O gelo, as caçadas, a caminhada constante e a morte quase sempre violenta, esses tremendos atributos do Paleolítico Superior. Foi a época das grutas de Lascaux e de Altamira, mas também de Foz Côa e do Lapedo.
POR PEDRO COTRIM

No Paleolítico Superior andava-se muito. Numa curta vida humana talvez se palmilhasse a Península Ibérica, de abrigo em abrigo ao sabor da meteorologia e da busca dos víveres.

Neste tempo antes do tempo de antes é provável que os humanos caçadores-recolectores não estivessem mal alimentados, uma vez que os recursos e a população se equilibravam. Os nossos avós eram matulões com um metro e noventa e uma robustez feroz. Como não padeciam das doenças que chegaram com o assentamento em povoados do Neolítico, a fase mais recente da «Idade da Pedra», tinham vidas brutas, bruscas e breves. Caçavam, comiam, eram caçados e eram comidos. O objectivo de cada dia seria qualquer coisa como «chegar vivo ao anoitecer». E não se pense que um tal lema pudesse ser despropositado, pois que há vestígios evidentes de espiritualidade.

Viveu-se uma glaciação nestes dias longínquos. Portugal e Espanha estavam cobertos de neve e gelo durante grande parte do ano e muitas montanhas lusas brilhavam com neves eternas. O espectacular Vale do Zêzere, que tomou forma há cerca de 30 mil anos, é um exemplo tremendo do que era o clima da nossa zona e alguns académicos, averiguando os indicadores, comparam o clima da Península Ibérica da altura ao da Escandinávia actual.

Era um mundo inóspito com vegetação mais escassa, mais robusta e menos generosa. Perdiam-se vidas em caçadas e escaramuças; os partos eram arriscados, a fertilidade era provavelmente baixa e o infanticídio pode ter sido praticado. Estes factores mantiveram os números populacionais muito estabilizados. A arqueologia e a paleopatologia dão-nos vislumbres de antepassados disformes, torturados por artrites e tolhidos por aleijões, e ainda de membros partidos em acidentes e tratados de forma horrorosa.

E realmente com o neolítico tudo muda. Sucedeu naquele boomerang que conhecemos na escola e que se chama Crescente Fértil. A este momento de viragem, que durou um par de milénios, os académicos chamam igualmente revolução agrária. A superfície terrestre aqueceu, extinguiram-se muitos animais de grande porte e a fauna passou a ser mais parecida com a que temos nos nossos dias. Surge a lavoura e a domesticação de animais. Há mais tempo disponível por não ser necessário andar tanto tempo em caçadas e começam a desenvolver-se artes um pouco mais sofisticadas, como a cerâmica. Armazenam-se alimentos e a primeira face do que pode ser chamada uma civilização mostra-se à luz.

A situação teve um revés: à medida que os humanos iniciavam os seus assentamentos em povoados, tornavam-se cada vez mais colonizados por criaturas capazes de lhes fazer mal, incluindo parasitas e agentes patogénicos. Houve vermes, pulgas, carrapatos e um ror de artrópodes. Também houve outros microorganismos, como bactérias, vírus e protozoários. Os seus ritmos elevados de reprodução dentro dos hospedeiros originavam doenças graves, mas, como se se tratasse de uma compensação, concediam aos sobreviventes imunidade contra reinfecções.

A história é bem conhecida e dura até aos nossos dias. As pandemias passaram a fazer parte do quotidiano e preparamo-nos agora para sair de um período que, comparado com as épocas que couberam aos avós dos avós dos avós dos nossos avós, nem sequer pode ser apelidado como catastrófico. Houve sempre tragédias e a vida nunca foi um passeio no parque. Ou antes, foi muitas vezes um passeio no Parque Jurássico, apesar de humanos e dinossauros jamais terem coexistido.

Mas voltemos atrás, ao gelo, às caçadas, à caminhada constante e à morte quase sempre violenta, esses tremendos atributos do Paleolítico Superior. Foi a época das grutas de Lascaux e de Altamira, mas também de Foz Côa e do Lapedo. Como se disse atrás, o homem era espiritual e as pinturas são um exemplo ilustrado. Mexia muito pouco na natureza, com a excepção da domesticação do cão ou da transformação do solo através de queimadas localizadas para que as plantas se pudessem alimentar de cinzas florestais. À escala global estima-se que a população rondasse os dez milhões de habitantes. Sim, a população actual de Portugal dispersa pelo mundo inteiro. Na Península Ibéria viveriam umas 50 mil pessoas.

Este modo de vida impunha uma baixa densidade populacional, uma vez que consistia em obter o sustento directamente a partir da natureza. Devido ao seu pequeno número, o impacto destes caçadores-recolectores permaneceu limitado ao seu ambiente. Talvez não se possa subestimar este facto, embora seja difícil documentar o efeito com precisão. Como sucede hoje em dia com a pesca, talvez a última área onde ainda praticamos «a arte de recolher» de forma significativa, é provável que os nossos ancestrais tenham contribuído para o desaparecimento de espécies devido à sua habilidade combinada com a sua ganância. Estudos há que permitem afivelar que a troca e os enganos eram moeda corrente antes da própria moeda. No final do artigo apresentam-se referências e recomendações bibliográficas.

No meio deste vendaval de neve e gelo houve sempre zonas idílicas. As grutas de Lascaux e Altamira, devido ao facto de serem precisamente cavidades, terão albergado umas dezenas de humanos durante várias gerações. Havia calor, conforto e segurança; não havia razões para sair nem para ter alarme. Imagine-se Platão a escrever as suas alegorias com o pleno conhecimento destes baluartes da humanidade, apesar de as suas metáforas terem a ver com conhecimento e escuridão, e não com refúgios em cavernas. Já existiam há milénios quando o grego viveu, mas apenas foram descobertas nos séculos XIX e XX. Também podemos imaginar o pensador a ler as descobertas de Darwin ou a saber do ódio com que o homem se atirou ao homem tantas vezes nos 2500 que decorreram após a sua morte. A humanidade sempre soube sofrer e crescer de forma paradigmática.

E também muito antes da Antiguidade Clássica se abrigaram humanos no vale do Côa, e o parque arqueológico é o maior conjunto mundial de arte paleolítica ao ar livre. Apesar destes 20 mil anos decorridos, a orografia era muito semelhante à actual. Surpreendentemente, o rio apresentava mais ou menos a mesma cota, pelo que estes antepassados viram uma paisagem similar à que podemos apreciar agora no bendito parque. Hoje, como na altura, o vale era abrigado das terras geladas do planalto de Miranda e de Castela ou dos vendavais de neve da Guarda. Se são terras frias nos nossos dias, numa idade do gelo nem as conseguimos imaginar.

Um vale quentinho e soalheiro, alimentado por um curso de água e ladeado por paredes em xisto mesmo boas para desenhar. Se não era isto a Arcádia, o que era então? Serviu para descansar um pouco do nomadismo e ter-se-á transformado numa espécie de hub do paleolítico, servindo tanto de habitação quase permanente como de local de repouso para viandantes. Quem quiser saber mais tem documentação e os fantásticos guias do parque, que conseguem fazer visitas guiadas a crianças durante duas ou três horas seguidas sem as maçar um pouco. Acrescente-se que levar uma criança ao vale do Côa significa uma apropriação muito mais simbólica das gravuras e também muito mais rápida. Se se abusa muito do adjectivo «inesquecível», levar fedelhos ao parque dá-lhe o verdadeiro substrato.

Em 1994, após décadas de achados não confirmados, deu-se a entrada no cânone, com a estampilha da arqueologia. As figuras não sabem nadar, gritou-se. Hoje em dia talvez se clamasse Je Suis Indiana Jones, mas os tempos são outros e muito muda em 22 anos. A barragem ficou em águas de bacalhau e uma ida ao local garante a viagem no tempo. E olhe que não é cenário…

Quatro anos depois do Côa foi descoberta a criança do Lapedo, velhinha de 29 mil anos. É a única sepultura do Paleolítico Superior existente na Península Ibérica. Novamente um vale, protecção contra as inclemências de Trondheim (Leiria, perdão) e lar propício a uma ou mais famílias. Novamente os guias: o Centro de Interpretação Abrigo do Lagar velho tem guias que nos levam com esmero pelas passadas dos que viveram tanto tempo antes de nós. Vemos relíquias com 29 mil anos e dificilmente contemos a emoção quando vemos finalmente os restos mortais da criança que viveu cinco anos no Paleolítico. Se tivesse sobrevivido um pouco mais seria quase certamente um ancestral directo de muitos de nós.

Ocorreu recentemente vandalização numa zona parque do Lapedo e a perda não tem remédio. Há muito património essencial no país e no mundo e apenas compreendemos o nosso lugar se percebermos claramente onde figuramos na cronologia. Há que agir civicamente para que não se repita um acto tão desassisado.

A humanidade é uma e una e em alguns sectores políticos tenta-se esquecer o passado, mesmo que este passado não viva já connosco. Forçam-se clivagens no que não é divisível e propostas para tapar imagens de há 500 anos deram que falar, a que se aliou a vontade de deitar abaixo alguns monumentos. A sociedade vai actuando para o bem comum e não dá felizmente valor a estas vozes insensatas.

A perda de parcelas da história é irreparável. O que se passou não pode ser reescrito, mas pode ser sarado. Tal como os nossos avós, que tentaram sarar a dor ao fazer o funeral de uma criança querida que viram morrer.


Referências

– Enzel, Y & Bar-Yosef, O. (2017) Quaternary of the Levant: Environments, Climate Change, and Humans, Cambridge.

– Ferguson, Niall (2009), The Ascent of Money: A Financial History of the World: 10th Anniversary Edition, Nova Iorque.

– Neal, L., & Cameron, R. (2020), A Concise Economic History of the World: From Paleolithic Times to the Present, Oxford.

– Porter, Roy (1997), The Greatest Benefit to Mankind: A Medical History of Humanity, Londres

– Ruff, Christopher B. (2017), Skeletal Variation and Adaptation in Europeans: Upper Paleolithic to the Twentieth Century, Hoboken, NJ.


Pedro Cotrim

Editor

1 COMENTÁRIO

  1. Uma lição de história da humanidade resumida com poesia e peripécias! Texto excelente! 👏👏👏

Comments are closed.