A Câmara Municipal de Lisboa foi a mais recente autarquia a aderir ao Compromisso Pagamento Pontual, que reúne já a participação de cerca de 970 entidades e, para assinalar o seu apoio ao movimento lançado pela ACEGE, realizou um Encontro de Fornecedores, que contou com a presença de Fernando Medina. Para o presidente do mais impactante município do País, não há hoje “qualquer razão para que o Estado não pague a horas”, já que “tem todos os instrumentos para não transferir o ónus dos custos da incerteza para os fornecedores privados”
POR GABRIELA COSTA

Em Portugal apenas 20,1% das empresas cumprem os prazos de pagamento a fornecedores, de acordo com a edição de Julho de 2016 do “Payment Study” da CRIBIS D&B, e cuja informação nacional foi analisada em colaboração com a Informa D&B. Portugal é, assim (e ainda), o pior pagador da Europa, classificando-se mesmo atrás da Grécia, entre 19 países europeus.

A nível do Estado, as autarquias melhoraram de forma expressiva o Prazo Médio de Pagamento (PMP) entre 2012 e 2015, demorando agora cerca de 50 dias (menos 69) a liquidar as suas facturas, mas, no mesmo período, as entidades públicas pioraram em dez dias o seu comportamento a este nível, alargando o PMP de 139 para 149 dias, como revelam dados da DGAL – Direcção Geral das Autarquias Locais e da DGO – Direcção Geral do Orçamento.

Preocupada com estes números, a Câmara Municipal de Lisboa realizou a 6 de Abril o Encontro B2B Lisboa, que assinalou a adesão do município ao Compromisso Pagamento Pontual, movimento lançado em 2011 pela Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE). A iniciativa visa promover uma cultura de pagamentos atempados no meio empresarial e no sector público, contrariando a tendência ainda massivamente perniciosa para os atrasos na liquidação de facturas, e reúne hoje a adesão de cerca de 970 entidades, incluindo 17 câmaras municipais.

O evento reuniu 250 participantes no Fórum Lisboa, entre fornecedores da autarquia e membros da Associação, numa cerimónia que integrou uma conferência que contou com a presença do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, e de representantes dos parceiros da iniciativa: CIP, IAPMEI, Apifarma e Caixa Geral de Depósitos.

Na abertura do Encontro, o vereador dos Recursos Humanos e Financeiros da CM de Lisboa, João Paulo Saraiva, sublinhou a importância da existência de finanças municipais saudáveis e sustentáveis, admitindo que o município da capital atingiu um passivo total (cujo pico se registou em 2009, com 1952 milhões de euros) “que nunca devia ter chegado onde chegou”. Hoje o passivo da autarquia cifra-se nos 1129 euros, o que representa uma redução de 42%, isto é, 823 milhões de euros (a 31 de Dezembro de 2016).

[pull_quote_left]A dívida a fornecedores da Câmara de Lisboa registou uma descida brutal, e o pagamento faz-se agora num prazo de dois dias – João Paulo Saraiva, vereador dos Recursos Humanos e Financeiros da CM de Lisboa[/pull_quote_left]

Segundo João Paulo Saraiva, a CM de Lisboa conseguiu mesmo reduzir metade da sua dívida legal nos últimos dez anos (de 1130 milhões de euros, em 2007, para 560 milhões de euros, em 2016), e “esta trajectória é para continuar, de forma sustentável, aproveitando todas as oportunidades e dinâmicas” disponíveis.

Quanto à dívida a fornecedores, se no final de 2007 se situava nos 459 milhões de euros, a que equivalia um Prazo Médio de Pagamento de 324 dias, em 2010 este valor diminuía para 109 milhões de euros (e para um PMP de 100 dias) e, no final do ano passado, registava “uma descida brutal”, para apenas 2 milhões de euros, ou seja, dois dias de prazo de pagamento a fornecedores. Como comenta o vereador do mais importante município do País, “este é o número que melhor espelha que, estando conscientes de que temos ainda de melhorar, já fizemos um enorme esforço e um bom trabalho”.

E, de facto, a câmara lisboeta conseguiu reduzir de forma “contínua”, entre 2007 e 2016, a quase totalidade da sua dívida a fornecedores e do seu PMP: 457 milhões de euros e 322 dias, respectivamente. Ao mesmo tempo que alargou o número de fornecedores (4669) que, nos últimos cinco anos, foram pagos por algum tipo de bem ou serviço, num total de 992,2 milhões de euros. A relação com estes visa, de resto, ser cada vez mais “de parceria”, garantindo “uma contratação pública mais sustentável”, com “relações mutuamente vantajosas” e maior equilíbrio entre os pilares económico, social e ambiental da gestão municipal, conclui João Paulo Saraiva.


A competitividade que não se quer atrasada

Defendendo que o atraso no pagamento a fornecedores “é um dos principais factores para a falta de competitividade” do País, o presidente da ACEGE reafirma, no Encontro promovido em conjunto com a Câmara Municipal de Lisboa, que “tendo-se consciência do impacto” provocado pelo facto de 82,5% de empresas (em Janeiro de 2017, e de acordo com a Informa DB) não cumprirem os prazos estipulados para a liquidação das facturas, estamos perante uma grave “falta de ética”.

Em toda a Europa, esta realidade é responsável por “um quarto das falências”, nota. E o comportamento do sector privado é visivelmente mais positivo que a nível nacional, com 37,5% das empresas a pagar a horas, contra apenas 20,15% em Portugal, em 2015, segundo a mesma fonte. Ainda assim, houve um a evolução no PMP a nível nacional, de 82 dias, em 2010, para 72 dias, em 2016, o que constitui um “dado muito positivo”, sublinha João Pedro Tavares.

[pull_quote_left]Tendo-se consciência do impacto provocado por 82,5% das empresas não cumprirem os prazos, estamos perante uma grave falta de ética – João Pedro Tavares, presidente da ACEGE[/pull_quote_left]

A esta evolução não serão alheias iniciativas como o Compromisso Pagamento Pontual, que reúne hoje a participação de quase 970 entidades e que previsivelmente “alcançará em breve as mil”, com a adesão da Câmara Municipal de Viseu e de várias organizações privadas e municipais do distrito, a 27 de Abril.

O impacto dos números na realidade económica e social do País é bem visível, por exemplo, nas grandes empresas (com mais de 250 empregados) que, sendo as mais cumpridoras quanto ao pagamento dentro do prazo estipulado – 6,8%, contra 13,6% nas médias (50 a 249 empregados), 21,1% nas pequenas (10 a 49 empregados) e 24% nas micro (menos de 10 empregados), “são as que mais afectam o fluxo de capital”, comenta o presidente da ACEGE.

Como recorda, o impacto de um atraso de 12 dias calculado por Augusto Mateus nos seus habituais estudos sobre esta matéria traduz-se “numa perda de postos de trabalho muito significativa”, da ordem dos 14 468 empregos destruídos, ao ano, e num efeito médio anual sobre o Valor Acrescentado Bruto de 0,39% do PIB.

Acreditando que “é possível mudar”, João Pedro Tavares recorda o exemplo da Câmara Municipal de Lisboa, cuja melhoria, a este nível, “impacta no PMP nas autarquias”, o qual diminuiu “de forma significativa”, em 69 dias (de 119, em 2012, para 50, em 2015, de acordo com os dados da DGAL e da DGO).

[pull_quote_left]O exemplo tem de vir de cima, das grandes organizações e dos municípios – Stephan Morais, administrador da Caixa Capital[/pull_quote_left]

Já a melhoria no sector empresarial (de 80 para 72 dias, no mesmo período) “não é tão impactante” e, contas feitas, “é urgente mudar o ciclo vicioso de pagamentos num ciclo virtuoso, especialmente no Estado Central e no sector da saúde”, alerta o presidente da ACEGE, apelando à adesão ao Compromisso Pagamento Pontual, que visa, “acima de tudo, criar uma comunidade de referência” para combater este problema estruturalmente erosivo para a sociedade.

Sublinhando que o exemplo da Câmara de Lisboa é “fundamental para mudar o paradigma nacional de atrasos”, o Administrador da Caixa Capital considera que “o exemplo tem de vir de cima, das grandes organizações e dos municípios”, adiantando que se trata de “uma bola de neve que temos de interromper”.

A Caixa Geral de Depósitos também aderiu à iniciativa da Associação Cristã e “está a fazer um grande esforço para ser um exemplo, num contexto de grande contenção, como sabem”, admite Stephan Morais. A Caixa Capital “está no dia-a-dia das empresas” e, neste contexto, o esforço passa por “motivar parceiros “, por exemplo, através da dinamização de formações junto dos clientes e fornecedores, de programas de literacia financeira e da disponibilização de soluções de apoio à tesouraria.


O efeito cascata que urge interromper

Em Fevereiro de 2011 a União Europeia regulou os prazos de pagamento a fornecedores, estipulando, na sua Directiva 2011/7/UE, um limite de 60 dias entre empresas privadas e de 30 a 60 dias entre empresas públicas e outros organismos estatais, e estabelecendo medidas de luta contra os atrasos nas transacções comerciais. Esta directiva europeia foi transposta para a legislação nacional em Maio de 2013, através do Decreto-Lei nº 62/2013.

Mas já um ano antes, “um dos mecanismos da troika foi estabelecer compromissos para a administração central e local”, de modo a que “a cadeia de valor continuasse a funcionar”: o Estado já não podia assumir determinadas compras “se não tivesse fundos”, sendo “obrigado por regras a cumprir prazos” de pagamento, como veio a impor a transposição da directiva europeia para a lei interna, defende João Almeida Lopes, presidente da Apifarma.

Na sua perspectiva, esta problemática do atraso na liquidação “funciona em cascata”, e prova disso é que os números relativos às empresas “que desapareceram, porque não tiveram capacidade para sobreviver, não são uma fantasia”. Muitas empresas não receberam o dinheiro a que tinham direito e, por sua vez, deixaram de ter liquidez e não conseguiram pagar os salários a tempo e horas, explica.

[pull_quote_left]As grandes empresas podem suportar atrasos nos pagamentos, mas as pequenas não têm essa capacidade – João Almeida Lopes, presidente da Apifarma[/pull_quote_left]

Este processo faz com que “fiquem afastados do mercado os que não têm capacidade para concorrer”, isto é, gera “uma concorrência que deixa de ser leal”. Para o também vice-presidente da Direcção da CIP, trata-se de um efeito grave, já que “as grandes empresas podem suportar atrasos nos prazos de pagamentos mas as pequenas não têm essa capacidade”. Perante um assunto “tão sério e importante”, que afecta de forma “dramática” sectores como o da saúde (onde o “sub-financiamento do Ministério” obriga à gestão de prazos muito alargados), quer a Apifarma quer a CIP se associaram, desde a primeira hora, à iniciativa da ACEGE, para “batalhar pela necessidade de haver pagamentos pontuais”, conclui João Almeida Lopes.

Corroborando que este é “realmente um problema em cascata nas empresas” que, em última instância, “acaba por “se traduzir num problema grave para toda a sociedade”, o que exige “um apelo adicional”, o novo presidente do IAPMEI acredita que, “é preciso introduzir mecanismos de Responsabilidade Social nos processos e procedimentos”.

Para Jorge Marques dos Santos, “as PME têm sido protagonistas de dinâmicas de resistência e superação”, concretamente no acesso a crédito ou face a exigentes níveis de competitividade. Mas, na sua opinião, muitas vezes, “as questões não são só financeiras”, mas passam também pela “forma como se organiza a actividade da empresa”.

[pull_quote_left]As PME têm sido protagonistas de dinâmicas de resistência e superação – Jorge Marques dos Santos, presidente do IAPMEI[/pull_quote_left]

Neste âmbito, a ausência de pontualidade constitui “uma reconhecida má prática”, e deve dar “origem a reflexão”, no sentido de “harmonizar” a realidade nacional com “o contexto europeu”. O mais importante, defende, “será divulgar o problema entre todas as partes”, e tentar “identificar estratégias mais competitivas e sustentáveis”, numa abordagem proactiva que o IAPMEI vem adoptando junto das empresas suas associadas, na procura das suas “reais necessidades”, conclui o responsável.

Parceiro do Compromisso Pagamento Pontual também desde o seu arranque, o IAPMEI promove uma “actuação concertada” por parte das organizações, que “reduza as falhas do mercado e permita a “afirmação das empresas” no mesmo. Para tanto, as empresas sabem que “precisam de inovar” e que “as práticas sustentáveis são diferenciadoras”, tal como reconhecem a importância da sua reputação na cadeia de negócio e “as consequências desastrosas” que um erro pode gerar nesta cadeia, explica Jorge Marques dos Santos.

Porque no actual contexto, “vivemos cada vez mais num mundo social”: tudo está “cada vez mais interligado” e “não faz sentido que haja compromissos com os nossos fornecedores, se estes não os tiverem também com os seus”. Em suma, o princípio da pontualidade “tem de funcionar ao longo de toda a cadeia de valor”, para efectivamente contribuir para a diferenciação do mercado. E por isso, apela, vale a pena ‘evangelizar’ as boas práticas que promovem uma mudança cultural na responsabilidade das empresas e do Estado sobre esta matéria.


O pagamento a pronto que Lisboa quer alcançar

Defendendo o pagamento pontual aos fornecedores da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina deslocou-se pessoalmente ao Fórum Lisboa para formalizar a adesão da autarquia ao Compromisso da ACEGE, afirmando que se trata “das iniciativas com maior impacto do ponto de vista económico”, e sublinhando que a mesma constitui “um instrumento que verdadeiramente está ao nosso alcance, só depende da vontade e da adesão”.

Lamentando que Portugal ainda sofra “atrasos significativos” a este nível, o que “não é normal”, o presidente da Câmara de Lisboa reconhece que é preciso fazer um esforço que contrarie “a falta de hábito” das empresas e entidades públicas face ao “cumprimento escrupuloso” da liquidação das facturas – sejam “a zero, a trinta ou a 60 dias” -, afirmando que “o pior é a incerteza que [esta realidade] causa na máquina económica do País.

[pull_quote_left]Uma economia que usa os seus fornecedores para financiar as suas actividades mostra sinais de doença – Fernando Medina, presidente da CM de Lisboa[/pull_quote_left]

Para Fernando Medina, “não há razão absolutamente nenhuma para os níveis de atraso nos pagamentos, particularmente graves e significativos quando o cliente é o Estado”. Pois este “tem os instrumentos para, querendo, mesmo nas circunstâncias económicas mais adversas, não transmitir o ónus dos custos da incerteza para os fornecedores privados”. Afinal, o Estado sabe, “à partida quanto pode gastar” e ”tem acesso a meios de financiamento para poder gerir essa situação”.

Neste contexto, “não é simples, mas não há verdadeiramente razão alguma para uma instituição pública não ter uma relação saudável com o seu fornecedor”, o que “devia ser um ponto de honra”, insiste o autarca, reafirmando que qualquer prazo de pagamento deve ser respeitado.

Só assim as empresas, públicas ou privadas, podem chegar ao fim do mês “com fluxo de caixa” e sem desperdiçar boa parte da sua energia a descobrir “como devem gerir os seus recursos financeiros” – um “sinal de que a economia funciona mal”, conclui: “uma economia que usa os seus fornecedores para financiar as suas actividades mostra sinais de doença”.

Para Fernando Medina, as autarquias têm “a obrigação social e económica de combater o paradigma de usar os fornecedores como uma forma de financiamento”. Como recorda, já em 2014 “afirmei perante a Câmara que queria o pagamento a pronto”.

Actualmente, a Câmara de Lisboa tem um prazo de pagamento médio a fornecedores de dois dias, mas o autarca acredita que é possível melhorar. “Temos uma obrigação social e económica e não dependemos da margem financeira arrecadada às custas dos fornecedores. Pagar a pronto é pagar a pronto, entra factura, é conferida e paga”.

Este objectivo levou a uma “reengenharia de todo o processo interno, desde que uma factura entra na Câmara, é conferida, validada e é dado o ‘ok’ ao pagamento”, explica, reconhecendo que “temos ganhos a fazer”, pois “não temos todos os processos optimizados, nem digitalizados”. Mas há muitas melhorias que podem ser levadas a cabo, desde logo “ter a atenção focada neste objectivo”, e “alterar procedimentos e a forma como trabalhamos, em conjunto”.

Reconhecendo, perante as muitas empresas municipais presentes no auditório do Fórum Lisboa, o papel de peso que a Câmara Municipal de Lisboa tem “na vida de muitas pessoas”, Medina deixa claro que “uma grande instituição pública não pode negligenciar a sua Responsabilidade Social com todo o tecido empresarial que está à sua volta”.

E, esclarecendo que “não se trata de um capricho, mas de uma missão, vir aqui buscar um diploma que certifica um compromisso”, reafirma que pagar dentro dos prazos definidos “é uma das iniciativas com maior impacto na nossa recuperação económica”.

No encerramento do Encontro B2B Lisboa, a ACEGE entregou os diplomas de participação no Compromisso Pagamento Pontual a empresas e entidades recentemente inscritas neste movimento, incluindo empresas municipais, como a EMEL, a EGEAC, a Gebalis e a Carris, entre outras.