De notar que o bem mais precioso e fundamental é a própria vida. No limite, o inimigo define-se como esse que quer alienar o bem maior de cada pessoa que assim elege, por inimizade, a sua vida. Como é evidente, tal aplica-se quer a ditos inimigos externos quer internos. O soldado nunca é um fraco ou um frustrado psicológico, antes é sempre um ser humano forte e de vida ética, não psicológica. Se o não for, não é um soldado.
POR AMÉRICO PEREIRA

No comum uso impensado da linguagem, muitas vezes, confunde-se não apenas os termos, como veículos de referência lógica ao real próprio das coisas, mas isso a que tais termos supostamente se referem. Um dos exemplos mais claros de tal confusão – nos dias de hoje, tema dolorosamente pertinente para pavlovianamente adormecidos e desatentos habitantes de um mundo em pré-desespero – é a que se estabelece, voluntariamente ou não, entre o «soldado» e o «guerreiro».

Todavia, não são confundíveis. O soldado existe por imbecil necessidade humana, como se pode encontrar explicado no «Livro II» da Politeia, de Platão: como os seres humanos não resistem à perversão do desejo necessário em desejo exorbitante, procurando satisfazer as suas inecessárias necessidades às custas dos bens que competem de ontológico direito a outros seres humanos, há que ter, cada «polis», cada cidade, um determinado número de cidadãos cuja ocupação é defender, se tal for o caso – historicamente, tem sido sempre «o caso» –, a cidade da rapacidade de quem a queira atacar para lhe roubar – termo técnico, pois trata-se de um ato violento – os bens que a tal cidade pertencem.

Este é o soldado.

O soldado não é violento, limitando-se a usar a força necessária para que a sua missão seja cumprida, isto é, permitir que os bens que são de direito da sua cidade nela permaneçam, em caso de ataque, de tentativa de roubo. O seu papel é defender a cidade dos seus inimigos. Inimigo é, assim, aquele que quer roubar à cidade, ou a algum de seus seres humanos integrantes, o bem ou bens que lhe respeitam inalienavelmente.

De notar que o bem mais precioso e fundamental é a própria vida. No limite, o inimigo define-se como esse que quer alienar o bem maior de cada pessoa que assim elege por inimizade, a sua vida. Como é evidente, tal aplica-se quer a ditos inimigos externos quer internos. O soldado nunca é um fraco ou um frustrado psicológico, antes é sempre um ser humano forte e de vida ética, não psicológica. Se o não for, não é um soldado.

De notar que o que ficou claramente estabelecido acima nada diz respeito a algo como alguém, de livre vontade e sem qualquer forma de coação, doar de seus bens a um outro, qualquer seja. Tal designa o ato de caridade, que é, precisa e exatamente, a antítese ética e política do ato de guerra.

Ora, sendo assim, e se assim não for, não se trata de um soldado, mas de algo diverso, o soldado é um servidor do bem-comum que constitui a cidade e o seu papel é sempre o de responder a um ataque.

Este papel não é «passivo», mas é «pacífico», pois serve para promover a paz. É ativo, pois compete-lhe, ativamente, combater o mal que for desencadeado sobre a sua cidade. O que nunca lhe compete é desencadear o mal sobre outra qualquer cidade ou sobre a sua cidade, abusando do poder que corresponde ao serviço que dele se espera, que o constitui como elemento próprio do bem-comum da cidade.

Para que possa subsistir, o guerreiro necessita de guerra. Ora, se ninguém lha providencia, tem ele próprio de se a autoprovidenciar. Não interessa o motivo, a razão, a desculpa: o guerreiro tem de fazer a guerra. A única questão que se põe é a de saber se de tal defesa faz parte algo como um ataque preventivo em caso de intuição acerca de uma não só possível como provável agressão daquele que, por meio de tal agressão, se transforma em inimigo. Ora, tal ataque faria do soldado defensor um agressor, deixando de ser propriamente um soldado, para passar a ser algo de semelhante ao que define o guerreiro.

A alternativa consiste apenas em ser-se tão poderoso em termos defensivos que o possível inimigo saiba que qualquer sua iniciativa implicará a imediata – de preferência – ou mediata aniquilação. Terrível lógica, mas é a lógica da guerra, que não tem e nunca terá outra. Quem não quiser que tal lógica se aplique não faça guerra, no sentido de se abster de atacar seja quem for, de se abster de toda a violência. Se optar pela violência, imediatamente instala a lógica da guerra, não fazendo qualquer sentido que, depois, se lamente: a obra foi sua, com tal obra viva ou morra. Relembra-se aos adormecidos que tal é a diabólica lógica da guerra.

O soldado é, assim, um ser humano de paz, que não deve ser confundido com um cobarde: para o pacífico, nenhuma virtude é mais preciosa do que a coragem. Todavia, é esta mesma coragem de pacífico que permite defrontar e vencer, se possível, a agressão. O soldado nunca é um fraco ou um frustrado psicológico, antes é sempre um ser humano forte e de vida ética, não psicológica. Se o não for, não é um soldado.

Ora, o guerreiro é um parasita. A razão de existência do guerreiro é a guerra: sem que exista guerra, o guerreiro não pode existir. Simples lógica. Assim como se pode pensar racionalmente a existência de um soldado que nunca tenha feito guerra por não ter sido necessário, se bem que para tal estivesse sempre preparado, assim não é possível pensar-se racionalmente a existência de um guerreiro sem guerra.

Vivendo, assim, do que compete ontologicamente aos outros, o guerreiro é um parasita. Ora, a existência da humanidade não é compatível com a existência de parasitas, sejam eles um vírus ou um fungo ou um ser humano que quer viver às custas dos seus semelhantes.

O guerreiro é para a guerra e só existe em função do ato de guerra e do ato de guerra em realização: não há “guerreiros virtuais” durante muito tempo: ou «fazem a guerra», assim se realizando, assim sendo, ou desaparecem.

Deste modo, para que possa subsistir, o guerreiro necessita de guerra. Ora, se ninguém lha providencia, tem ele próprio de se a autoprovidenciar. Não interessa o motivo, a razão, a desculpa: o guerreiro tem de fazer a guerra ou, como tal, é aniquilado. Como só sabe ser em função da guerra, não tem outro remédio senão criar atos de guerra.

Ora, como foi visto, o ato de guerra implica sempre um ato de violência sobre alguém, roubando alguém de algo que lhe compete, seja algo que é, que possui ou que pode ser ou pode possuir; todavia, tal é seu, irredutivelmente. Não se trata do habitual conceito burguês de posse, mas do que ontologicamente faz parte da possibilidade de ser de cada ente humano. Não é difícil perceber-se do que se trata, variegadamente. Vivendo, assim, do que compete ontologicamente aos outros, o guerreiro é um parasita.

Ora, a existência da humanidade não é compatível com a existência de parasitas, sejam eles um vírus ou um fungo ou um ser humano que quer viver às custas dos seus semelhantes.

Tal significa que a lógica da guerra, a lógica guerreira, levará, se não eliminada, à aniquilação, mais ou menos demorada, da humanidade. Todavia, grande parte da humanidade insiste na lógica parasitária do guerreiro, na lógica parasitária e destrutiva da guerra. No limite, esta insistência aniquilará a humanidade.

Reze-se, pois, pela paz. Deus não é guerreiro e os seus soldados somos nós. Entende-se? Pense-se bem no inconfessável pânico em que se está presentemente a viver a partir do ato em que se percebeu que, afinal, as armas nucleares que sempre existiram desde 1945 podem mesmo (!) ser usadas e o seu uso aniquilar a humanidade.

Do ponto de vista de Platão, invocado inicialmente, a situação não é nova – não é por não haver bombas nucleares no tempo de Platão que o fundamental da questão é diverso, imbecil interpretação clausewitziana –, esta situação que presentemente se vive, pois, por causa da guerra, a humanidade esteve sempre ameaçada, estando, sobretudo, quando a cidade já não é Leninegrado ou Kiev, mas todo o mundo, “cidade global”. Todavia, cidade, porque feita de seres humanos.

Iniciada uma guerra, que não é prolongamento de coisa alguma, mas ato parasita de seres humanos sobre seres humanos, nunca se pode saber e ninguém pode saber como prossegue – o que se vai vendo na forma néscia como os especialistas confessam que não esperavam, que não pensavam, nitidamente –, ninguém pode saber como termina, se é que alguma vez termina: já pensaram, especialistas e outros pensadores, que uma guerra pode nunca terminar senão por extinção da humanidade? Então, pensem.

Quem sabe rezar, reze. Quem não sabe, pode aprender.

Não se reze, todavia, ao “deus dos exércitos”, pois não há tal deus. Reze-se a um deus de amor, a Deus, se for o caso. Todavia, não foi Deus quem inventou o inferno, mas as suas criaturas.

Se o preço da liberdade for a aniquilação da humanidade, esta irá pagar tal preço. Foi criada para ser livre. Tal possível liberdade tem um preço.

Parte do preço consiste, ou consistiu, em eliminar ostiranos “no ovo” Não os eliminando no ovo, pode ter de lutar contra eles adultos, fortes, poderosos. Tal luta pode ser agónica, de morte.

Reze-se, pois, pela paz.

Deus não é guerreiro e os seus soldados somos nós. Entenda-se.

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Artigo gentilmente cedido pelo autor e aqui previamente publicado no Secretariado Nacional da Pastoral da cultura.

Américo Pereira

Coordenador da Área Científica de Filosofia da FCH (UCP), de 2103 a 2015. Membro investigador e vogal da Direcção do Centro de Filosofia (CEFi) da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa).