No século XXI, é mais fácil ganhar o poder, muito mais difícil de o exercer e ainda mais complicado de o manter. Esta é uma das teses que sustentam a mais recente incursão na escrita de Moisés Naím, intelectual e economista venezuelano que, num livro verdadeiramente apaixonante, explica por que o poder está cada vez mais decadente e escorregadio em todos os domínios da actividade humana organizada
POR HELENA OLIVEIRA

Todos sabemos que o poder, tal como o conhecíamos, está a sofrer “movimentações”: do Ocidente para o Oriente e do Norte para o Sul; dos palácios presidenciais para as praças públicas; dos gigantes empresariais para humildes start-ups; lenta, mas seguramente, dos homens para as mulheres. Todavia, o poder não se encontra meramente em estado de mudança ou de dispersão. Está igualmente em decadência: aqueles que detêm o poder hoje sentem constrangimentos muito maiores no que respeita ao que poderiam fazer com ele, sendo que o risco de o perderem está muito mais presente.

Esta é a tese principal do livro The End of Power: From Boardrooms to Battlefields and Churches to States, Why Being In Charge Isn’t What It Used to Be, escrito pelo escritor, intelectual e economista venezuelano, Moisés Naím, antigo ministro e ex editor-chefe da aclamada revista Foreign Policy. “Ser tirano nos dias que correm já não é tão bom como antigamente”, escreve o também antigo executivo do Banco Mundial.

Consciente de que a tese que reza que “o poder está a passar por uma transformação profunda, de um continente para outro, ou de que se está a dispersar entre muitos novos players” não é suficiente, Naím explica, ao The Washington Post que, na verdade, estamos a assistir a uma “decadência do poder”. “Das salas dos conselhos de administração e das zonas de combate para o ciberespaço, as batalhas pelo poder estão cada vez mais intensas mas com retornos muito mais reduzidos. E a sua ferocidade mascara a sua natureza, crescentemente evanescente. Compreender de que forma é que o poder está a perder o seu valor – e enfrentar os complexos desafios que daqui resultam – é a chave para encontrarmos sentido para uma das mais importantes tendências que está a moldar os anos iniciais do século XXI”, sublinha o pensador.

Adicionalmente, e numa conferência de apresentação do livro, no think tank Carnegie Endowment for International Peace, do qual Naím é membro, o autor começa por afirmar que esta tendência é profundamente global: “está a acontecer em todo o lado e em todos os domínios da actividade humana organizada. Nos exércitos, nas igrejas, nas empresas, nas caridades, nas filantropias e nas fundações; mas também nos partidos políticos e nos governos, nos sindicatos, sem esquecer os países”.

Se esta transformação global nas dinâmicas do poder se traduz, e ainda bem, num menor espaço de manobra para tiranos, ditadores e monopólios, nem tudo o resto é promissor. Naím afirma também que ainda existem muitos com poder suficiente para bloquear determinado tipo de acções e poucos que conseguem levar em frente alguns temas fundamentais para a humanidade. O que pode resultar numa perigosa estagnação ou paralisia. Para evitar a ocorrência deste perigo, argumenta Naím, é necessário que surja uma onda de inovação política e institucional.

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Poder: decadente, difuso e fragmentado
A enumeração da alteração da natureza do poder recai sobre a quase totalidade das esferas da vida e são vários os exemplos que Naím oferece para fazer vingar os seus argumentos. Apesar de admitir que existem muitos motivos para celebrar a era em que vivemos, que se traduz em tendências de mais concorrência, mais liberdade, mais opções, é ao nível político que o autor expressa a sua maior preocupação. “Os governos são ‘gigantes coxos’, nos quais existem conjuntos de actores políticos que têm o poder necessário para bloquear determinadas acções, mas não têm o poder que é preciso para implementar outras [acções] realmente importantes”, diz. Adicionalmente, os Estados poderosos estão cada vez mais vulneráveis à guerra assimétrica conduzida por grupos terroristas islâmicos ou pelos piratas da Somália e o massacre na Síria contínua, testemunhado em directo pelo mundo, mas sem que ninguém, com o seu poder, lhe possa pôr cobro.

Em 2012, e num dos exemplos escolhidos pela revista Economist, que também fez um artigo sobre o livro, “apenas quatro dos 34 países pertencentes à OCDE tinham governos com maiorias absolutas no parlamento. Os holandeses estiveram quatro meses sem governo em 2010, o mesmo acontecendo à Bélgica, que esteve 541 dias ‘à deriva’ entre 2010 e 2011. Os partidos há muito estabelecidos estão a dar lugar a novatos como o Independence Party no Reino Unido ou o Movimento Cinco Estrelas de Beppe Grillo na Itália. Estes estão também a ser pressionados por centros de poder rivais, tanto transnacionais como provinciais”.

As grandes empresas entram também no rol dos exemplos. Num estudo, citado pelo autor, que seguiu a permanência no topo de muitos gigantes empresariais, concluiu-se que, se em 1980 uma empresa norte-americana se situava no topo dos 20% da sua indústria, existia uma em 10 possibilidades para que dele (de)caísse nos cinco anos seguintes; 20 anos mais tarde, essa probabilidade duplicou e, actualmente, tornou a duplicar. A conclusão? O topo está muito mais escorregadio e as grandes empresas tendem, cada vez com maior frequência, a ser destronadas por novos players e concorrentes. E o mesmo se aplica aos mandatos dos CEO. Nos anos 90, estar ao leme de uma grande empresa durava, em média, 10 a 15 anos. Actualmente e de acordo com as estatísticas, esse período passou para cinco anos. A nível mundial, e citando uma outra estatística, nas 2500 maiores empresas do globo, a percentagem de CEO que foram despedidos – apesar de este termo não ser usado – rondava os 14%, o valor mais elevado de sempre.

Naím oferece ainda um outro exemplo recente e que serve para ilustrar os grandes gigantes corporativos destronados por pequenos incumbentes. A Kodak, que foi, durante décadas, a rainha da indústria fotográfica, caiu em desgraça ao mesmo tempo que uma “simples” aplicação, chamada Instagram, foi vendida por milhares de milhões de dólares. “O poder não está a apenas a mudar e a dispersar-se: está em mutação e a tornar-se cada vez mais frágil”, insiste o economista, que afirma igualmente que os micropoderes estão a aprender a frustrar os macropoderes.

Sublinhando os estranhos tempos em que vivemos, com uma astronómica concentração de riqueza e com uma ansiedade justificada dos 99% que se juntaram ao Movimento Occupy Wall Street em protesto contra os todo-poderosos 1% , o pensador  reconhece, com legitimidade óbvia, que continuam a existir vários centros significativos de poder. Mas mesmo enumerando Vladimir Putin, ou a China e até mesmo o presidente norte-americano, o escritor chama a atenção, mais uma vez, para a maior fragilidade deste poder. O novo presidente chinês, por exemplo, nunca terá a mesma capacidade de Wen Jiabao, que lançou reformas e uma abertura sem precedentes na República Popular, argumenta. “O poder está mais fácil de obter, mais difícil de exercer e muito mais fácil de ser perdido”, sublinha ainda Naím, respondendo igualmente ao paradoxo que tal possa representar. Numa outra entrevista concedida ao The Globe and Mail, afirma: “os poderosos sempre se escudaram atrás de barreiras que os protegiam de estreantes e rivais – a tradição, as marcas, as armas, a tecnologia (…)”. E, neste momento, essas barreiras tornaram-se menos protectoras e mais frágeis.

Por outro lado, e quando fala em paralisia ou estagnação [do poder], Naím está a referir-se, por exemplo, ao que se passa na Europa. “O que está a acontecer em Bruxelas, e com a crise financeira europeia deve-se, a meu ver, ao facto de ninguém ter o poder necessário para a parar, para intervir activamente, nem mesmo Angela Merkel”, afirmou durante o debate no Carnegie Endowment. “Não me preocupo muito com o declínio do poder nas empresas do sector privado”, acrescenta. “Não me causa impressão saber que um banco específico tem hoje menos poder do que há uma década. O que realmente me preocupa é a incapacidade do mundo para abordar questões com relevância global. Ou seja, a incapacidade de os países agirem em conjunto para resolverem problemas que têm implicações igualmente globais [como na questão das alterações climáticas] ”.

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Governança global cada vez mais ineficiente
Esta nova era de instabilidade política cria obstáculos aparentemente inultrapassáveis no que respeita a consensos necessários, à medida que os líderes se encontram cada vez mais enfraquecidos, incapazes de impor a sua vontade, falhando de forma consistente na prevenção de confrontos fiscais e orçamentais, entre outras áreas consequentes de desacordos. E Naím prevê maiores doses de ineficiência e de turbulência na governança global. “Eleições mais frequentes, mais referendos, escrutínios cada vez maiores e muito mais concorrência”, assegura, ao mesmo tempo que sublinha que todas estas tendências apontam para a mesma direcção: a redistribuição e dispersão do poder dos players já estabelecidos para um conjunto cada vez mais numeroso de concorrentes”.

Na esfera militar, o venezuelano observa também a alavancagem dos grandes exércitos que aplicavam a supremacia das forças convencionais e esmagadoras como um componente crescentemente finito de poder estratégico. Ao Washington Post afirmava que “em 2008, o secretário de Defesa norte-americano Robert Gates observava que das muitas intervenções das forças militares americanas ao longo de quatro décadas desde o pico da guerra no Vietname, apenas uma intervenção – a da Guerra do Golfo em 1990 e 1991 – foi um ‘conflito convencional tradicional’”. As demais projecções de poder militar ao longo deste período, desde o Líbano, à Somália, ao Kosovo, ao Iraque e ao Afeganistão, todas elas envolveram contra-ataques, antiterrorismo, ou intervenções políticas ou humanitárias ao invés de um duelo contínuo de exércitos tradicionais de “comando e controlo”. Contudo e apesar disso, e numa descontinuidade irónica entre as ameaças e os recursos correspondentes, Naím chama a atenção para o facto de o orçamento da defesa norte-americana em 2012 ter ascendido aos 700 mil milhões de dólares, o que corresponde a quase metade dos gastos da defesa mundial. Em contraste, a Al Qaeda gastou cerca de 500 mil dólares para produzir o 11 de Setembro, os quais, incluindo as perdas directas desse único dia de destruição mais os custos da resposta americana aos ataques totalizaram 3, 3 triliões de dólares.

Moisés Naím alerta ainda para o facto de a erosão das fronteiras – como resultado da globalização – ter, ao mesmo tempo, contribuído para a erosão da capacidade dos políticos defenderem os interesses económicos dos seus cidadãos e, no que respeita ao sistema de governança internacional do pós-guerra, este ter entrado em decadência total. “A verdadeira fonte da insegurança que vivemos actualmente deve-se ao facto de já não sabermos quem está no poder”, acrescentando ainda que “se os Estados Unidos já não cumprem o seu papel de polícia global, quem o poderá cumprir?

E enquanto a redistribuição e a decadência do poder colocam desafios profundos às políticas domésticas e às lideranças nacionais, é exactamente no domínio da cooperação global que Naím espera os maiores riscos. “Desde as alterações climáticas à proliferação nuclear, às crises económicas, ao esgotamento dos recursos, às pandemias, à persistente pobreza dos ‘mil milhões’ da base da pirâmide, sem esquecer o terrorismo, o tráfico, o cibercrime e muito mais. O mundo enfrenta desafios cada vez mais complexos que exigem a participação de cada vez mais players para serem resolvidos”.

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As três grandes revoluções que diminuem o poder como sempre o conhecemos
Tendo absoluta consciência de que o tema do poder é discutido há séculos e que constitui um assunto por demais controverso, o autor salvaguarda-se afirmando que, para escrever o livro, se socorreu o mais possível de dados comprovados, muita pesquisa e estatísticas actuais, tentando manter-se neutro e não abusando das suas próprias opiniões ou percepções. Mas há uma questão imperativa que por todos é colocada e, em particular, pelo próprio Naím: por que motivo estamos a assistir a esta fragmentação do poder?

Afirmando que a reacção mais natural das pessoas é a de eleger a Internet e os media sociais como razão para a erosão do poder – o Economist, por exemplo, critica a extrema relutância de Naím em dar o crédito devido à Internet, “a qual é, seguramente, a mais óbvia força de enfraquecimento das hierarquias” – o antigo ministro venezuelano não lhe retira a importância, mas confere-lhe outra roupagem: “claro que a Internet e os media sociais constituem forças motrizes para esta decadência do poder”, afirma. “Mas eu penso que estas são apenas ferramentas, ferramentas essas que precisam de pessoas que as utilizem, sendo que enquanto grupos, estes precisam de motivação, direcção e incentivos (…), mas esta alteração [da natureza do poder] deriva de alterações muito mais profundas”.

E os factores e as forças que, a seu ver contribuem para esta alteração fundamental foram agregados por Naím em três grandes revoluções ou forças transformacionais: a revolução do “mais”, da mobilidade e da mentalidade.

No que respeita à primeira, não são necessárias muitas explicações. “Temos mais armas, mais medicamentos, mais afluência material, mais países, mais partidos políticos, mais activistas, mais ONG, mais universidades, mais ‘tudo’”, enumera, sem se esquecer de dizer que tal se deve também ao facto de o mundo ter muito mais pessoas também. “Tivemos também uma gigantesca expansão no que respeita á economia mundial nos últimos 20 anos, sem precedentes na história da Humanidade. E temos uma abundância de tudo, o que significa que é muito mais difícil controlar e exercer poder sobre esse ‘mais’”, sublinha, citando a frase de um colega académico que afirma que hoje em dia é muito mais fácil matar 100 milhões de pessoas do que as governar. Naím aponta vários factores demográficos que fazem parte da sua equação, sendo que um deles consiste no facto de, pela primeira vez na história da Humanidade, a população ser predominantemente urbana e ter mais dinheiro do que em qualquer outro período. Uma estatística positiva é a de que, ao longo da última década, cerca de 38 mil trabalhadores saíram da pobreza, por dia e todos os dias. Mas, a seu ver, esta revolução do “mais” está a esmagar as estruturas tradicionais do poder.

No seguimento de termos “mais de tudo”, esse “mais” move-se igualmente muito mais depressa e de uma forma muito mais barata. A revolução da mobilidade não poupa quase nada: os bens e serviços, os capitais, as ideias, as doenças, as crises financeiras e, é claro, as pessoas. De acordo com estimativas das Nações Unidas, existem 214 milhões de migrantes no mundo, um aumento de 37% face aos números de há duas décadas. O que tem, igualmente, implicações no poder, por exemplo, a nível politico, de que é exemplo a comunidade hispânica e o peso que teve na reeleição de Barack Obama como presidente nos Estados Unidos.

E, finalmente, da combinação de estas forças, surge a terceira revolução, a das mentalidades. “A forma como perspectivamos o mundo, a nossa estrutura mental, as nossas expectativas, a forma como aceitamos ou não as regras, de quem e mediante que tipo de circunstâncias, que tipo de autoridade reconhecemos, entre outras alterações cognitivas”, tudo se encontra em mudança contínua. Citando como exemplo a taxa de divórcios, a crescer substancialmente entre os mais velhos e na Índia (e também em alguns países árabes), país que, tradicionalmente, não “desfazia casamentos”, diz: “na maioria das vezes, os pedidos de divórcio são feitos pelas mulheres: a maioria destes casamentos foram ‘arranjados’; os casais estavam juntos há décadas. Mas e mesmo assim, as mulheres estão crescentemente a decidir que ‘já chega’”. Em resumo, a mudança de atitudes, expectativas e aspirações estão a transformar a forma como as pessoas pensam, se comportam e como se relacionam com e em relação ao poder.

Se Moisés Naím estiver certo, no século XXI “o poder será mais fácil de sofrer uma disrupção e muito mais difícil de se consolidar”, o que pressagia uma tendência perturbadora de um sistema global muito menos resiliente, preenchido por instituições nacionais e internacionais muito mais fracas.

E se o futuro do poder reside na disrupção e nas interferências, e não na gestão e na consolidação, questiona Naím: “será expectável virmos a conhecer a estabilidade outra vez?”.

A pergunta mantém-se e sem respostas.

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