável por pelo menos 50% da inflação na Austrália, nos EUA e na Europa.

Desta forma, e para quebrar o ciclo da acumulação de riqueza persistente por parte dos multimilionários, os governos deveriam abordar, pelo menos de acordo com a visão da Oxfam, todas as formas possíveis através das quais a economia é manipulada em seu favor, incluindo as leis laborais, a privatização de activos públicos, as compensações dos CEO e muito mais. 

Assim, a Oxfam anuncia que este relatório serve para lançar uma luz sobre uma das soluções que, a seu ver, integra um enorme potencial para diminuir este desequilíbrio cada vez mais vergonhoso: a tributação dos mais ricos.  

Como ponto de partida, o mundo deveria visar reduzir para metade a riqueza e o número de multimilionários até 2030, tanto através do aumento dos impostos para o 1% mais rico do mundo como através da adopção de outras políticas que nivelassem esta desigualdade gritante. Tal permitiria trazer a riqueza e o número de multimilionários de volta ao ponto em que se encontravam há apenas uma década, em 2012. Para a Oxfam, especialista e também activista na temática das desigualdades, o objectivo final deveria ir ainda mais longe, abolindo totalmente os multimilionários, como parte de uma distribuição mais justa e racional da riqueza no mundo. Os impostos desempenhariam um papel crucial na concretização dessa visão, mas isso só acontecerá se for feita uma ruptura drástica com décadas de cortes fiscais para os mais ricos, bem como para as empresas mais lucrativas.

Adicionalmente, o aumento escandaloso da riqueza e dos rendimentos no topo coincidiu com um colapso dos impostos sobre os 1% mais ricos. Embora existam diferenças entre países, a tendência geral para impostos mais baixos para os ricos tem sido notavelmente idêntica em todas as regiões do mundo.

Detalhando mais em pormenor alguns dados acima mencionados, por cada dólar angariado em impostos, apenas quatro cêntimos provêm dos impostos sobre a riqueza. A incapacidade de tributar a riqueza é mais pronunciada nos países de rendimento baixo e médio, onde a desigualdade é mais elevada. Por outro lado, dois terços dos países não têm qualquer forma de imposto sucessório sobre a riqueza e os bens passados aos descendentes directos. Metade dos multimilionários do mundo vive agora em países sem esse imposto, o que significa que cerca de cinco mil milhões de dólares serão passados livres de impostos para a geração seguinte, uma soma superior ao PIB de África. Em suma, uma nova, poderosa e irresponsável aristocracia está a ser criada diante dos nossos olhos, afirma a Oxfam.

E a história parece não ter fim: as taxas máximas de imposto sobre o rendimento tornaram-se mais baixas e menos progressivas, com a taxa média de imposto sobre os mais ricos a cair de 58% em 1980 para 42% mais recentemente nos países da OCDE. Em 100 países, a taxa média é ainda mais baixa, no valor de 31%.

As taxas de imposto sobre as mais-valias – na maioria dos países a fonte de rendimento mais importante para os mais ricos do 1% – são apenas de 18%, em média, em mais de 100 países. Apenas três países tributam os rendimentos do capital mais do que os rendimentos do trabalho. Os resultados têm sido inacreditáveis. Se “fotografássemos em zoom” este topo da pirâmide, veríamos que muitos dos homens mais ricos do planeta quase não pagam impostos. Por exemplo, um dos homens mais ricos do mundo, o polémico Elon Musk, demonstrou pagar uma “verdadeira taxa de imposto” de 3,2%, enquanto outro conhecido multimilionário, Jeff Bezos, paga menos de 1%. A contrastar e de forma vergonhosa, uma comerciante que vende arroz, farinha e soja num mercado no Uganda, Aber Christine, com quem a Oxfam trabalha, paga 40% dos seus lucros em impostos.

Lutar contra a desigualdade e combater as poli-crises 

De acordo com o relatório da Oxfam, uma maior tributação das pessoas e empresas mais ricas é a porta de saída para a actual poli-crise. Poderia evitar a austeridade, ser utilizada para combater a inflação e preços mais altos e evitar a crueldade desnecessária da miséria e da fome em massa. Uma maior tributação é uma condição prévia para governos bem-sucedidos e estratégicos, dando-lhes os recursos para investir em cuidados de saúde e educação universais, para a existência de sociedades mais felizes e saudáveis, para investir na inovação, investigação e desenvolvimento, para a transição para economias verdes e para mitigar as rupturas climáticas. 

Juntamente com o Institute for Policy Studies, o Patriotic Millionaires e a Fight Inequality Alliance, a Oxfam utilizou dados da Wealth-X e da Forbes para fazer contas. Assim, um imposto de 2% sobre a riqueza de milionários do mundo, de 3% sobre aqueles com riqueza superior a 50 milhões de dólares e de 5% para os multimilionários resultaria anualmente em 1,7 biliões de dólares.

Este valor astronómico seria suficiente para tirar 2 mil milhões de pessoas da pobreza, para preencher a lacuna de financiamento dos apelos humanitários de emergência da ONU e para financiar ainda um plano global para acabar com a fome. Além disso, estes impostos poderiam ajudar a financiar as perdas e danos causados aos países de muito baixo, baixo e médio rendimento no que respeita à degradação climática e proporcionar cuidados de saúde e protecção social universais a todos os cidadãos destes mesmos países (3,6 mil milhões de pessoas).

A tributação dos super-ricos reduziria directamente o número e a riqueza dos mais ricos, criando sociedades mais igualitárias e impedindo o aparecimento de elites poderosas, irresponsáveis e semi-aristocráticas, diminuindo também as desigualdades sociais mais corrosivas.

Em outros momentos de crises profundas e globais e num suposto espírito de solidariedade, o aumento da tributação sobre as grandes fortunas já foi uma realidade. Infelizmente, o mesmo não aconteceu durante o auge da pandemia, com cerca de 95% dos países a manterem os mesmos impostos, ou até os diminuindo, sobre as pessoas e empresas mais abastadas. 

No entanto, esta realidade poderá vir a mudar. Os argumentos a favor de uma maior tributação dos ricos para apoiar as pessoas mais vulneráveis a estas múltiplas crises estão a ser cada vez mais invocados, até por parte de instituições improváveis como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Central Europeu (BCE). O facto de o governo britânico ter tido de se apoiar num conjunto de propostas de cortes fiscais para os ricos em Outubro de 2022, depois de uma crise económica e política ter estalado, marcou um verdadeiro ponto de viragem. Ou assim se espera. 

Todavia e para que a mudança aconteça, é necessário inverter as políticas que têm impulsionado a agenda de impostos cada vez mais baixos para os ricos e para as grandes empresas. Uma maior tributação dos ricos não é, obviamente, a única resposta à crise da desigualdade, mas pode constituir uma parte fundamental da mesma. Como sublinha a Oxfam, é tempo de os governos se livrarem de décadas de ideologia fracassada e da influência das elites, fazendo a coisa certa: taxar os ricos.

Editora Executiva