Estamos em Maio de 2022; regresso a Paris após uma interrupção de dois anos. No metro deparo-me com um cartaz que desconstrói a afirmação clássica de Jean-Paul Sartre segunda a qual “o inferno são os outros”, propondo-lhe uma nova leitura: “o inferno somos nós próprios, quando privados dos outros”. Em rescaldo do impacto da pandemia nas nossas vidas, importa relembrar algumas ideias centrais: a Saúde Mental é uma dimensão da Saúde Pública: diferentes idades implicam diferentes necessidades; as relações interpessoais são vitais no equilíbrio de cada um
POR CONCEIÇÃO TAVARES DE ALMEIDA 

Nesta medida, as políticas de saúde deverão contemplar não só a organização dos serviços, mas também ações que se traduzam em promoção de saúde e prevenção de doença nas populações, atendendo às suas singularidades e complexidades. Numa era de exaltação dos direitos universais na igualdade de oportunidades, combate à descriminação e estigma, convém reforçar a ideia de que só há equidade se se for sensível às diferenças.   

Recuo à minha adolescência para me encontrar no antigo cinema “Star” na Guerra Junqueiro onde vejo “Les Uns et les Autres”, filme que se destaca na minha memória dos habituais blockbusters norte-americanos, não só pela língua e cultura francesas, mas também pela duração, banda sonora, narrativa e estética, existencialista e marcadamente europeia. Portugal dava os primeiros passos na democracia e aventurava-se na CEE. Crescida em África e educada num ambiente intelectualmente diferenciado e “progressista”, o meu interesse por esse Outro desde cedo se manifestou e se sedimentou, interesse esse ao qual não terá sido estranha a minha escolha profissional e os caminhos que tenho percorrido. 

Voltemos à pandemia: regressei a Paris para participar no Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa que teve como objeto… o objeto. Do objeto clássico à emergência do novo; do impacto do objeto externo na construção do Eu, à arte de manejo do movimento a dois, estes foram alguns dos caminhos enunciados e percorridos, in loco, por psicanalistas de países e culturas diversas. 

Para assinalar este ano o Dia da Saúde Mental, sigo o filão desse Eu e o Outro, propondo-me explorar algumas ideias sobre as suas origens, os seus desígnios e as suas potencialidades. Comecemos pelo princípio: a relação primária como período crucial para a aquisição e expansão de competências do desenvolvimento, mas também enquanto metáfora da comunicação humana.

O Eu e o Outro: espelho e conflito estético ou a construção da Identidade na relação mãe/bebé

O ser humano nasce numa condição de desamparo que o torna extremamente vulnerável à influência do ambiente, do qual depende o seu potencial para a realização. Na natureza observa-se uma relação inversamente proporcional entre a complexidade das espécies e a sua dependência precoce.

O desenvolvimento humano pode ser entendido numa linha de evolução, ao longo do ciclo de vida, onde a ontogénese repete em certa medida a filogénese, através da qual cada pessoa se torna simultaneamente herdeiro e perpetuador de um coletivo. Muito para além das dicotomias entre corpo, mente (e alma), o conceito atual de saúde e de bem-estar prevê uma interação dinâmica, crítica e adaptativa, nas suas múltiplas dimensões.

O ciclo de vida apresenta momentos-chave que servem como teste de realidade no processo de autonomia. Assim, através da vinculação, organizam-se processos subjetivos que determinam a relação entre o Eu e o Outro. A capacidade de adaptação e a resiliência, são conceitos fundamentais para se entender a Saúde Mental numa perspetiva ecológica e dinâmica. Os comportamentos desajustados (ou disfuncionais), devem ser entendidos no seu valor de comunicação. 

A relação mãe-bebé é tomada como unidade matriz, na medida em que condicionará a qualidade das interações futuras. A natureza dessa relação, em termos psicológicos, permite estudar a génese e o desenvolvimento das funções mentais que estão na base da construção da Identidade e da Autonomia. Da dependência absoluta às interdependências relativas: a autonomia é uma construção, em que impotência e omnipotência podem ser dois lados da mesma moeda. O grande desafio da Autonomia é aprender (ensaio e erro) e dar sentido à experiência emocional. Esta relação pode ser entendida como uma metáfora epigenética das outras relações, preparando o sujeito para a construção do seu mundo psíquico, prisma através do qual se relacionará consigo próprio e com os outros, desenvolvendo pensamentos e capacidade de os pensar, que permitirão dar sentido à experiência emocional.

Nesta equação organizam-se: a estranheza, a curiosidade, a confiança básica, a autoestima, a tolerância à frustração, a criatividade, a arte (função simbólica). Neste processo, há uma área intermédia de ilusão, que serve como espaço transicional, dimensão lúdica onde o ensaio entre realidade e fantasia, entre o Eu e o Outro, pode ser testado.

Umami é o “quinto sabor básico”, descrito como um gosto denso, profundo e duradouro que produz na língua uma sensação aveludada; a sua origem é o leite materno.

[Fernando Pessoa foi abordado, em 1927, pela empresa Coca-Cola para criar um

slogan publicitário. E escreveu: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”]

Há um conflito estético subjacente a este primeiro contacto com a realidade e, nessa medida, a própria noção de beleza e de transcendência encontram substrato emocional na interação precoce. Neste conflito, entram em jogo o belo e o horror, provocados pela perceção de uma descontinuidade e de uma diferença.

Assim, o estranho é sentido tanto como intrigante e atrativo como inquietante e/ou ameaçador. Freud elaborou e desenvolveu os conceitos da Psicanálise fundados no Inconsciente e na experiência pessoal subjetiva que aplicou à compreensão de fenómenos coletivos.

No “Narcisismo das Pequenas Diferenças”, por exemplo, encontramos um ensaio de como se formam os estereótipos e os preconceitos. No trabalho “O Inquietante” (Freud, 1919) a análise etimológica da palavra alemã Unheimlich, bem como as diferentes expressões noutros idiomas, revela paradoxos, podendo mesmo coincidir, segundo Freud, com o seu oposto Heimlich (familiar/conhecido).

Dir-se-ia, então, que atrás do aparentemente incompreensível ou assustador, se esconde algo profundamente familiar. Freud conclui que existe sempre uma sombra no aparentemente conhecido, um inominável que foi afastado, deslocado (reprimido) da consciência, ou seja, para que algo seja inquietante, não basta que seja diferente do convencional, mas que tenha sido algo anteriormente familiar. Nietzsche retoma a ideia original de Mito do Eterno Retorno de Mircea Eliade. Tratando-se do eterno retorno, Freud aborda a estranheza do inconsciente, como aquilo que é inominável em nós próprios e, desta forma, o estranho só nos perturba, porque toca o nosso lado obscuro.

Através deste jogo de identificações, ativamos padrões de perceção da realidade (interna e externa) e de relacionamento que tendem a repetir-se. A noção de “relação de objeto” fala de como nos identificamos às experiências emocionais que resultam das interações significativas passando a fazer parte da nossa Identidade. Muitas vezes atribuímos aos outros, de forma projetiva, características que são nossas. Se este fenómeno é a base da comunicação humana e facilita a empatia, também pode ser responsável por comportamentos de ódio, quando o que se projeta no Outro são conteúdos intoleráveis e ameaçadores para a nossa sobrevivência. 

Neste conhecimento que o sujeito faz de si e dos outros, opera-se uma equação transformadora da própria realidade; se tudo correr bem, o resultado final é sempre diferente da soma das partes (1+1=3). Mas essa capacidade tem de ser construída e o processo nunca é linear. Os padrões de vinculação estão estudados e agrupados em três modalidades, de acordo com a sua qualidade predominante: segura; ambivalente; desorganizada. A saúde mental é um equilíbrio dinâmico onde se estabelecem vínculos, se jogam pesos relativos, se integram as vulnerabilidades, se desenvolvem estratégias, se superam crises.

Para toda a necessidade há uma escuta; para todo o conteúdo há um continente; para todo o bebé há uma mãe. Só a relação transforma o que da relação decorre: essa é a abertura da espécie humana ao desenvolvimento e à mudança.

Falar de Saúde Mental e Bem-estar é sinónimo de Felicidade?

A felicidade é um estado de bem-estar dinâmico, cujo equilíbrio depende de um conjunto de variáveis. Ser feliz é um lugar onde se quer chegar, mas refere-se muito mais ao caminho do que ao ponto de chegada.

A felicidade pode confundir-se com alegria, prazer, sucesso. Mas é um conceito mais complexo e lato. A felicidade não é uma emoção primária, mas sim uma construção que envolve sentimentos, valores, expectativas, pensamentos, comportamentos e memórias. Tal como quando falamos de saúde, a felicidade não se define por oposição simples a infelicidade. Há momentos de maior prazer ou bem-estar durante o dia a dia, ou durante as nossas vidas, mas não é possível evitar perdas, frustrações, deceções, cansaço, mal-estar físico ou emocional.

A felicidade é feita da capacidade de se lidar com as próprias adversidades e com a incerteza. As pessoas mais felizes não são aquelas que não passam por dificuldades, mas sim as que conseguem dar sentido às suas experiências de vida e sentirem-se bem consigo próprias.

É importante procurar estar feliz para se poder fazer os outros felizes e não o contrário e, para cada pessoa, há que se ter em conta as circunstâncias, a subjetividade, a cultura, o grau de desenvolvimento e de maturidade. As crianças, por exemplo, precisam aprender com os adultos a tomar conta de si próprias. Cuidar de uma criança é protegê-la e prepará-la para a vida. As respostas que damos às crianças têm de ter em conta as suas necessidades e serem adaptadas às suas capacidades de compreensão da realidade. Crianças de idades diferentes têm necessidades diferentes. 

Os sentimentos positivos são mais facilmente associados à sensação de felicidade. Mas mais importante do que agradáveis é que sejam verdadeiros. A verdade, mesmo quando dolorosa, é fonte de bem-estar e de crescimento emocional.

A grande chave da felicidade é a esperança. Ter esperança corresponde à capacidade de se guardar boas experiências dentro de nós e de as projetar no futuro. Essa capacidade desenvolve-se a partir da relação com outras pessoas que nos ajudaram a ter confiança no mundo. Mas, para isso, é necessário ter tanto a curiosidade como a coragem suficiente perante o medo do estranho. A felicidade é uma espécie de paleta de cores, num jogo de luz e sombra; conhecer e lidar com toda a variedade de emoções torna mais rica e genuína a nossa obra e as suas possibilidades infinitas.

Nesse rendez-vous com o desconhecido, ao conceito existencialista de Sartre contrapõe-se a ideia de que somos todos estrangeiros e habitamos ironicamente um mesmo e inquietante lugar: o do desamparo, condição primeira e última da humanidade. É esse objeto estético, familiarmente enigmático, perdido e reencontrado, nascente e foz, atractor e organizador do interior e do exterior, da realidade e da ilusão, que dita a necessidade e apela ao desejo. É este objeto-outro, que nos falha e nos cativos, mas também nos salva (do inferno) de nós mesmos, luz bruxuleante na noite escura da solidão.

Psicóloga Clínica e da Saúde - Membro da Ordem dos Psicólogos Portugueses, especialidade avançada Psicoterapia
Psicanalista - Membro didata da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e Membro da direcção da International Psychoanalytic Association