Naturalmente, a ação do Papa não se reduz a documentos, mas estes, sem dizerem tudo, revelam muito, quer pela maturação que exigem e expressam (trata-se sempre de palavras cuidadosamente escolhidas), quer pela durabilidade a que aspiram
POR P. ANTÓNIO ARY, sj.

Não é fácil sintetizar os dez anos do pontificado do Papa Francisco, tantos são as palavras, os gestos, os encontros, as decisões que marcam este tempo novo e muitas vezes surpreendente na Igreja. Arrisco-me a fazê-lo a partir de dez documentos que exprimem o ministério do Papa Francisco e dão corpo, cada um à sua maneira, à reforma da Igreja desejada pelos cardeais antes da eleição. 

Naturalmente, a ação do Papa não se reduz a documentos, mas estes, sem dizer tudo, revelam muito, quer pela maturação que exigem e expressam (trata-se sempre de palavras cuidadosamente escolhidas), quer pela durabilidade a que aspiram. As escolhas que apresento são obviamente pessoais e não têm a pretensão de reunir os textos “mais importantes” do Papa Francisco, mas têm, a meu ver, uma força simbólica que permite vislumbrar, não só o pensamento, mas também o sentir, as preocupações e modo de proceder do Papa.

Exortação apostólica Evangelii gaudium (2013)
Este texto constitui o primeiro grande documento escrito e publicado pelo Papa Francisco, ao qual quis dar um valor explicitamente programático, traçando, de entrada, aquelas que seriam as grandes linhas do seu pontificado. Neste longo texto, que toca variadíssimos aspetos da vida eclesial, sobressai o sonho de uma Igreja em saída, “hospital de campanha” capaz de chegar às periferias para acolher a todos. Este desejo tem na sua base uma visão não-autorreferencial da Igreja, fundada numa visão teológica que privilegia o encontro com a realidade frente a grandes esquemas teóricos, que assume o risco de fazer caminho e desenvolver processos, mais do que apresentar respostas já prontas.

Bula Misericordiae vultus (2015)
Dois anos após a sua eleição, o Papa Francisco convocava com este documento o Jubileu extraordinário da Misericórdia, pondo esta categoria teológica como chave de leitura, não só do pontificado como de toda a fé cristã. De forma surpreendente, o ano jubilar teve início, com a abertura da Porta Santa, não em Roma como era tradicional, mas em Bangui, na República Centro-africana, trazendo para o centro os descartados deste mundo, num convite ao encontro com Cristo que nos transforma para sermos “misericordiosos como o Pai”.

Encíclica Laudato Sì (2015)
Inspirado no Santo de Assis, de quem tomou o nome, o Papa escreveu este belíssimo hino ao cuidado da “Casa comum”, abrindo a reflexão da Igreja aos dados da ciência e às preocupações de tantos homens e mulheres. Sem fazer da ecologia uma bandeira ideológica, Francisco convida a um olhar integral sobre as relações entre os homens, entre os povos e com a Criação. Recolhendo o magistério precedente dos últimos Papas e de muitas Conferências episcopais através do mundo, esta encíclica − forma mais solene de documento doutrinal − dá “plena cidadania” às questões ambientais como elemento essencial da Doutrina social da Igreja. Através do conceito de ecologia integral, o Papa Francisco denuncia e convida a sonhar uma alternativa à “economia que mata”.

Exortação apostólica Amoris Laetitia (2016)
Em pleno Ano da Misericórdia e no seguimento de dois sínodos dos bispos dedicados ao tema da família, o Papa Francisco oferece-nos este verdadeiro “evangelho da misericórdia” para as famílias, na variedade imensa que as caracteriza. Reconhecendo na instituição familiar um lugar decisivo da proposta moral (isto é, de felicidade) da Igreja, mas também do seu confronto e diálogo com o mundo, o Papa coloca no centro a atitude do discernimento, que recusa a aplicação mecânica de um “esquema pré-determinado”, mas, a partir do encontro com Cristo, dá pistas para que cada um encontre o seu caminho de fidelidade. No caso das famílias feridas, em particular, encontra aqui expressão o princípio pelo qual “o tempo é superior ao espaço”, obrigando pastores e fiéis a privilegiar os processos, renunciando à clareza das definições e delimitações a priori.

Exortação apostólica Christus vivit (2019)
Depois de uma primeira exortação apostólica sobre a santidade a que todos os cristãos são chamados (Gaudete et exsultate, 2018), o Papa Francisco recolheu as conclusões do sínodo sobre a juventude neste documento em que reforça este convite, dirigindo-o agora especialmente aos jovens. Neste texto em forma de carta, com tom próximo e afetuoso, como de um irmão mais velho, o Papa desafia os jovens ao encontro pessoal e à amizade com Cristo. Para Francisco, os jovens não são “o futuro da Igreja”, mas o presente, um tesouro de energia e vitalidade capaz de arrastar para a frente todo o Povo de Deus, longe de qualquer rotura  mas assumindo a riqueza da intergeracionalidade.

Documento de Abu Dhabi sobre a fraternidade humana (2019)
Num tempo em que muitos apregoam o “choque de civilizações”, nomeadamente com o mundo muçulmano, o Papa Francisco tem promovido incansavelmente o encontro e o diálogo com o Islão (a par de outras tradições religiosas), num esforço que teve o seu ponto alto nesta declaração conjunta do Chefe da Igreja católica e do Grande Imã Ahmad al-Tayyib. Neste texto que leva às últimas consequências o ensinamento do Concílio Vaticano II acerca do diálogo inter-religioso, vem afirmada a cultura do diálogo como caminho, a colaboração como conduta e o conhecimento mútuo como método e critério.

Motu proprio Vos estis lux mundi (2019)
Com este documento jurídico (entre outros), o Papa Francisco deu corpo à sua proclamação da “tolerância zero” para com os abusos sexuais de menores na Igreja. A atualização das regras para tratar os abusos cometidos na Igreja colocou, com determinação, no centro o sofrimento das vítimas, e já não a falta moral do clérigo, e equiparou pela primeira vez o encobrimento ao próprio abuso. Consciente de estar diante de um problema de difícil erradicação, que toca toda a Igreja, o Papa contribuiu, com a sua ação, a trazer luz para esta ferida, promovendo uma cultura de cuidado e de responsabilidade.

Encíclica Fratelli tutti (2020)
No seguimento do documento de Abu Dhabi, o Papa retomou o tema da fraternidade, como mote para a sua segunda (grande) encíclica social. Neste documento publicado em plena pandemia, Francisco leva até às últimas consequências o lema “ninguém se salva sozinho”, colocando a fraternidade no centro da economia e da política. Depois de traçar o diagnóstico de um mundo que tende a fechar-se, o texto recorre à parábola do “bom samaritano” para desafiar a colocar o amor (e a amizade) no centro da vida social, da política, das relações entre Estados.

Motu proprio Traditionis custodes (2021)
Sem ser um documento de grande envergadura doutrinal, este texto que contém normas disciplinares acerca da liturgia anterior à reforma do Concílio Vaticano II, possui uma grande força simbólica. Por um lado, trata-se de uma intervenção que tem como preocupação primeira responder a derivas divisivas na Igreja, reafirmando a centralidade da herança conciliar e reconhecendo a impossibilidade de separar o aspeto litúrgico do doutrinal. Por outro, o Papa coloca no centro a necessidade de pastores e fiéis redescobrirem e reapropriarem-se da beleza e da verdade do celebrar cristão.

Constituição apostólica Praedicate evangelium (2022)
Finalmente, há exatamente um ano (no próprio dia de aniversário da inauguração do ministério petrino, dia de São José), o Papa promulgava a Constituição apostólica − forma mais solene de documento normativo − que concretiza a reforma da Cúria romana. No coração das estruturas que auxiliam diretamente o Papa no governo da Igreja figuram duas linhas de fundo essenciais: a autoridade como serviço, contra todas as formas de clericalismo, e a centralidade da evangelização, marca de uma Igreja em saída.

Concluo sublinhando um traço comum a todos estes documentos: todos eles são fruto de processos − por vezes longos, complexos e não isentos de tensões − que envolveram um esforço de participação, de escuta e de discernimento, nas mais variadas instâncias. Não por acaso, o documento que “falta” é aquele que há de resultar do processo iniciado em 2021 que conduzirá às duas assembleias, de 2023 e 2024, do sínodo sobre a sinodalidade.

Artigo originalmente publicado em Ponto SJ. Republicado com permissão.

P. António Ary, sj

António Ary nasceu em Lisboa em 1982. Tendo vivido na infância e juventude em França, regressou a Portugal em 2000 para cursar a licenciatura em direito na Universidade de Lisboa. Em 2005 entrou na Companhia de Jesus, seguindo o percurso habitual de formação dos jesuítas: estudou filosofia na Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa em Braga e teologia na Universidade Pontifícia Comillas, em Madrid, com um intervalo de dois anos dedicado ao acompanhamento pastoral de estudantes universitários no Centro Universitário Manuel da Nóbrega, em Coimbra. Foi ordenado sacerdote em 2016 e, atualmente, realiza estudos de direito canónico, na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma.