O telescópio James Webb revelou esta semana as suas primeiras imagens. Deslumbramo-nos com o longínquo e colocamos as perguntas mais essenciais da nossa existência. O que foi de nós, o que é de nós, o que será de nós? Olhamos para os primórdios do universo e sentimos o desassossego de Bernardo Soares
POR PEDRO COTRIM

As cosmogonias foram descobertas em praticamente todas as civilizações. Algumas teorias da conspiração assentaram em representações pretensamente idênticas. A hélice de ADN, «encontrada» em algumas catedrais da baixa idade média e nos templos das civilizações mesoamericanas, foi um caso paradigmático: se estas civilizações nunca estiveram em contacto umas com as outras, de que modo poderiam saber deste segredo desvendado apenas em meados do século XX? James Watson vive ainda com lúcidos 94 anos e rir-se-á cada vez que um despautério como este ganha forma.

Propuseram-se inúmeras teorias, mas talvez a medalha de ouro fique ao pescoço dos ET. Sucederam-se explicações atabalhoadas porque qualquer teoria da conspiração carece de ruído e acaba sempre por desabar perante a pergunta «quem afinal sabe do assunto?». Não vale a pena perder tempo com elas e prossigamos por isso com o que importa.

O espaço, uma das derradeiras fronteiras. Podemos situá-las onde quer que o conhecimento se desvaneça. São muitas estas zonas e qualquer leitura dos clássicos irá dar-nos pistas semelhantes em mais de dois milénios de boa tradição escrita. As perguntas que importam atravessaram a antiguidade, a idade média, o renascimento, o iluminismo e demais idades da humanidade. Quem somos afinal? Se olharmos para cima iremos saber mais?

O espaço, que iludindo, não ilude. As ideias de desinvestimento em programas espaciais caem no chão telúrico da Terra perante o facto consagrado e fazem-nos deixar de questionar a valia de um colosso como o James Webb. Venham mais orçamentos multiplicados que os acolheremos com gosto, pois as respostas acertadas não têm preço.

O espaço, já aqui ao lado. Al Gore, quando divulgava o seu Verdade Inconveniente, dizia que os céus estavam a uma hora daqui. Uma hora para cima numa velocidade de cruzeiro em auto-estrada coloca-nos acima da Linha de Kármán, um consenso teórico. Abaixo dela está a maioria da atmosfera, muito mais ténue do que pensamos. A analogia da casca da maçã serve perfeitamente para ilustrar o ar da Terra.

O espaço, onde não há atmosfera. Quando indagamos sobre novos mundos perguntamos sempre sobre a sua atmosfera. Dizemos que é essencial à vida quando na realidade não é bem assim, pois o suporte da vida é o meio líquido. Se um planeta não tiver um campo gravítico que permita fazer a retenção do vapor das substâncias voláteis, os líquidos acabarão por desaparecer totalmente após se terem vaporizado. Por outro lado, se não existir atmosfera, as substâncias voláteis que possam existir terão de se encontrar no estado sólido. A frase chave que assenta aos planetas será «Sem atmosfera, certamente sem vida, com atmosfera, muito provavelmente sem vida».

São os líquidos a sustentação da vida e as razões são simples. As moléculas orgânicas baseiam-se no carbono e não vale a pena avançar teorias absurdas sobre a vida suportada num outro elemento (consultar o segundo parágrafo sobre teorias da conspiração; juntar as ideias mirabolantes ao tópico dos temas que não merecem atenção). O carbono tem quatro electrões de valência e pode formar tetraedros, o sólido mais fácil para qualquer construção molecular. O silício está mesmo abaixo do carbono na Tabela Periódica, mas os benditos quatro electrões de valência estão demasiado longe do núcleo atómico para a formação de moléculas complexas – a sua interacção com outros átomos seria sempre demasiado frágil para a vida.

As moléculas formadas pelo carbono são essenciais e as experiências efectuadas desde a década de cinquenta permitem saber as condições para a vida. Quem puser «Stanley Miller» no google fica a conhecer todas elas, mas saberá também que o nosso bê-á-bá é na realidade um A-C-G-T disposto de muitas formas diferentes e tal como o vemos nos filmes das coboiadas científicas.

As moléculas orgânicas são bastante grandes, com vários átomos de carbono que lhes permitem, graças à sua flexibilidade, as configurações e conformações mais adequadas para cada situação. Pensemos no suporte necessário para o desenvolvimento de tais estruturas.

– Os líquidos apresentam as características perfeitas para suportar moléculas tão grandes e delicadas, que assim ficam suficientemente próximas de forma a poder existir contacto entre si. Podem deslocar-se livremente e qualquer reacção pode ocorrer com relativa rapidez.

– Os sólidos são demasiado rígidos para permitir a mobilidade e a interacção molecular que originam a complexidade sempre crescente. As moléculas que constituem os sólidos estão sempre mais ou menos fixas no seu lugar e as reacções químicas ocorrem com demasiada lentidão para poderem permitir a mutabilidade que parece ser essencial à vida.

– Os gases, por outro lado, não apresentam pontos de apoio que permitam a interacção e o suporte para estas estruturas frágeis e complexas. As moléculas que os constituem estão separadas por distâncias relativamente grandes e deslocam-se quase sempre ao acaso. É esta, aliás, a razão para as misturas gasosas serem quase sempre homogéneas. Qualquer reacção química que se verifique numa parte de um gás pode ocorrer noutra qualquer, podendo propagar-se com grande velocidade.

A vida nasceu nos oceanos, não em terra firme nem no meio da atmosfera, que é uma matriz de muitas entradas. Os modelos meteorológicos de há uma semana foram acertados em relação aos dias mais quentes e mais complicados para a protecção florestal. A questão das alterações climáticas sofreu mudanças de opinião nos últimos trinta ou quarenta anos e tem a ver com a tecnologia e com o uso que se faz à ciência que se faz; podemos aqui fazer uma analogia grosseira com o James Webb e o Hubble.

O Hubble foi lançado em 1990, o James Webb no ano passado. Por altura do lançamento do Hubble, havia teorias divergentes para o «aquecimento global». Não se percebia se era uma tendência nem se tinha origem antropogénica, pois a atmosfera era uma matriz com demasiadas entradas para permitir uma previsão perfeita. As previsões do INMG de então falhavam com frequência e mesmo eventos de nevões ou de calor extremo chegavam por vezes quase em silêncio. No episódio de maior calor do ano punham-se por defeito na previsão 38 graus em Lisboa e 35 no Porto, em Beja ousava-se de vez em quando colocar os simbólicos quarenta. Por vezes chegava-se a estes valores, por vezes não. Bem vimos esta semana que a história mudou completamente.

As previsões das décadas de oitenta e noventa pouco têm que ver com as actuais, baseadas em medições e modelos que permitem antever fenómenos extremos. Investigar o clima do passado também passou a ser possível com as novas ferramentas. Hoje há consenso inexistente há quarenta anos, e as publicações dos anos oitenta que incluíam cidades submersas (nomeadamente Nova Iorque e Veneza) no ano dois mil não ajudaram certamente a consolidar uma opinião favorável aos alarmismos climáticos.

À ciência o que é da ciência. A empreitada do James Webb foi uma grande tarefa científica. As primeiras fotografias permitem desvendar muito mais que as do Hubble. Poderão parecer idênticas, mas o novo telescópio permite mais olhares ao passado. É a diferença que 31 anos ocasionam. Se a percebemos nos céus, percebamo-la na nossa Terra. Como se diz na nova geração, não há planeta B; assusta muito pensar que daqui a duzentos ou trezentos anos o James Webb poderá ser uma relíquia preciosa de uma civilização que se aniquilou.

Pedro Cotrim

Editor