Parecemos estar a sair da pandemia e os indicadores sugerem que estas alterações vieram para ficar, pelo menos em grande parte. O benefício das pessoas e das famílias será maior e de uma situação terrível brotou uma solução sensível e transponível
POR PEDRO COTRIM

Nas palavras de João Pedro Tavares, presidente da ACEGE, não existe vida profissional ou familiar – aquela conjunção coordenativa terá absolutamente de ser modificada. É escusado pensar o contrário, pois a nossa matriz é de tal modo imbrincada que seria impossível a separação. Como tal, uma empresa onde não se dê a importância devida às pessoas será dos reinos do inimaginável ou do rapidamente impraticável.

A pandemia veio precipitar situações que a Fundación Másfamilia já enaltecia há anos: flexibilidade laboral, teletrabalho, possibilidades verdadeiras de desenvolvimentos e outras questões fundamentais. Pelo facto de esta fundação ser representada em Portugal pela ACEGE, podemos afirmar que a associação também esteve à frente do seu tempo em relação a este quotidiano da segunda década do século XXI. Ouse-se uma máxima: se o tempo é voraz, sejamos vorazes com o que fazemos com ele.

A Fundación Másfamilia concebeu e pôs em prática o programa designado Entidades Familiarmente Responsáveis (EFR), destinado a colmatar e a prevenir as brechas que os tempos acelerados podem criar no tecido social e familiar. A certificação EFR é reconhecida internacionalmente e cada vez mais empresas procuram ostentar este símbolo. Percebe-se que o salário, além de material, tem uma componente emocional difícil de quantificar. Não é uma desculpa para retribuições mais baixas; antes é uma forma de os trabalhadores perceberem que uma empresa certificada investe materialmente e moralmente no seu bem-estar.

Conversámos com Isabel de la Peña, coordenadora do programa EFR na ACEGE. As perguntas suscitaram respostas interessantes, quiçá fundamentais. Como afirmámos noutro artigo, o trabalho é uma espécie de traje social que estrutura relações fundamentais. Como tal, e partindo de tudo isto que é tão nosso, a Isabel ajuda-nos a melhor entender este projecto essencial.

Bom dia, Isabel. Estamos a sair de uma pandemia que baralhou o esquema de trabalho e que o transformou em algo pouco concebível há apenas dois anos. Poderás explicar de que modo este «novo normal», como lhe começámos a chamar foi antecipado pelo programa EFR?

Bom dia, Pedro. Parecemos estar a sair da pandemia e os indicadores sugerem que estas alterações vieram para ficar, pelo menos em grande parte. O benefício das pessoas e das famílias será maior e de uma situação terrível brotou uma solução sensível e transponível. Pode dizer-se, neste caso, que Deus escreveu direito por linhas tortas.

És uma defensora acérrima deste modelo. Terás boas razões, imagino.

Claro! Começo por salientar os benefícios familiares. Por exemplo, uma empresa que conceda o dia de aniversário de um filho a um trabalhador, ou mesmo a parte da tarde, está a investir os seus recursos de uma forma adequada. Em vez de o trabalhador estar numa lufa-lufa por causa do dia especial, tem a possibilidade de tratar de tudo atempadamente. No dia seguinte, provavelmente estará mais feliz e descansado, sendo mais produtivo e grato à empresa. O mesmo pode ser feito no primeiro dia de escola ou noutra qualquer ocasião especial para o trabalhador. Saliento que este custo é elevado para a empresa, porque são dias pagos vezes o número de trabalhadores, o que pode significar muito dinheiro no final do ano. É, contudo, um investimento espantoso no trabalhador e na própria empresa.

Pois, as contas não se fazem apenas em termos de euros a haver ou a pagar. Há mais vida…

Como é evidente. Para o tal traje social poder estruturar relações fundamentais, terá de estar feito à medida. O custo é grande, pois seria mais fácil «fardar» todos os trabalhadores do mesmo modo e julgar, erradamente, que o que é importante para um é importante para todos os outros. Há contextos familiares e pessoais diferentes e necessário é que as administrações o compreendam. Há famílias unidas, há pais separados, há trabalhadores sem filhos, há pessoas que vivem com amigos ou com familiares idosos e cada uma terá uma necessidade especial um pouco diferente. E as pessoas são a parte mais importante das organizações. São, aliás, as próprias organizações, se analisarmos com detalhe este significado.

Pois claro que é verdade, uma organização ou uma empresa sem pessoas deixa de o ser.

E tantas vezes não se pensa assim. Há o produto da empresa, que é um pouco a sua imagem de marca, e muitas vezes há liderança defeituosa. Um mau líder pode destruir uma empresa que tenha um excelente produto, de onde a liderança tem de ser bilateral. Claro que caberá sempre à administração a decisão, mas convém escutar os colaboradores. Em muitos sítios ainda se ouve o impensável «você não é pago para pensar» ou o «ninguém lhe pediu a opinão». Há frases inaceitáveis ditas aos trabalhadores que apenas servem para os irritar ou para os amotinar. A última palavra não será deles, mas talvez se escutem muito boas ideias em que não se tinha pensado.

Fazes-me lembrar de uma frase de um artigo que escrevi há um mês, em que Eiji Toyoda se gabava de os trabalhadores da Toyota fazerem chegar à administração 1,5 milhões de sugestões por ano. Não eram contudo retribuídos até reclamarem veementemente.

Também não serve. Uma boa ideia posta em prática terá de ser recompensada. Se as pessoas são o «activo» mais importante, merecem toda a atenção e a retribuição justa. Eu trabalhei trinta anos na banca inglesa e cada colaborador era um colaborador. Como conheço bem a realidade de olhar para um trabalhador como uma pessoa, não como um custo, abracei este projecto EFR.

Este projecto EFR. Queres falar do modo como se põe em prática?

Claro! A primeira etapa é sempre o diagnóstico. Fazer as perguntas certas e procurar as respostas. Quem são as nossas pessoas? O que querem, do que precisam? Para se obter a certificação EFR é necessário avaliar constantemente o caminho. E a própria certificação não é uma meta, é sempre um percurso.

Não é uma meta? Como se faz então quando se obtém a certificação?

Quando a empresa obtém a certificação não a quer perder. Está comprometida em fazer melhor e a própria certificação tem graus distintos. Mesmo quando chega ao nível máximo, ao A+, o trabalho continua. Ou aumenta, até. Por um lado, é mais fácil de manter porque o salário emocional é pago, há compromisso evidente de todos, há bem-estar, há inclusão, respeito e reputação. Mas tudo isso tem de ser mantido, e uma vez mais a liderança tem de ser exemplar.

Fazes-me lembrar aquela frase, «à mulher de César não basta ser séria»…

Ora bem! Uma marca reconhecida não pode admitir manchas na reputação. Ainda por cima, nos tempos que correm basta um boato disseminado rapidamente pelas redes socias para deitar muita coisa a perder, daí que se efectuem auditorias internas para acompanhamento do processo.

Que não significam a renovação da acreditação.

Não significam a renovação da acreditação, que ocorre de três em três anos, com uma auditoria externa efectuada por uma entidade homologada: a AENOR, a APCER ou a SGS. O relatório final e a documentação são enviados  para a Fundação Mais Família, a entidade que valida e dá o parecer final sobre a  certificação.  A acreditação, como o próprio nome indica, significa acreditar. Se todos os elementos da empresa acreditarem neste ponto de vista mais optimista da vida, está criada a simbiose para o bem-estar, para o lucro, para a confiança, para o sentimento de pertença e para a estabilidade a todos os níveis.

Estabilidade que é tão necessária hoje em dia.

Mais que nunca. Nestes dias complicados, em que se tenta proteger a Europa apesar das forças antagónicas que acabaram por a gerar, nascem novas ideias sobre a coexistência de todos. E para isso é necessário atentar em cada indivíduo.