É a América do século XXI, a nação mais rica e mais gorda história mundial, que conta com 50 milhões de pessoa que sofrem de fome, 17 milhões das quais são crianças. É também o país que gasta 20 mil milhões de dólares em alimentos processados e menos de 1% dos subsídios existentes na produção de frutas e vegetais. É a terra em que o poder dos lobbies abafa os sussurros da pobreza… É a primeira potência mundial, num documentário excelente e com muita “food for thought”
POR HELENA OLIVEIRA

Lori Silverbush é norte-americana e realizadora de documentários. Mas também se dedica a ajudar estudantes pobres. Ao receber um telefonema do director de uma escola em East Harlem, comunicando-lhe que uma das suas alunas “protegidas” tinha sido encontrada a mexer no lixo à procura de comida, Silverbush apanhou um choque. De imediato, ligou ao marido, Tom Colicchio, um dos chefs mais célebres dos Estados Unidos, pedindo-lhe ajuda. Colicchio, que gere um conjunto de restaurantes famosos em Nova Iorque, rapidamente providenciou alimentos para a família da jovem. Todavia, Silverbush rapidamente percebeu que esta não era a resposta adequada. E que algo mais teria de ser feito. “Poderíamos distribuir todo o tipo de comida, mas tivemos consciência que, passados uns dias, o problema persistiria”, contou a realizadora ao The National Journal. O mesmo acontecia com os inúmeros esforços desenvolvidos por Colicchio, um dos famosos júris do programa televisivo Top Chef e fundador de mais de uma dúzia de restaurantes, que há muito abordava os problemas da fome através da caridade. “E ali estava ele, em conjunto com muitos outros chefs, a angariar milhões de dólares para alimentar as pessoas e o problema longe de ser resolvido”, acrescenta Silverbush.

Quando as pessoas falam de fome, a imagem que imediatamente lhes ocorre é a das crianças subnutridas em algum dos muitos países em desenvolvimento. E falar de fome nos Estados Unidos, o país mais rico do mundo e recordista em termos de obesidade, parece uma incongruência. Mas a verdade é que pelo menos 50 milhões de norte-americanos -entre os quais, quase 17 milhões de crianças – vão todos os dias para a cama sem comer, sendo que nenhum deles sabe quando será a sua próxima refeição.

Confrontada com a ausência de respostas e com o aparente desconhecimento geral desta situação nos Estados Unidos, a realizadora Silverbush – que se estreou com o filme On the Outs, vencedor de numerosos prémios em 2004 -ligou a Kristi Jacobson, uma outra reconhecida realizadora de vários documentários ao longo da última década, pedindo-lhe para se juntar a ela e fazerem um filme sobre os problemas de fome no seu país. Colicchio concordou em juntar-se ao projecto, como produtor executivo e, gradualmente, o documentário foi sendo cozinhado.

A Place on The Table estreou a 1 de Março nos Estados Unidos e, com ele, uma poderosa e extensa campanha, com base nos media sociais, que visa sobretudo alertar o maior número possível de americanos para uma realidade que, para além de escondida, não está a ser devidamente levada a sério pelos legisladores.

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A fome invisível
Como comentava o Los Angeles Times, o filme A Place on the Table está a seguir a (benéfica) moda dos documentários “activistas” de não-ficção, considerando-o – sem os exageros próprios de Michael Moore – como não imparcial, mas salvaguardando a extensa pesquisa efectuada para o mesmo. Mergulhando no extenso território norte-americano, as duas realizadoras tentaram perceber por que motivo um país com tantos recursos possui cerca de 50 milhões de pessoas a viver em agregados que lutam diariamente contra a fome e de como os subsídios federais beneficiam a agro-indústria às custas do bem-estar da população.

E mesmo aqueles que mais perto lidam com a fome em terras norte-americanas podem ficar verdadeiramente surpreendidos com algumas das descobertas que resultaram da investigação das duas realizadoras, em especial com a escassez de frutas e vegetais frescos em muitos locais espalhados pelo país.

As imagens escolhidas para abrir o documentário mostram enormes extensões de colinas verdejantes, close-ups de cerejas bojudas, pomares repletos de macieiras e campos de trigo a perder de vista. É que um dos principais argumentos expressos no filme é o de que a nação pode estar a passar fome, mas não por escassez de alimentos.

Acompanhando a vida de três dos 50 milhões de pessoas que lutam para se alimentarem a si mesmas e às suas famílias, o documentário pretende retratar uma realidade que, até agora, passa por invisível e, consequentemente, inexistente: Rosie, uma aluna do 5º ano de escolaridade, residente no Colorado, e que depende da caridade e dos vizinhos para se alimentar; Barbie, uma mãe solteira com dois filhos, desempregada e que depende da ajuda do Programa de Assistência de Nutrição Suplementar (SNAP, na sigla em inglês e também conhecido como “vales-refeição”), a qual, sendo mínima e também porque não existe uma mercearia perto da sua casa, não impede que envie os filhos, muitas vezes, para a cama, sem jantar; e, por último, o caso de Tremonica, uma miúda de sete anos cujos problemas de saúde são exacerbados pelos bens alimentares processados, os únicos passíveis de serem comprados pelos poucos dólares disponíveis na carteira da sua mãe.

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Produzido pela Participant Media, sobre a qual o VER já escreveu, uma produtora que só faz filmes exclusivamente dedicados a despertar as consciências sociais, A Place at the Table encaixa perfeitamente na sua missão, que saiu da cabeça do multimilionário Jeff Skoll, o primeiro empregado e fundador da gigantesca eBay. O filme toca em múltiplos tópicos como os subsídios concedidos aos negócios agrícolas industriais, o estigma social de se aceitar donativos de comida, os efeitos que a fome tem no desenvolvimento das crianças, os menus servidos nas escolas ou a alocação “patética” de dinheiro por parte do governo estabelecida por cada refeição dada a uma criança. Para além das histórias de vida dos personagens principais, são vários os entrevistados que participam no filme. A activista e professora universitária Marion Nestle, Mariana Chilton, da organização não-governamental Witnesses to Hunger, o autor do livro Stuffed and Starved, Raj Patel, Janet Poppendich, autora de Sweet Charity? ou o famoso actor Jeff Bridges, com papel principal no documentário e fundador também da End Hunger Network, são apenas alguns dos entendidos na matéria que falam para as câmaras.

E, de acordo com vários críticos, o filme serve, essencialmente, para chamar a atenção para o problema da fome, da nutrição e de um sistema completamente “estragado”. Através das perguntas inconvenientes que formula, as respostas passam a ser uma prioridade, como por exemplo, as que se seguem: Por que motivo o governo norte-americano concede subsídios chorudos à gigantesca indústria agrícola que alimenta a vizinha indústria de processamento de alimentos e não à agricultura de pequena dimensão que cultiva frutas e legumes? Como é possível que o país mais rico do mundo permite que 50 milhões dos seus cidadãos passem fome?

Na verdade, e como já é habitual, mesmo com um enorme desafio como é o da fome, a consciencialização e a legislação fazem parte das soluções. E o documentário em causa cumpre, na íntegra, os seus propósitos de disseminar uma realidade até agora escondida e de iniciar um debate alargado sobre formas de a mitigar. Como escrevia um jornalista do The Huffington Post, “se aceitarmos o facto de existirem muitos americanos que sofrem de insegurança alimentar [o termo “insegurança” refere-se, neste caso, aos que não sabem onde irão buscar a sua próxima refeição], e que a América é, simultaneamente, o país mais rico e mais gordo da história mundial, é realmente pedir muito ao governo, e não a um conjunto de caridades desorganizado, que deverá assegurar que todos os americanos, as crianças em particular, tenham comida suficiente?”. A pergunta terá de ter uma resposta.

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Quando a fome e a obesidade são faces diferentes da mesma moeda
O paradoxo existente na expressão “obesidade + fome” é igualmente bem explorado no documentário. A história de Tremonica ilustra a coexistência de ambas numa só pessoa. E, no filme, a professora de nutrição da Universidade de Nova Iorque, Marion Nestle, sublinha que o preço dos alimentos processados baixou cerca de 40% na última década, enquanto o custo de frutas e vegetais sofreu um aumento na mesma ordem de grandeza ao longo do mesmo período. Esta disparidade de preços ajudou à expansão da epidemia da obesidade, especialmente entre os grupos sociais com menores rendimentos. Exactamente a situação de Tremonica, cuja mãe afirma não ter dinheiro para comprar os frescos necessários a uma alimentação saudável.

“Penso que é extremamente importante pensar na fome e na obesidade como os lados opostos de uma mesma moeda”, afirmou, em entrevista à Reuters, Bill Shore, fundador e CEO da Share our Strenght, uma organização sem fins lucrativos cuja missão é a de erradicar a fome infantil nos Estados Unidos. O acesso a comida saudável constitui um enorme problema nos chamados “desertos alimentares”, um termo utilizado para as áreas tanto urbanas como rurais, nas quais existe escassez de alimentos frescos.

Como é do conhecimento geral, os Estados Unidos são recordistas no número de obesos, problema que é cada vez mais associado ao tipo de comida que está disponível e que é acessível em termos de custo.

Os subsídios privilegiam o milho, o trigo, a soja e os cereais que mais são utilizados nos alimentos processados e com teores de gordura elevados. Menos de 1% dos subsídios é canalizado para a produção de frutas e vegetais. Adicionalmente, a distribuição de alimentos saudáveis nas mãos dos consumidores não é fácil, devido aos elevados custos de transporte e à facilidade de estes se tornarem perecíveis (apesar de existirem algumas cidades que implementaram programas que asseguram a distribuição de frutas e vegetais através de “âncoras comunitárias”, como os hospitais locais). E uma “pequena” curiosidade partilhada pela professora Marian Nestle no filme: “Estamos a gastar 20 mil milhões de dólares em subsídios que são aplicados nos alimentos errados (…). E 20 mil milhões de dólares seriam mais do que suficientes para promovermos uma população saudável e educada, a começar pelas crianças”,acrescenta. Mais ainda, a força e o poder dos lobbies da agro-indústria e dos conglomerados de fast-food – sem esquecer o dinheiro que têm para publicitar os seus produtos – esmagam quase por completo as questões da nutrição, da fome ou da pobreza.

Mas, e como sublinha a co-realizadora Jacobsen, a partir do momento em que os americanos ficarem ao corrente das situações de fome e de nutrição que ocorrem no interior das suas fronteiras, terá que se encontrar uma saída: “este é um problema político e facilmente solucionável”, garante. E o próprio documentário oferece algumas potenciais soluções para o mesmo  – a expansão dos vales-refeição, assegurar que todas as crianças qualificadas para a alimentação gratuita nas escolas a recebam efectivamente, implementar campanhas educativas sobre nutrição, reexaminar os subsídios estatais e reverem-se as orientações para a assistência alimentar federal são algumas das propostas.

E, também para levar a voz até aos senhores do topo, foi lançada, em conjunto com o filme, uma gigantesca campanha de acção social (pela Participant Media) para alertar para o problema e para o necessário debate e envolvimento político que o mesmo merece.

É que talvez agora, os legisladores que foram entrevistados para o documentário possam já não ter condições de afirmar que “nunca receberam qualquer informação ou evidência que existisse fome (…)” ou que não a considerem “uma prioridade para o seu eleitorado”.

Consulte o trailer do filme
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