Os seis mil milhões chegaram em 1998. Foi anteontem, por isso todos nos lembramos. Ao olharmos com atenção para o ano da Expo, vemos um mundo diferente na mentalidade, na tecnologia, na esperança e nos semblantes. A democracia estava em pleno, havia pluralidade, contrapoder, alternância democrática, espaço de debate, lisura e coragem. Criámos as nossas primeiras contas de email e começámos a decretar com exagero a morte dos correios. Lutámos por Timor, lutámos pela literacia científica, inaugurámos a Ponte Vasco da Gama e não nos entendemos sobre o aeroporto. Havia muitas muitas auto-estradas e a música que se fazia internacionalmente era um pavor. A Europa de Leste consolidava-se democraticamente e já pensávamos na grande união e nos euros nos bolsos, bem estabelecidos nos 200 escudos ponto 482. Víamos o símbolo em alguns produtos e achávamos graça
POR PEDRO COTRIM

Daqui a uns dias seremos oito mil milhões de pessoas. O dia «8 billion» está agendado para 15 de Novembro, mas é obviamente simbólico. Provavelmente já ultrapassámos a marca.

É gente, é muita gente. Se cada pessoa ocupar um metro quadrado, a população portuguesa encherá a A1 de Lisboa ao Porto se ocupar faixas de rodagem e bermas. A população mundial ocupará portanto oitocentas A1, ou caberá então numa auto-estrada com três vias para cada lado que vá de Portugal à Nova Zelândia. Está respondida a questão da população mundial a dar as mãos à volta do equador.

Há muita gente no mundo e o crescimento é contínuo; não foi o que sempre sucedeu, mas é o que temos agora e se manterá por uns anos.

A marca dos mil milhões foi alcançada no início do século XIX, pouco após a revolução francesa e a independência americana. A Revolução Industrial trouxe grande mortandade aos operários dos países desenvolvidos, a pobreza grassava, a mortalidade infantil era medonha e os hospitais eram matadouros, mas nascia muita gente. Nas colónias e ex-colónias europeias ainda viviam poucas pessoas: na parte continental europeia do Reino de Portugal havia cerca de três milhões de pessoas, um pouco mais no Brasil, mais um milhão em Angola e outro milhão em Moçambique. Os jovens Estados Unidos da América teriam uns cinco milhões de habitantes, a Irlanda um pouco mais: a «Ilha das Batatas» chegou aos nove milhões de habitantes em meados do século antes de a fome, a pobreza e peste a cortarem para metade e originarem a grande emigração irlandesa para as Américas onde se vê com facilidade a influência nos EUA da actualidade. A vida nem sempre foi um mar de trevos verdinhos.

A população mundial encolheu muito entre os anos 1200 e 1400 devido às invasões mongóis, às pelejas sucessivas e à Peste negra. A Europa perdeu metade da população naqueles duzentos anos e o mundo demorou a recuperar habitantes. Apesar de tudo, o crescimento populacional tornou-se norma a partir do começo do século XVI.

Fomos mil milhões em 1804, fomos dois mil milhões em 1927, mesmo no período entre as Guerras. Surgiam as grandes descobertas da inoculação, da insulina, da penicilina e a humanidade conheceu um conforto apenas antes sonhado. Nestes gloriosos anos vinte que antecederam os anos vinte que agora vivemos, o Brasil ultrapassava os 30 milhões de habitantes e o Império Britânico tinha cerca de 500 milhões de pessoas. A Alemanha Nazi cresceria até atingir os 90 milhões de habitantes antes da Grande Guerra, incluindo os austríacos anexados pelo Anschluss. Na Segunda Guerra Mundial morreriam cerca de 50 milhões de pessoas. A população mundial continuou a aumentar.

A marca dos três mil milhões chegou em 1960. Baby Boom, mais ciência, China e Índia a somarem juntas mais de mil milhões de habitantes, o Brasil com setenta milhões e a generalidade do Mundo Ocidental a crescer a olhos vistos. Por aqui estabilizávamo-nos, com uma emigração muito elevada com evidentes efeitos sobretudo na desertificação do interior. O país da ditadura era triste, fechado e pobre, e bem se notam os efeitos na comparação com os vizinhos europeus. Numa aparente serenidade militar e numa altura de grandes benefícios da medicina, conhecemos taxas de mortalidade infantil dignas de Herodes e dias de grande cinzentismo. Por mais saudades que muitos tenham da ditadura, Portugal era um país muito sorumbático.

A marca dos quatro mil milhões chegou em 1974. Guerra Fria a manter-se, nasce a Geração X, 25 de Abril em Portugal, Lua tomada e visitada uns pares de vezes, mais ciência, Watergate, choques petrolíferos, o fim dos Beatles ainda a fazer ecos e calças à boca-de-sino.

Chegaram os anos 80 em que tudo voltou a ser possível. A UE, o conforto de todos, a luta pela erradicação da pobreza, a queda do Muro, a resistência contra a ditadura na China. Em 1987 chegámos aos cinco mil milhões de humanos vivos ao mesmo tempo. No Brasil viviam 130 milhões de pessoas, Portugal chegava finalmente aos 10 milhões de habitantes, a China aos mil milhões e a Índia aos 800 milhões. O boom da era da comunicação, da robótica e da domótica viu nascer os primeiros millennials, e a percepção da ecologia, ainda muito contaminada pela política, permitiu a luta pelo fecho do «buraco do ozono», celebrada no Protocolo de Montreal precisamente em 1987. Os U2, os The Cure, os The Smiths, os Iron Maiden, os Sonic Youth e outras bandas de espanto estavam na sua fase mais criativa, ainda não se ouvira falar de Cobain nem de Grunge e o thrash metal ainda não tinha saído da garagem, para o bem e para o mal.

Os seis mil milhões chegaram em 1998. Foi anteontem, por isso todos nos lembramos. Ao olharmos com atenção para o ano da Expo, vemos um mundo diferente na mentalidade, na tecnologia, na esperança e nos semblantes. A democracia estava em pleno, havia pluralidade, contrapoder, alternância democrática, espaço de debate, lisura e coragem. Criámos as nossas primeiras contas de email e começámos a decretar com exagero a morte dos correios. Lutámos por Timor, lutámos pela literacia científica, inaugurámos a Ponte Vasco da Gama e não nos entendemos sobre o aeroporto. Havia muitas muitas auto-estradas e a música que se fazia era um pavor. A Europa de Leste consolidava-se democraticamente e já pensávamos na grande união e nos euros nos bolsos, bem estabelecidos em 200 escudos ponto 482. Víamos o símbolo em alguns produtos e achávamos graça.

Os sete mil milhões viveram em conjunto pela primeira vez em 2010. Febre das redes sociais, tudo se comenta online, tudo se julga e tudo se decreta. Há ainda poucos smartphones, mas vulgarizam-se os écrans tácteis. A Primavera Árabe tem início, é inaugurado um arranha-céus com 800 metros e o mundo é muito rápido. A qualidade musical melhora notavelmente, as bandas indie são excelentes, menos os Coldplay, e é fácil apaixonarmo-nos. Caem tabus e preconceitos, suscitam-se outros. O mundo nunca foi ideal e cada época e cada cabeça teve sempre os seus modos de se sentir trágica.

E agora 2022, com oito mil milhões. Vai estar nas notícias daqui a uma semana e picos. O número será celebrado com um bebé simbólico. Sabemos como está o mundo, e cabe-nos agora que nos nove mil milhões, em 2037, se olhe para a data que vivemos agora com nostalgia e como o começo de um mundo melhor.

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